Em sessão de diálogo sobre a obra de Beatriz Ana Loner, a Coordenadora do GT – Emancipações e Pós-Abolição, da ANPUH-RS, Dra. Fernanda Oliveira da Silva, exalta a obra de sua ex-orientadora de graduação e bolsa de iniciação científica. Confira abaixo!
O ano, 2004, o local, Núcleo de Documentação Histórica da UFPel. Ao adentrar no Núcleo em uma tórrida tarde de outono pelotense, aquelas tardes repletas de umidade que só Pelotas é capaz de oferecer, em frente a porta de entrada, me deparei com a mesa de dona Ivoni Motta. Era ali que qualquer pessoa que fosse pela 1º vez ao NDH era apresentada ao espaço, e todas as suas funções. Eu já havia estado no Núcleo quando do tour das mais novas e novos alunos do Curso de Licenciatura em História, mas fui no período da noite em um dia que nem mais dona Ivoni e tampouco as professoras estavam ali. Aquele lugar, de toda a forma, me encantou…ali falou-se sobre trabalho e escravidão…sim, aquilo definitivamente me interessava aprender. Bem, de volta a tórrida tarde de outono, falei que tinha interesse em pesquisar história dos negros, mas não tanto a escravidão. Falei também que havia visto um aviso, no mural do Instituto de Ciências Humanas, de reunião do projeto Clubes Carnavalescos negros de Pelotas, meus olhos brilharam. Eis que no canto esquerdo da sala, e é bom que se frise, à esquerda, uma mulher alta, sentada em uma cadeira preta, bastante imponente, que aparentemente lia algo, levantou levemente a cabeça em minha direção, baixou seus óculos e com o olhar direto disse-me, esse projeto está acontecendo, a reunião será essa semana, podes vir? Imediatamente eu disse que sim, ela me disse então para procurar por Débora Clasen, aluna do curso e bolsista do projeto, ela me passaria as orientações. Desde então, as nossas trajetórias nunca mais se separaram. Beatriz inseriu-me no campo do pós-abolição. Naquele momento, ainda mais conhecido como um recorte cronológico do que como um problema histórico, no entanto, seu texto, o capítulo 5 de Construção de Classe, As associações negras, era bastante assertivo e perspicaz em afirmar que o negro fora o operário por excelência em Pelotas. Mas, que as sociabilidades desses sujeitos não foram estabelecidas em parceria com os demais operários que não compartilhavam o forte preconceito e discriminação. Ao traçar uma trajetória que vinha desde a existência da escravidão e atenta aos laços entre trabalhadores negros escravizados, libertos e livres, Beatriz já delineava aquilo que no ano seguinte era o fio condutor do texto central para os estudos da pós-abolição, a saber “O pós-abolição como problema histórico”, de Hebe Mattos e Ana Lugão Rios. Por meio, especialmente, das fontes periódicas, Beatriz Ana Loner problematizou a história do trabalho no que tange a cor da classe, e dos negros no que tange ao ser operário e suas estratégias políticas que aliavam raça e classe. Fora assim, por dentre os meandros dos Mundos do Trabalho, desenvolvendo grupos de estudos sobre história social com seus alunos e alunas, e mantendo a pesquisa sempre a todo gás, que Beatriz teceu aquela que pra nós hoje é uma constatação das mais felizes, muito embora ainda não encaradas por todas e todos pesquisadores: os mundos dos trabalhos estão intrinsecamente relacionados, ou interseccionados (para usar uma das tantas novas terminologias) por questões que fundamentam a existência do pós-abolição enquanto campo de estudos. A trajetória acadêmica de Beatriz Ana Loner, que inclui discussões acerca dos trabalhadores, desde sua formação enquanto classe, mas também desde suas divisões internas, informa desde pelo menos a publicação de Construção da Classe em 2001, fruto de sua tese de doutorado defendida na Sociologia da UFRGS em 1999, uma agenda de pesquisa investigada empiricamente que abriu portas para que pesquisadoras como eu e tantas outras e outros imergíssemos no campo do pós-abolição e déssemos sequência aquela agenda. Porém, não fomos só nós, muito pelo contrário! A produção de Beatriz segue a pleno vapor, afinal, nunca esquecerei da alegria que foi encontrar Rodolfo Xavier e Antonio Baobad nos livros de registro da Santa Casa de Pelotas, no âmbito do escopo com o qual Beatriz nos lega “Antonio: de Oliveira a Baobad”, problematizando esse ser africano, negro, que ajuda na idealização do jornal A Alvorada, que obtém as primeiras letras e depois na companhia de seu irmão, Rodolfo, aprofunda seus conhecimentos nas aulas noturnas da Biblioteca Pública Pelotense. Trajetória por meio da qual tece uma discussão sobre trabalhadores negros, alguns deles ex-escravos, no período final da abolição e na época seguinte, a Primeira República, destacando, dentre tantos outros elementos as evidências de que a cor e a identidade racial estiveram sempre bastante visíveis e demarcadas naqueles pagos do extremo sul do Rio Grande. Foi assim, refletindo sobre as Ligas operárias e as fontes para história do trabalho, cujo Núcleo de Documentação Histórica é o maior exemplo de esforço coletivo com protagonismo de Loner para a construção de um espaço para guarda e disponibilização desse material, que a autora homenageada aqui, auxiliou naquilo que pra mim, enquanto membro dessa nova geração de historiadoras e historiadores, é um esforço coletivo para colocar no centro do debate tanto as visões da última geração de escravos brasileiros sobre seus destinos, após o 13 de maio, frase que dá início ao texto já referido aqui, de Hebe Mattos e Ana Lugão, quanto o entendimento desses sujeitos e suas e seus descendentes, dentre os quais felizmente me encontro, como sujeitos históricos: GT Nacional Emancipações e Pós-Abolição. Esse esforço materializou-se em 2013, cuja sessão regional coordeno na parceria de Melina Kleinert Perussatto, e a direção nacional já pode contar com a presença de Beatriz Ana Loner. É assim, por entre trânsito tão bem articulado entre os GTs Mundos do Trabalho e Emancipações e Pós-Abolição, que Beatriz Ana Loner é a expressão de uma intelectual atenta às realidades históricas, sobretudo, atenta as intersecções e outros recortes que também informam a classe, a saber, a raça. Loner costura trajetórias, não aleatoriamente, mas atenta aos ensinamentos do marxista britânico E. P. Thompson, observando os sujeitos históricos, sujeitos estes que embora sempre dentro de estruturas bastante cerceadoras, cujas experiências são bem mais complexas do que a afamada tese dos “largados a própria sorte”, teceram suas estratégias políticas em prol de uma integração social e racial efetiva. Obrigada Beatriz Ana Loner e todas as pessoas que são tuas parceiras no front acadêmico, um front que sempre foi também político. Bia, nunca esqueço do primeiro convite e da tua disposição em junto de Martha Abreu, acompanhar o coletivo de historiadoras e historiadores negros na penúltima ANPUH nacional, em Florianópolis, 2015, e pleitear a aprovação da Moção em favor das cotas raciais nos programas de pósgraduação. Pessoas como tu, que aliam pesquisa acadêmica engajada e disposição política para os enfrentamentos diários, são cada vez mais raras, sobretudo atualmente, nesses tempos Temerosos. Todas nós e todos nós, e aqui tenho certeza que falo por muitas Déboras, Aristeus, Jocelems, Paulos, Micaeles, Angelas, Kates, Francieles, Anas, Cláudias, Josephs, Carlas, Vanessas, Cássias, Nádias, Lorenas, Mários, Marilucis, Marceles, Vivianes e tantos outros nomes, daquelas pessoas que tiveram a honra de ser formadas por ti, contar com a tua orientação e atualmente contar com uma parceira que nos lê, dialoga e está sempre a nos instigar é simplesmente a melhor coisa que se espera de uma professora que sabe como ninguém ser orientadora! Com carinho e admiração!
Fernanda Oliveira da Silva
Porto Alegre, 17 de novembro de 2017