O presente número da publicação periódica História em Revista, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), conta com um dossiê temático intitulado História dos animais: fontes temas e problemas. A ideia de reunir estudos sobre este assunto teve início em fevereiro de 2024, por ocasião do seminário homónimo realizado em Lisboa, no palácio Costa Cabral, sede da Brotéria, em concreto na atualmente designada Casa dos Escritores, uma sala totalmente coberta com guadamecis decorados com desenhos de cabras douradas, em alusão ao brasão da referida família que lhe deu o nome. Trata-se de um espaço único em Portugal, no qual se podem contemplar os magníficos couros restaurados recentemente.
No seminário, cuja coordenação científica foi de Isabel Drumond Braga, participaram diversos investigadores, designadamente Rafael Gonçalves. Dada a partilha de interesses científicos entre ambos, surgiu a ideia de abrir uma chamada de artigos, possibilitando a participação de outros membros da comunidade científica. O resultado é o que se pode ler nas páginas que se seguem, as quais contam com sete artigos, quatro de pesquisadores brasileiros e três de portugueses, ordenados cronologicamente, além de um Instrumento de Trabalho.
Os textos, todos sobre história dos animais, apresentam, contudo, caraterísticas e análises muito diferenciadas, enriquecendo a compreensão de realidades distintas. Enquanto uns autores optaram pela análise de um animal no seu relacionamento com o Homem – cavalo, falcão, onça, tartaruga e tatu – outros empreenderam um percurso que visou as medidas levadas a efeito para a sua proteção, em especial, a partir do século XIX; ou a recusa de os ingerir, de acordo com os ideais vegetarianos, que se foram afirmando desde o final da centúria de Oitocentos.
O dossiê é aberto pelo artigo intitulado Humanos e outros animais no Portugal medievo: articulação e soluções de um projecto científico multidisciplinar, de autoria de Tiago Viúla de Faria, que apresenta a conceção e execução de um projeto colaborativo de investigação em história dos animais, FALCO – Hypothesising Human-Animal Relations in Medieval Portugal, o qual pretendeu abordar a relação entre as comunidades medievais com o mundo animal, a partir da complementaridade de diversas disciplinas científicas. Segue-se com a análise de Rebeca Capozzi que esquadrinha como uma espécie americana em particular – o tatu – se constituiu como objeto científico. Promovendo um diálogo entre os campos da história dos animais e a das ciências, o artigo Os tatus como objetos do conhecimento natural (séculos XVI-XVIII) percorre os séculos da colonização do Brasil para entender como esses animais foram incluído nas classificações e taxonomias em vigor naquelas épocas, assim como certos questionamentos surgidos nesse processo.
Um dos biomas mais emblemáticos da biodiversidade tropical americana, a Amazônia, é o cenário do artigo apresentado na sequência, As trabalhadoras da província: a exploração de tartarugas da Amazônia (Podocnemis expansa), na Província do Amazonas, durante a segunda metade do século XIX, escrito por Robert Alves Pinho. Por meio do estudo de relatórios administrativos, de descrições de viajantes e da legislação provincial, o autor esmiúça como, na segunda metade do século XIX, a feitura de manteiga de ovos e a própria exportação desses animais se tornou uma das principais atividades da capitania de São José do Rio Negro e posterior província do Amazonas. Ainda na cronologia Oitocentista, encontramos o artigo intitulado Nascimento e afirmação de uma instituição portuguesa: a Sociedade Protetora dos Animais (1875-1890) de Paulo Drumond Braga. O autor optou pelo estudo do nascimento e dos primeiros anos da Sociedade Protetora dos Animais, criada em Lisboa em 1875, e estudou aspetos como os objetivos e as diferentes formas de agir de uma instituição que, basicamente, se preocupou em mudar mentalidades e motivar os portugueses e tratar melhor os animais de carga e de tiro, os que se dedicavam à alimentação humana e os de companhia.
Adentra-se, então, ao século XX com o estudo de uma das espécies mais representativas de outro bioma brasileiro reconhecido por suas características naturais excepcionais. Em Uma breve história das relações entre o ser humano e a onça pintada no bioma Pantanal, Fabiano Quadros Rückert retraça algumas das principais transformações da interação com esse que é o maior felino nativo do Brasil, tendo como baliza dois momentos distintos. O primeiro deles recobre a primeira metade do século XX, período em que a caça desses animais, além de permitida por lei, é concebida como prática esportiva e valorizada como exercício de coragem e virilidade, atraindo, inclusive, importantes personagens do cenário internacional. No segundo momento, isto é, nos anos posteriores a 1967, quando é implementada a Lei de Proteção à Fauna, o autor identifica alterações e ressignificações da relação do pantaneiro com o animal, sem desconsiderar, contudo, a persistência de certas concepções e práticas.
Abordando outros aspetos, em larga medida, inovadores dessa primeira metade do século XX, Isabel Drumond Braga, no artigo Os vegetarianos utópicos e a defesa dos animais em Portugal no início do século XX, analisa como os vegetarianos utópicos portugueses entenderam o vegetarianismo e a proteção dos animais. Basicamente, procurou responder à pergunta se aqueles defenderam os animais ou se os pouparam por abominarem o consumo de carne, entendida como nociva à saúde. Finalmente, no artigo intitulado Sob as Rédeas do Nazismo: Os Cavalos Lipizzaners e o ideário de pureza racial, Daniely Santos Ramos Costa, Lucas Matheus Araujo Bicalho e Ester Liberato Pereira exploram os paralelos estabelecidos entre as concepções de sociedade surgidas com o nazismo e a seleção e o tratamento de uma raça dessa equinos. A partir da leitura, sobretudo, da obra da estadunidense Elizabeth Letts, O Cavalo Perfeito: a incrível missão de salvamento dos cavalos puro-sangues sequestrados pelos nazistas (2016), são explicitadas as vinculações entre as visões totalitárias do regime alemão e as intenções de se criar um tipo de animal considerado superior pela pureza de seu sangue.
Além dos textos que compõem o dossiê, e daqueles presentes na seção de Artigos Livres, também integra este número um Instrumento de Trabalho, elaborado por Paulo Pezat, que coloca em evidência as ideias a respeito do mundo animal compartilhadas pelos positivistas religiosos brasileiros no alvorecer do século XX.
O conjunto de reflexões e análises aqui presentes registra problemáticas caras à historiografia contemporânea sobre a fauna e sua relação com os humanos, tais quais a vinculação entre entendimentos da sociedade e o tratamento dado aos animais, a caça, a exploração e a comercialização de subprodutos decorrentes de seu abate, mas também as instituições criadas para proteção e promoção do bem-estar animal e muitas outras; e além disso, aborda questões vinculadas ao seu tratamento metodológico, como a agência animal, a interdisciplinaridade, as iniciativas coletivas e suas potencialidades, a diversidade de fontes e suas peculiaridades, as dimensões culturais e ambientais implicadas, apenas para citar algumas. Ao reuni-las, este número pretende contribuir para a consolidação do campo da História dos animais em Portugal e no Brasil e promover um maior diálogo entre pesquisadores de diferentes nacionalidades, especialmente, entre brasileiros e portugueses, que encontram na lusofonia um vínculo sólido e facilitador.
Terminamos com palavras de agradecimento a várias pessoas e instituições. À Brotéria e aos Doutores Francisco Sassetti da Mota (SI) e António Júlio Limpo Trigueiros (SI), o nosso reconhecimento por terem acolhido o seminário na mais bela sala do palácio Costa Cabral; à direção da História em Revista estamos gratos pela aceitação da proposta do dossiê, bem como por todas as diligências levadas a efeito com autores, avaliadores e coordenadores; aos colegas que avaliaram os artigos e aos que os escreveram expressamos igualmente o nosso agradecimento.
Para acessar os artigos do dossiê clique aqui!
Guarapuava e Lisboa, dezembro de 2024
Profª Drª Isabel Drummond Braga (Universidade de Lisboa)
Prof. Dr. Rafael Afonso Gonçalves (Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná)
Editores do Dossiê
Você precisa fazer login para comentar.