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No Maranhão, se fala o melhor português: verdade ou mito?

O lugar em que se fala o melhor português é no Maranhão. Te peguei, isso não é verdade. Trata-se de um mito sobre o uso da língua portuguesa no Brasil, muito bem esclarecido pelo estudioso da linguagem Marcos Bagno. Vamos conversar mais sobre essa afirmação polêmica e descobrir como surgiu?

No Maranhão, era comum, especialmente entre os mais velhos, usar o pronome “tu” em produções como “tu cantaste, tu fizeste”, como recomendava a gramática tradicional. Hoje essa prática é menos frequente entre as gerações mais novas, que tendem a não usar o “tu” tão regularmente. Marcos Bagno explica que isso é um fenômeno natural: os falantes adaptam o idioma às suas necessidades. Vale lembrar que isso ocorria mais na capital do Estado, São Luís. Quer ver outro exemplo? Muitos brasileiros pronunciam a palavra “ruim” como se tivesse um acento no “u”, quando gramaticalmente a sílaba mais forte seja “im”. E tudo bem que seja assim; a linguagem está sempre se adaptando e evoluindo. 

Fonte: https://saoluis.ma.gov.br/saoluis/47/sao-luis#lg=1&slide=1

Portanto, é importante reiterar que não há no Brasil um lugar em que se fala melhor a língua portuguesa, todos nós adequamos a língua. Há lugares em que ouvimos o “tu”, como em partes do Rio Grande do Sul, de Belém do Pará, Florianópolis e em São Luís do Maranhão; em outros lugares, usa-se o “você”. A ideia de que os maranhenses não falam com sotaque reforçou o mito de que no estado se fala o melhor português do Brasil. No entanto, é um engano: converse com um maranhense da baixada, ou da ilha do amor ou do sul estado; é perceptível a diversidade de sotaques.

Fonte: http://mapas-brasil.com/maranhao.htm#google_vignette

Esse fenômeno da variedade de modos de falar derivou de questões históricas de colonização das áreas mencionadas. O professor Marcos Bagno explica que os falantes tendem a adotar a fala predominante local. É por isso que às vezes quando uma pessoa passa a morar em determinado lugar e, de repente, está falando como os demais. Precisamos compreender que não existe melhor ou pior forma de falar o nosso idioma. Todas são importantes, todas possuem seu valor, todas têm ou pelo menos deveriam ter seu espaço. Portanto, sempre que ouvir alguém afirmar que se fala melhor português em determinado local, seja na zona rural, urbana, no litoral ou em áreas economicamente influentes, lembre-se de que essa é uma ideia equivocada, não baseada na ciência das línguas. Não existe um lugar onde o português é falado de maneira superior; isso é apenas um mito. 

Autor: Benedito Salazar Sousa, estudante de Doutorado no Programa de Pós-graduação em Letras da UFPEL.

Referência
BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico. 56. ed. revista e ampliada. São Paulo: Parábola Editorial, 2015.

Com ou sem preposição? A variação na regência dos verbos “assistir” e “implicar”

“Assisto o filme” ou “assisto ao filme”? “Chuvas torrenciais implicam em inundações” ou “chuvas torrenciais implicam inundações”? Você já deve ter se deparado com essas duas formas linguísticas de expressar a mesma coisa referentes a cada verbo ou deve ter se perguntado qual delas é a forma correta de se falar ou escrever, certo? O certo mesmo é que ambas as formas existem e são legítimas para cada verbo. 

Os manuais de gramática normativa do português, como o de Evanildo Bechara (2005) e o de Celso Cunha e Lindley Cintra (2001), direcionam suas pesquisas para organizar a língua por meio de regras categóricas, incluindo regras de regência verbal. Para esses manuais, o verbo assistir, quando empregado no sentido de ver, é transitivo indireto, sendo necessária a presença da preposição diante do complemento desse verbo; dessa forma, do ponto de vista gramatical, seria “assisto ao filme”. Com relação ao verbo implicar, no sentido de ter consequência/resultar, funciona como um verbo transitivo direto, ou seja, sem preposição alguma diante de seu complemento; assim, sob esse ponto de vista, “chuvas torrenciais implicam inundações”. 

Mas o que se pode constatar diante disso é uma certa desobediência por parte dos falantes com relação à regência desses verbos. É cada vez mais frequente encontrarmos casos nos quais eles não fazem uso da preposição a quando o verbo assistir é utilizado, bem como fazem uso da preposição em quando utilizam o verbo implicar. E por que isso ocorre? Segundo os professores e pesquisadores Mariangela Rios de Oliveira e Sebastião Josué Votre (2009), essas novas formas linguísticas surgem das experiências dos usuários com a língua, ou seja, da forma como eles veem e interpretam o mundo, que, no caso dos verbos em questão, provocam a evolução dessas estruturas linguísticas.

Para o princípio da iconicidade, um dos fenômenos da teoria do funcionalismo norte-americano, as formas linguísticas tendem a ser motivadas pela função semântica, ou seja, do significado. Conforme Maria Luiza Braga (1996), no tocante à regência verbal, existe uma pressão entre a forma linguística (preposição) e seu conteúdo semântico (o que significa). Dessa forma, o verbo assistir, ele estabelece uma proximidade semântica com o verbo ver, transitivo direto; e, por conta disso, os falantes interpretam a regência do verbo ver no verbo assistir, tornando esse verbo transitivo direto. No caso do verbo implicar, preconizado como transitivo direto, passa, no uso, a indireto, devido à aproximação com os valores semânticos de “ter consequência em“, “resultar em“, fazendo com que os falantes reinterpretem o valor semântico do verbo resultar para o verbo implicar, tornando-o esse verbo transitivo indireto também, com o uso da preposição. 

Essas motivações linguísticas estão ligadas a propósitos comunicativos ancorados na relação entre os falantes; portanto, tanto “chuvas torrenciais implicam em inundações e assisto o filme” como “chuvas torrenciais implicam inundações e assisto ao filme” existem e são formas legítimas de variação da língua de expressar a mesma coisa.

Referências
BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 37. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005.
BRAGA, Maria Luiza. Processos de redução: o caso das orações de gerúndio. In: KOCH, I.G.V. (Org.). Gramática do Português falado. Volume VI: Desenvolvimentos. Campinas/São Paulo: Editora da Unicamp/Fapesp, p. 231-51, 1996.
CUNHA, Celso; CINTRA, Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
OLIVEIRA, Mariangela Rios de; VOTRE, Sebastião Josué. A trajetória das concepções de discurso e de gramática na perspectiva funcionalista. Matraga – Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da UERJ, v. 16, n. 24, p. 97-114, 2009.

Autor: Gabriel Zardo. Graduado em Licenciatura em Letras – Português e Mestre no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), na linha de Aquisição, Variação e Ensino.

A língua portuguesa deveria ser ensinada a todos do mesmo jeito?

Você deve pensar que essa resposta é simples. Será mesmo? Embora o ensino da língua portuguesa seja obrigatório em todas as escolas brasileiras, é preciso considerar as diferenças de uso da língua para pensar em uma forma de ensiná-la. 

Para começar, em nosso país não se fala só português. Segundo o professor Cléo Altenhofen, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, no Brasil se falam cerca de 270 línguas. Há alunos surdos que usam a Língua Brasileira de Sinais (Libras), indígenas e falantes de línguas herdadas dos seus antepassados imigrantes. Todos precisam dar conta de estudar formalmente português que, às vezes, nem é o idioma falado na sua casa! 

Além disso, mesmo para os brasileiros que só falam português, há diferenças entre a língua que se usa no cotidiano e aquela da escola e dos livros didáticos. Essas diferenças se relacionam ao local em que se vive, à classe social ou, ainda, à formalidade da situação em que nos comunicamos. Existe, também, uma vasta região de fronteira em que a língua portuguesa se mistura à língua dos vizinhos na comunicação diária, fazendo com que os habitantes dessas localidades falem um português com pitadas de espanhol ou de outras línguas. 

Assim, estudar português na escola pode ser bem diferente de usá-lo no dia a dia.  Como, então, ensinar a língua portuguesa a todos considerando tantas diferenças? A resposta está no diálogo, no respeito e na reflexão sobre o idioma e toda diversidade linguística, que deveria ser a base do ensino em todas as escolas do país.

A sala de aula deve ser um espaço em que estudantes e professores respeitem a língua de cada um e, a partir disso, construam acordos coletivos que permitam que todos se expressem sem nenhum constrangimento. Estudar a língua portuguesa não significa esquecer ou condenar outros modos de falar, isso porque pensar toda essa diversidade linguística torna a aprendizagem mais significativa e interessante para todos. 

Carlos Drummond de Andrade, poeta brasileiro, escreveu em um de seus poemas que para estudar português na escola, precisava esquecer a língua em que conversava, brincava ou namorava. Isso não é verdade! Para estudar português na escola é preciso entender que ele não é nem um, nem dois, mas vários; tão diverso quanto o povo, a culinária e as paisagens do Brasil.

Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Monumento_a_Carlos_Drummond_de_Andrade#/media/Ficheiro:Carlos_DA_2.jpg

Referências 
ALTENHOFEN, Cléo Vilson. Bases para uma política linguística das línguas minoritárias no Brasil, 2013. In: NICOLAIDES, C.; SILVA, K. A.; TILIO, R.; ROCHA, C. H. (Org.). Política e Políticas Linguísticas. Editora Pontes, 2013. p. 93-113.
BAGNO, Marcos. A inevitável travessia: da prescrição gramatical à educação linguística. In: BAGNO, Marcos. GAGNÉ, Gilles. STUBBS, Michael. Língua materna: letramento, variação e ensino. São Paulo: Parábola Editorial, 2002. p. 13-80.

Autora: Vivian Anghinoni Cardoso Corrêa. Licenciada em Letras e Mestre em Educação pela Universidade Federal de Pelotas e aluna do Doutorado em Letras na mesma instituição.

Preconceito linguístico e suas manifestações – não devemos proibir formas de falar

O preconceito linguístico é todo juízo de valor negativo a formas de falar e escrever, ou seja, a diferentes variedades linguísticas, com base em crenças sem fundamento científico acerca das línguas e de seus usuários. Porém, você deve ter se perguntando: mas o que são variedades linguísticas? São variações da língua como os sotaques, os dialetos, os regionalismos, as gírias, isto é, as diferenças observadas na fala e na escrita das outras pessoas.

Dessa forma, o preconceito linguístico nada mais é do que o julgamento sobre o modo como o outro fala, influenciado por características culturais, regionais, históricas, de etnia ou de gênero. Esses julgamentos, normalmente, se dirigem às variantes mais informais e ligadas às classes sociais menos favorecidas, em que, na maioria das vezes, as pessoas têm menos acesso à educação formal. 

Algumas manifestações do preconceito linguístico presentes em nosso dia a dia (e que muitas vezes nem percebemos que fazemos) são:

– Interromper as pessoas para corrigir como elas falam;
– Chamar alguém de “burro” por falar diferente;
– Debochar de quem usa gírias;
– Debochar de sotaques regionais;
– Dizer que não conversa com quem fala “errado”;
– Dizer que alguém faltou às aulas de português e que por isso fala “errado”;
– Dizer que quem falar “errado” é preguiçoso porque “hoje em dia tem internet”;
– Falar que os ouvidos doem quando ouve alguém falando “errado”;
– Rir de quem fala “pranta”, “bicicreta” e “chicrete”;
– Dizer que “pra mim fazer” e “eu vou ir” não existem;
– Falar que as pessoas precisam aprender o português antes de aprenderem inglês;
– Acreditar que é necessário escrever “certo” nas redes sociais e criticar as pessoas que não fazem isso;
– Criticar e debochar de quem usa linguagem inclusiva (como, por exemplo, “amigxs” e “todes”);
– Criticar alguém que fala uma língua minoritária. 

A primeira coisa que devemos fazer para combater o preconceito linguístico é ter uma mudança de atitude. Segundo o sociolinguista Marcos Bagno (2020), cada um de nós precisa elevar o grau da própria autoestima linguística e recusar os velhos argumentos que visam menosprezar o saber linguístico individual de cada um. Precisamos nos impor como falantes competentes da nossa língua materna e parar de acreditar que “o brasileiro não sabe português” ou que “o português é muito difícil”. Temos que acionar o nosso senso crítico e filtrar as informações realmente úteis, deixando de lado as afirmações preconceituosas e intolerantes. 

Fonte: https://contramao.una.br/wp-content/uploads/2021/05/Um-pais.jpg

É importante lembrar que, do ponto de vista científico, não existe “erro” de português, pois todo falante nativo de uma língua é plenamente competente nela e consegue diferenciar intuitivamente se uma forma linguística obedece ou não às regras de funcionamento do idioma. O que existe, na verdade, são diferenças de usos em relação ao que é proposto pela gramática normativa, aquela ensinada nas escolas. Essas diferenças nos permitem dizer “tinha uma pedra no caminho” ou “havia uma pedra no caminho”, “vou ir na casa do João” ou “irei na casa do João”, sem que uma seja considerada melhor do que a outra. Cada contexto pedirá uma linguagem mais ou menos formal.

Por último, é preciso entender que toda língua muda e varia. Segundo o pesquisador Marcos Bagno (2020), o que hoje é visto como “certo” um dia já foi considerado como “erro” e, o que hoje é considerado como “errado” pode vir a ser perfeitamente aceito como “certo”. A nossa língua prossegue em sua transformação e, nós devemos buscar entender as diferenças linguísticas, respeitando a identidade de todos os falantes. Como afirma Marcos Bagno (2020), “nós somos a língua que falamos” e, ela molda como vemos o mundo e nosso modo de ver o mundo molda a língua que falamos.

Referências
BAGNO, Marcos. Não é errado falar assim! Em defesa do português brasileiro. São Paulo: Parábola, 2009.
BAGNO, Marcos. Preconceito Linguístico. 56. ed. São Paulo: Parábola, 2020.

Autor: Julia Diogo, graduada em Letras Português e Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA). Atualmente, é mestranda em Letras, na linha de Aquisição, Variação e Ensino, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).

Mostre-me como você fala, que eu direi quem é você! É sério?

Com certeza, você já se pegou fazendo comentários sobre como os atendentes de telemarketing usam a língua portuguesa ou como falam os seus vizinhos. Além disso, deve ter opiniões sobre os sotaques do feirante da banca das verduras e do vendedor ambulante, de quem você quer comprar a linda rede nordestina para colocar na varanda. Entretanto, você já parou para pensar por que faz, ou melhor, por que fazemos isso? Por que reagimos e “julgamos” a pronúncia, o sotaque, as formas como as pessoas falam?

Fonte: Arquivo pessoal de Andrea Ualt

Para a pesquisadora brasileira Raquel Freitag, isso se deve a nossa consciência sociolinguística, isto é, a um conjunto de crenças, sentimentos, conhecimento e experiências com a(s) língua(s), que levamos nas nossas memórias. Essa consciência nos faz reagir, avaliar, classificar e entender modos de falar diferentes dos usados por nós, toda vez que os ouvimos.

Algumas das reações que temos sobre a(s) língua(s) não são conscientes: escutamos um determinado sotaque e automaticamente projetamos nossos sentimentos em relação a ele. Outras reações são mais reflexivas, falamos sobre elas: quando como opinamos sobre a “a língua ideal para conseguir um bom emprego”; ou “o melhor português do Brasil”, por exemplo.

Entretanto, a pesquisadora da Universidade de Ohio, Anna Babel, assegura que essas percepções (sejam elas mais ou menos conscientes) sobre modos de falar, sotaques e pronúncias das pessoas estão fortemente ligados a forma como as classificamos, levando em consideração requisitos que não são linguísticos, tais como raça, classe social, escolarização ou mesmo o lugar onde vivem. Para a autora, projetamos nossos preconceitos sociais na língua. Assim sendo, qualquer julgamento que façamos sobre a existência de uma “língua certa” ou um jeito bonito de falar, com certeza não corresponde à realidade dos fatos.

Nesse sentido, a consciência sociolinguística dos falantes é como um tesouro linguístico que, quando decifrado, revela uma série de informações importantes para os linguistas: os modos que entendemos as línguas e as pessoas; quais conhecimentos, crenças e sentimentos as comunidades compartilham sobre os falares uns dos outros; os preconceitos que algumas línguas e dialetos sofrem. A consciência sociolinguística torna possível entender a diferença linguística e cultural não como um problema que precisa ser resolvido ou eliminado, mas como um direito e recurso que melhora nossas relações com as outras pessoas e com o lugar em que vivemos.

Referências
FREITAG, Raquel M. K. O desenvolvimento da consciência sociolinguística e o sucesso no desempenho em leitura. ALFA: Revista de Linguística, São Paulo, v. 65, p. 1-27, 2021.

Vídeo
Como classificamos falantes duma língua?
TED Ideas Worth spreading, 2020, 10min47s. Disponível em: www.ted.com/anna_babel. Acesso em: 23 de agosto de 2022, 14h44min.

Autora: Andréa Ualt
Licenciada em Letras – Espanhol e Literaturas de Língua Espanhola, mestre em Educação e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPel. Professora de Espanhol do IFSul-Campus CaVG.

Devemos temer o Portunhol?

Quando ouvimos falar em portunhol, prontamente surgem alguns pré-conceitos. Podemos lembrar, por exemplo, do estereótipo de brasileiros tentando comicamente falar espanhol. Mas esse termo denomina mais de um fenômeno, segundo explica a linguista Eliana Sturza.

Portunhol pode indicar uma mistura entre português e espanhol que objetiva a interação e a comunicação imediata. É utilizado, por exemplo, por turistas e por vendedores e clientes em trocas comerciais, como uma prática para a compreensão entre usuários de diferentes línguas.

Chama-se também portunhol a forma de falar dos aprendizes que estão em níveis iniciais e que realizam mesclas entre os idiomas. É visto como problema a ser superado, ainda que seja um processo normal. Muito cursos de espanhol, por exemplo, oferecem “soluções” para que se evite cometer esse deslize.

Além disso, portunhol é um dos nomes que recebe a língua falada por muitos habitantes do norte do Uruguai, principalmente aqueles da zona rural e de periferias urbanas. Pode-se considerar uma herança das disputas entre portugueses e espanhóis por esse território. Por ser predominantemente oral e ser utilizado por pessoas com pouco nível de instrução, é caracterizado como variedade inferior ou “mal falar”. Atualmente, tem sido apresentado como marcador de identidade cultural, como afirma a linguista Isabella Mozzillo. Está presente, por exemplo, na produção do escritor Fabian Severo e do músico Chito de Mello.

Existe ainda o Portunhol Selvagem, que é um recurso de escrita literária. Compõe-se do entrelaçamento de outras línguas, além de português e espanhol, como guarani e inglês. Um dos maiores divulgadores dessa expressão é o poeta Douglas Diegues.

Muitas dessas definições são pejorativas e demonstram preconceito pelos modos de falar em que ocorrem misturas de línguas. O portunhol não demonstra incompetência e não precisa ser temido. É recurso comunicativo e artístico. É produto do processo de aprendizagem. É elemento da identidade dos falantes.

A riqueza da diversidade expressa por essa língua de contato pode ser vista no documentário Portuñol, premiado no Festival de Cinema de Gramado e no Festival As Amazonas do Cinema.

Página do Instagram portunol.doc. Divulgação dos prêmios que o documentário Portuñol recebeu no festival As Amazonas do Cinema.

Referências
MOZZILLO, Isabella. Vamos falar sobre o Portunhol. Tessituras, Pelotas, v. 6, n. 1, p. 59-64, jan./jun. 2018.
STURZA, Eliana. Portunhol: língua, história e política. Gragoatá, Niterói, v. 24, n. 48, p. 95-116, jan./abr. 2019.

Autora: Débora Medeiros da Rosa Aires é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Desenvolve pesquisa sobre ideologias linguísticas e ensino/aprendizagem de língua estrangeira. Atua como professora de Língua Espanhola na rede pública de ensino do município de Capão do Leão/RS.

Funkeiros cults

Nas últimas semanas, a página do Facebook chamada Funkeiros Cults ganhou visibilidade, chamando a atenção dos jovens na rede social. A página combina literatura, em sua maioria clássica, com uma linguagem informal composta por gírias utilizadas nas periferias do nosso país. A página tem como objetivo quebrar o preconceito de que a literatura é consumida somente por uma classe social dominante ou por acadêmicos.

A página Funkeiros Cults passa a mensagem principal do livro apresentado no post em uma frase, utilizando gírias utilizadas nas periferias. Essa forma de se comunicar é motivo de preconceito na sociedade. A linguista Maria Marta Pereira Scherre relata que o preconceito linguístico seria um julgamento desrespeitoso em relação à fala de outra pessoa. Ela ainda afirma que existem algumas variedades linguísticas que sofrem mais preconceitos e que são geralmente associadas a um grupo de pessoas que possuem um menor reconhecimento na sociedade. Mas o que é uma variedade linguística? “Variedade linguística” é o termo utilizado para se referir a formas diferentes de utilizar a língua de um mesmo país. Essas variedades linguísticas resultam da variação de uma língua que ocorre devido a vários fatores, como por exemplo, a faixa etária, a escolaridade, a região, o contexto social e cultural.

De acordo com o linguista da Universidade de São Paulo, Ronald Beline, os grupos compostos por indivíduos que se comunicam de forma semelhante são denominados comunidades de fala. A variedade linguística presente em uma comunidade de fala se caracteriza por um vocabulário específico de um grupo social e é denominada “socioleto”. E é o socioleto do grupo do qual os funkeiros fazem parte que a página Funkeiros Cults usa para fazer as suas publicações. Podemos observar na página uma criatividade linguística do português, que deve ser valorizada como tal, porque todas as formas de comunicações são válidas.

 

REFERÊNCIAS:

ABRAÇADO, Jussara. Entrevista com Maria Marta Pereira Scherre sobre preconceito lingüístico, variação lingüística e ensino. Cadernos de Letras da UFF, n. 36, p. 11-26, 2008.

BATTISTI, Elisa. Redes sociais, identidade e variação linguística. In: FREITAG, Raquel Meister Ko (Organizadora). Metodologia de Coleta e Manipulação de Dados em Sociolinguística. São Paulo: Editora Edgard Blücher, 2014. p. 79-98.

BELINE, Ronald. A variação Lingüística. In: FIORIN, José Luiz. Introdução à Lingüística. São Paulo: Contexto, 2003. p. 121-139.

 

Autor: Thomas de Julio Hopfengartner
Graduando do curso de Licenciatura em Letras – Português e Alemão na Universidade Federal de Pelotas. Faz parte do projeto de extensão: “Ações de Conscientização Linguística” na mesma universidade.

Qual é a diferença entre língua e dialeto?

Há quem diga que o que identifica falantes de uma mesma língua é a mútua compreensão. Ou seja, sei que eu e meu interlocutor falamos a mesma língua porque nos compreendemos um ao outro. Mas há problemas nessa definição. Por exemplo, falantes de português e espanhol frequentemente conseguem manter uma conversa sem muita dificuldade, cada um falando o seu idioma. Por outro lado, não é incomum pessoas do Brasil e de Portugal ambas dizerem que falam português e serem incapazes de se compreender. Seriam, então, espanhol e português a mesma língua, e o português brasileiro e o europeu línguas diferentes?

Nos Balcãs, os habitantes de Bósnia e Herzegovina, Croácia, Sérvia e Montenegro se orgulham de suas línguas – respectivamente, o bósnio, o croata, o sérvio e o montenegrino. Faz parte de suas identidades étnicas e é até perigoso discordar dessa divisão, visto que ela é uma das consequências de antigas disputas e de uma recente guerra. No entanto, do ponto de vista linguístico, as quatro são exatamente a mesma língua.

O critério da compreensão mútua também é utilizado em definições típicas de dialetos, que seriam variantes geográficas, étnicas ou socioeconômicas de uma língua. Se há compreensão mútua entre falantes de variantes diferentes, diz-se que falam dialetos de uma mesma língua. O que dizer da língua árabe, então? A maioria da população de Marrocos, no norte da África, diz falar árabe. A mais de 6 mil quilômetros ao leste de lá, nos Emirados Árabes, também ouviremos das pessoas que a língua delas é o árabe. Curiosamente, um marroquino e um emiradense não se compreendem. Eles dizem falar a mesma língua, mas sequer preenchem o critério de dialeto. Será que precisamos rever nossos critérios e definições?

Em geral, para a maioria dos linguistas, a diferença entre língua e dialeto interessa pouco, mas já que foi justamente para esclarecê-la que resolvi escrever este texto, trago a definição pontual e acertada de Max Weinreich: “dialeto é uma língua sem um exército e uma marinha”. Isto é, a real diferença entre os dois é política, não linguística. Dialetos, todos eles, são línguas.

 

Autor: Renan C. Ferreira
Graduado em Letras – Licenciatura em Língua Inglesa e Literatura (2010) e Mestre em Letras – Estudos da Linguagem (2018) pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Atualmente desenvolve sua pesquisa de Doutorado sobre Relativismo Linguístico e a Cognição Bilíngue na mesma instituição. Faz parte do grupo de pesquisa Línguas em Contato e atua como professor de língua inglesa há 13 anos.

Descrição e norma: abordagens linguísticas

Português é muito difícil!

Não é incomum essa formulação ocorrer entre estudantes, pessoas da mídia e (alguns) professores. Dentre os motivos, estão as escolas, o gargalo educacional no ensino básico e a finalidade desses estudos desaguarem no vestibular. E, quando se fala de língua e linguagem em veículos de comunicação, parte-se da norma: é certo falar assim, é errado falar daquele jeito (“porque a língua não permite tal uso”).

Esse olhar desconsidera que a língua é viva. Que ela muda. Que é, enfim, um objeto complexo. A impressão que se tem é que apenas a norma, a “lei gramatical” chega a público. Quando uma análise linguística “foge” de olhar à norma, a finalidade é outra: ao invés de dizer que tal formulação é errada, busca-se descrever os processos de sua ocorrência.

A Linguística consiste no estudo científico do objeto língua. Aqui são citadas duas abordagens, normativa e descritiva, mas existem tantas outras. A Linguística tem pouco mais de um século de existência, tendo como ponto inicial a publicação da obra Curso de Linguística Geral, de Ferdinand de Saussure, em 1916. Isso não significa que não houvesse reflexão sobre línguas e linguagens antes disso, mas o livro foi um divisor de águas em que houve, pela primeira vez, uma delimitação do objeto de estudo dessa ciência: a Linguística deveria estudar a estrutura, a língua, as regularidades: as normas.

Nesse primeiro momento, deixava-se de fora a linguagem, os aspectos individuais, históricos e sociais dos falantes. Com o tempo, linguistas notaram a necessidade de olhar para aquilo que Saussure havia ignorado: a língua era muito mais do que estrutura.

De acordo com Perini (2007, p. 21): “Não há a menor base linguística para a distinção entre ‘certo’ e ‘errado’ – o linguista se interessa pela língua como ela é, e não como deveria ser”.

Assim, os jeitos de se olhar para a língua e a linguagem são múltiplos, a depender do interesse do pesquisador. Só existimos enquanto seres de linguagem, é por ela que significamos o mundo. Com isso, busca-se considerar aspectos para além do certo e do errado, ou seja, para além da norma.

 

REFERÊNCIAS:

PERINI, Mario. Princípios de linguística descritiva: introdução ao pensamento gramatical. Parábola: São Paulo, 2007.

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. Cultrix, São Paulo: 2009.

 

Autor: Gabriel Agustinho Piazentin
Graduado em Linguística pela Unicamp e em Jornalismo pela Unimep. É aluno do mestrado em Divulgação Científica e Cultural, da Unicamp, tendo como objeto de pesquisa a divulgação científica da Linguística. Atualmente, também, é voluntário no Cursinho Popular Podemos+, em Piracicaba, onde dá aula de redação.