Constituída como área de pesquisa histórica, a saúde consolidou-se através de pesquisas que auxiliam a discussão acerca do contexto histórico e social.
Com o surgimento da Covid-19, o mundo precisou, novamente, aprender a conviver com uma doença global. A pandemia modificou hábitos que alteraram a economia e todas as demais dinâmicas sociais. Os serviços de saúde e seus profissionais passaram a ganhar destaque no combate ao vírus, como na prevenção e na busca da cura.
Pensando nessa perspectiva, ao voltarmos nosso olhar para as discussões que envolvem a história da saúde, das doenças e da assistência, podemos vislumbrar de forma apurada, as relações do passado frente às dificuldades sanitárias impostas ao longo do tempo.
Assim, este dossiê se propõe a discutir estes olhares sobre os diversos períodos de tempo e de espaço, bem como as conexões e interfaces com outros campos, buscando a interdisciplinaridade, sempre mediada pelo aprofundamento teórico e metodológico no diálogo com os acervos e a bibliografia pertinente.
Assim, pesquisas históricas vêm ampliando esse debate, ao promoverem o diálogo entre a saúde, as doenças e a assistência, a partir da compreensão dos seus objetos, problemas e metodologias, amparadas nas fontes.
A organização desse dossiê se apresenta em seções temáticas, reunindo autores com abordagens de diversos recortes.
Na primeira seção – “Saúde tem história” – comparecem autores nacionais e estrangeiros, trazendo contribuições significativas como atestam seus textos.
Entre diferenças e similaridades: um estudo comparativo a respeito dos olhares sobre a “saúde” e a “doença” em “manuais de medicina popular”, homeopáticos e alopáticos, de finais do oitocentos, escrito por André Portela do Amaral é resultado de uma investigação sobre o conteúdo de três “manuais de medicina popular”, publicados no final do século XIX e amplamente divulgado no período.
Escrito por Astrid Dahhur, Circulación, prácticas y medicina popular: una reflexión sobre el curanderismo en el siglo XIX argentino, o texto busca refletir sobre a importância da circulação da informação através da oralidade, nas sociedades rurais dos séculos XIX e XX na Argentina, especialmente na província de Buenos Aires, com foco em como as pessoas reuniam informações úteis para garantir o acesso à saúde para elas e suas famílias.
Paulo Staudt Moreira e Nikelen Acosta Witter, no texto: O exercício de curar supõe o hábito e costume de o fazer: boticas e boticários no oitocentos no Brasil meridional buscam, com base em processos-crime, inventários post-mortem, artigos de jornais, documentos da cúria e do governo do Rio Grande do Sul, em comparação com a rica historiografia brasileira sobre o tema, apresentar um quadro da dinâmica dessas boticas e dos seus boticários e sua inserção na capital da província mais meridional do império brasileiro.
O artigo intitulado Sobre as virtudes medicinais dos insetos na obra Paraguay Natural Ilustrado de José Sánchez Labrador S. J. (1776-1776), escrito pela historiadora Eliane Cristina Deckmann Fleck, apresenta a análise de um dos livros que compõem a quarta parte da obra Paraguay Natural Ilustrado, escrita pelo padre José Sánchez Labrador, a partir de suas observações da fauna e da flora das regiões que compreendiam a Província Jesuítica do Paraguai. Na obra, o autor descreve as virtudes terapêuticas e os modos de preparo de vinte e um insetos, como escorpiões, aranhas, cantáridas, grilos e piolhos.
As autoras Laura Schäfer e Maria Helena Itaqui Lopes trazem o artigo denominado Do transplante de órgãos à engenharia de tecidos: a história que tem revolucionado a medicina e salvado vidas que tem como objetivo apresentar a história das descobertas relativas ao transplante de órgãos, a pesquisa desenvolvida até a atualidade e o impacto da pandemia pela Covid-19 nesses procedimentos.
Em seguimento, são trazidas histórias de doenças, que ampliam os estudos neste recorte temático, reforçando o campo de pesquisa que vem granjeando vivo interesse nos últimos tempos.
O artigo As doenças e o atendimento aos enfermos nos primórdios da ocupação do Continente de São Pedro (século XVIII), escrito por Rogério Machado de Carvalho se popoem a mostrar, a partir da análise e cotejamento dos documentos transcritos nos Anais do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul com a bibliografia de referência sobre o tema, as causas que motivavam as doenças que acometiam os soldados e os primeiros colonos instalados na Vila de Rio Grande, no século XVIII. Apresentando ainda, através da trajetória de Sebastião Gomes de Carvalho, primeiro cirurgião do Rio Grande de São Pedro, as condições encontradas pelos colonos e soldados instalados em uma região fronteiriça da América portuguesa.
Mui Señor Mio, despues de hauer reconozido las medizinas, parese que ha encontrado de menos todo lo que parese su papel: um estudo sobre o tratamento de tumores no Paraguai Colonial (Séculos XVII E XVIII) é texto de autoria de Bernardo Ternus de Abreu. Ele investiga concepções dos jesuítas sobre tumores, através de sua documentação escrita na região da Província Jesuítica do Paraguai, no Setecentos, procurando levantar informações sobre os itens utilizados para os tratamentos, bem como algumas características das intervenções medicinais realizadas.
Leonor C. Baptista Schwartsmann apresenta o artigo intitulado O fenômeno imigratório e o controle do Tracoma: repercussões da doença. Ela busca identificar as relações entre imigração e tracoma, uma doença ocular de grande incapacitação que pode levar à cegueira. Procurou fazer uma abordagem da enfermidade a partir de autores que explicaram sua presença ligada à mobilidade humana pelo Brasil.
É de autoria de Bruno Chepp da Rosa o texto intitulado Páginas de um saber médico: a presença da tuberculose em trabalhos publicados no Archivos Rio-Grandenses de Medicina. O artigo está dividido em duas partes: na primeira, é comentado sobre a constituição de uma imprensa médica em Porto Alegre a partir da fundação do Archivos Rio-Grandenses de Medicina (1920-1943), periódico cujas páginas serviram aos interesses profissionais de médicos diplomados e atuaram como um canal de enunciação e difusão de um saber médico-científico no estado; na segunda parte, discute-se a presença da tuberculose em trabalhos publicados no Archivos. Para tanto, é obedecido um recorte analítico: sem dar conta da totalidade de estudos publicados a respeito dessa doença, são selecionados textos em que seus autores discutiam estratégias profiláticas, meios diagnósticos e recursos terapêuticos empregados contra a tuberculose em um período que antecedia o tratamento eficaz com antibiótico.
Concepção e desenvolvimento da exposição ‘Gripe Espanhola: a marcha da epidemia’ do Museu de História da Medicina do Rio Grande do Sul”, escrito por Angela Beatriz Pomatti e Gláucia G. Lixinski de Lima Kulzer tem como objetivo apresentar o cotidiano da cidade de Porto Alegre, entre outubro e dezembro de 1918, período da eclosão da epidemia na cidade, abordada na exposição realizada pela instituição, além de apresentar a forma como foi pensada e organizada.
Janete Abrão escreveu o texto História, memória e comportamentos sociais em tempos de Covid-19 em que realiza uma reflexão sobre a pertinência da dimensão histórica e da memória coletiva no estudo das epidemias e pandemias. A perspectiva comparada proposta pela autora parte das narrativas históricas sobre os comportamentos sociais durante a gripe de 1918-1919, a cólera no século XIX, e a peste bubônica nos séculos XIV e XVIII, dentre outras epidemias e pandemias, e os contrasta com os comportamentos que foram evidenciados com a Covid-19.
As autoras Quezia Galarca de Oliveira, Milena da Silva Langhanz e Lorena Almeida Gill, no artigo intitulado “Sinto falta de abraços”: os impactos da pandemia de Covid-19 na vida cotidiana dos alunos e alunas da UFPel trata dos impactos que a pandemia do novo coronavírus trouxe para o cotidiano dos alunos e alunas dos cursos de graduação e pós-graduação da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). A metodologia empregada foi uma análise quali-quantitativa, através da construção de um questionário on-line, com 46 perguntas, lançado nas redes sociais.
Verificando a historiografia, é notório o crescente interesse de pesquisa dirigido às instituições voltadas à assistência. Elas vêm recebendo a atenção de pesquisadores e aqui suas apresentações enfeixem esta publicação, reafirmando que as temáticas balizadas pela saúde se firmaram e se afirmam no cenário dos estudos históricos.
Nesta terceira seção dirigida à assistência, o artigo intitulado A superlotação do Hospital Psiquiátrico São Pedro: implicações na internação de crianças e jovens entre os anos de 1932 e 1937 (Porto Alegre/RS) de autoria de Lisiane Ribas Cruz expõe algumas considerações referentes à pesquisa em desenvolvimento sobre a internação de crianças e jovens no Hospital São Pedro, entre os anos de 1932 e 1937.
O texto Estigma da Lepra: o manequim Lázaro na exposição do Memorial do Hospital Colônia Itapuã, de autoria dos pesquisadores Helena Thomassim Medeiros, Juliane Conceição Primon Serres e Diego Lemos Ribeiro aborda a exposição do Memorial do Hospital Colônia Itapuã, localizado no município de Viamão (RS). Discute questões vinculadas ao histórico e estigma da lepra, hoje conhecida como hanseníase, que foi a razão da construção deste hospital, único leprosário do Rio Grande do Sul. A exposição inaugurada em 2014 traz informações sobre o local e sobre a história desta doença. Contudo, um elemento expográfico se destaca em meio a esta construção narrativa: o manequim Lázaro. A partir deste objeto cenográfico, os autores visam problematizar algumas questões em relação ao imaginário coletivo acerca da lepra no tempo presente.
André Mota e Rodrigo Otávio da Silva escreveram A alimentação hospitalar moderna e a (re) produção do viver social no Hospital Miguel Couto em Natal (1927-1955). O autor analisa a alimentação no Hospital Miguel Couto, na cidade do Natal (RN), entre 1927 e 1955, buscando capturar as representações e práticas alimentares na instituição no momento transicional de um modelo hospitalar caritativo para um modelo de “hospital moderno”, enfocando, no estudo, a materialidade da produção e do consumo alimentar no hospital a partir da abordagem de Jean-Pierre Corbeau e de seu conceito de “sequência do comer”.
Gabrielle Werenicz Alves escreveu o texto Centros de Saúde e Postos de Higiene: novas instituições de saúde para novas políticas públicas (Rio Grande do Sul – 1928-1945) versando sobre a trajetória de criação e o funcionamento de duas instituições criadas no Rio Grande do Sul na área da saúde pública, entre os anos de 1928 e 1945: os Centros de Saúde e Postos de Higiene. Inicialmente, descreve os antecessores destas instituições. Além disso, aborda a trajetória de sua criação no estado do Rio Grande do Sul, bem como analisa seus objetivos, os serviços prestados e as transformações que estas instituições sofreram ao longo do período pesquisado.
Os autores Caroline Pereira Damin Pritsivelis, Antonio Rodrigues Braga Neto, Antonio Carlos Juca de Sampaio, Jorge Fonte de Rezende Filho e Joffre Amim Junior apresentaram o artigo intitulado “A Maternidade do Rio de Janeiro: história, ensino e assistência no Rio de Janeiro”. Ele destaca a importância da criação da Maternidade Escola da Universidade Federal do Rio de Janeiro, fundada em 1904 com o nome de Maternidade do Rio de Janeiro. Também faz sua relação com a construção de um modelo de ações voltadas não apenas para a ampliação, como também para a consolidação da assistência e ensino médico, ainda carentes de espaços específicos para esses fins.
Cuidar de pobres doentes nas memórias de enfermeiras religiosas na Santa Casa de Porto Alegre (1956-1973), escrito por Véra Lucia Maciel Barroso contempla oralidades registradas com Irmãs que atuaram no processo criatório e de ensino da Faculdade de Enfermagem e Obstetrícia Madre Ana Moeller, no mais antigo hospital do Estado. Trata também dos desafios que enfrentaram na Instituição, especialmente nos momentos de intermitentes crises e muitas carências no atendimento aos pobres.
Em breve tempo foi possível reunir um expressivo número de pesquisadores que aqui compartilham suas pesquisas, seus estudos e sua produção, cujo contributo demarca esta publicação com expressividade e proeminência.
Uma proveitosa leitura!
Angela Beatriz Pomatti | Éverton Reis Quevedo | Véra Lucia Maciel Barroso
Organizadores
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