Arquivo mensais:novembro 2020

Existe racismo linguístico?

Para responder a esta pergunta, inicialmente, devemos compreender o papel da linguagem como constituidora de sentidos, ou seja, capaz de nomear a tudo e a todos. Para tanto, as relações coloniais serão o ponto de partida. Especificamente, devemos nos remeter ao combate feito pelas comunidades europeias para apagar as línguas dos grupos dos territórios dominados, com base em referenciais ocidentais, europeus, brancos, patriarcais e cristãos.

O apagamento das línguas demonstrava o que poderia ou não ser validado para aqueles espaços. Os saberes e conhecimentos dos grupos dominados eram exterminados e forjava-se, com isso, marcas de dominação e racismo.

Os colonizadores europeus construíram nossas referências de línguas “importantes” e produziram estruturas hierárquicas através das línguas a fim de denominar aqueles que eram considerados outros. Os outros carregavam uma coloração de pele, um cabelo e um falar não europeu. Essas marcas fazem parte de um passado-presente que, a partir da linguagem, nos racializou e materializou as formas que conhecemos como racismo.

A branquitude, ao oprimir, nos impõe o conceito de raça e nos nomeia como negros por não termos as características dessa mesma branquitude. Essa marca linguística que “ganhamos” nos aparta dos demais; somos outros; a linguagem nos fez outros. Vozes de uma branquitude detentora do poder e capaz de nomear. Claro, as línguas são racistas! Não! Elas apenas apresentam as relações de poder construídas por aqueles que delas fazem uso.

Já fomos nomeados demais. Queremos que nossas vozes falem as nossas dores. Queremos que o movimento aconteça de dentro para fora e não o contrário. Com esse desejo e cruzando preconceito racial, social e linguístico, o termo racismo linguístico é criado como uma perspectiva de análise das construções de língua e linguagem daqueles que não compõem o espectro branquitude-poder. O termo dá nome ao livro do professor Gabriel Nascimento, lançado em 2019, Racismo Linguístico: Os subterrâneos da linguagem e do racismo.

https://www.editoraletramento.com.br/produto/racismo-linguistico-os-subterraneos-da-linguagem-e-do-racismo-348

Como nossas práticas estão contribuindo para a problematização desse tipo de racismo? Como nossos privilégios afetam a condição das demais pessoas? Conseguindo responder a essas perguntas ficará fácil saber se existe racismo linguístico.

Referência
NASCIMENTO, Gabriel. Racismo Linguístico: Os subterrâneos da linguagem e do racismo. Belo Horizonte: Letramento, 2019.

Autor: Maicon Farias Vieira
Licenciado em Letras – Português e Espanhol, especialista em Educação em Direitos Humanos, mestre em Educação e doutorando no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pelotas, além de atuar como professor na rede municipal de educação de Pelotas.

 

Ser coda: você sabe o que isso significa?

As línguas de sinais são línguas naturais utilizadas pelas comunidades surdas. No Brasil, a Libras foi instituída como meio de comunicação legal das comunidades surdas brasileiras através de uma Lei do ano de 2002. Os filhos ouvintes de pais surdos começaram a ser referidos como “codas” por causa da criação da organização internacional CODA (Children of Deaf Adults).

Segundo a linguista e coda Ronice Quadros (2017), codas são crianças ou adultos filhos de pais surdos. Esses sujeitos estão naturalmente expostos a dois mundos diversos: o mundo dos surdos e o mundo dos ouvintes. Os codas compartilham a experiência de crescerem em famílias que utilizam uma língua de herança em casa que é, muitas vezes, diferente daquela utilizada fora do ambiente familiar, na maioria da sociedade. Podemos chamá-los de bilíngues, pois os codas transitam desde muito cedo nesses dois mundos e aprendem as línguas desses dois ambientes linguísticos.

http://www.facebook.com/CodaBrasil/
Coda Brasil

Anualmente, acontece o Encontro nacional de codas, um evento pensado para que estes possam trocar suas experiências, aprender novos conhecimentos e conhecer outros filhos de pais surdos brasileiros. No dia 28 de setembro de 2020, no canal do Facebook da Associação de surdos de Pelotas (ASP), Maitê Maus da Silva compartilhou suas experiências sobre ser coda. Ela nos explica que ser coda é ter orgulho de possuir pais surdos. Maitê comenta que em 2013 aconteceu o primeiro encontro de filhos de pais surdos no Brasil, que é um momento em que os codas se reconhecem entre seus pares que possuem experiências semelhantes. Para participar do Encontro nacional de codas, saber Libras não é uma obrigatoriedade, mas um dos requisitos é ser maior de 18 anos. Ela comenta que ter pais surdos ou mãe ou pai surdos possibilita aprendizagens diferentes que, como tudo na vida, têm o lado bom e o lado ruim.

No dia 9 de outubro, Natasha foi convidada a dar o seu relato sobre ser coda. Ela comenta que considera extremamente importante a participação dos filhos de pais surdos na Associação de surdos, pelo fato de poderem apreender os sinais utilizados na Libras. Muitas vezes, as famílias utilizam sinais provisórios dentro dos seus lares, além de ser importante esse contato com outros surdos, pois a língua de sinais é uma língua viva e os sinais sofrem mudanças. Natasha também menciona que na Associação de surdos há contato com o mundo dos surdos e, neste ambiente, seus pais surdos, ao se encontrarem com seus pares, se sentem felizes. Como coda, Natasha acredita que ela precisa participar do mundo ouvinte e também do mundo surdo, pois é nesse mundo que se encontram seus pais. “É preciso ter empatia e se colocar no lugar dos outros, pois no mundo ouvinte há muitas barreiras e preconceitos para as pessoas surdas”, afirma Natasha. O último ponto citado por ela é a questão das famílias que possuem codas terem suas experiências de vida muito semelhantes, e é nesse espaço social que há a possibilidade de trocas.

Nos seguintes links, é possível assistir na íntegra aos relatos de Maitê e Natasha em língua de sinais e com legendas e áudio em português: relato da Maitêrelato da Natasha. 

Referências
Children of Deaf Adults International Inc. Disponível em: https://www.coda-international.org/. Acesso em 06 nov. 2020.
QUADROS, R. M. Língua de Herança – Língua brasileira de sinais. Porto Alegre: Penso, 2017.

Autora: Karina Ávila Pereira
Doutora em Educação. Professora Adjunta da Área de Libras da Universidade Federal de Pelotas.