Arquivo mensais:março 2023

Você não precisa se preocupar em falar como um nativo!

Uma das metas mais comuns entre pessoas que começam a estudar uma língua estrangeira é, um dia, serem capazes de falarem como um falante nativo do idioma que estão aprendendo. De fato, muitos alunos acreditam que só podem se considerar fluentes quando não tiverem mais nenhum traço de sotaque das suas línguas maternas. Mas será que isso – perder o sotaque e falar uma língua estrangeira que nem um nativo – é mesmo possível? Para responder essa pergunta, devemos primeiro entender o que significa aprender uma língua estrangeira.

De acordo com a teoria do professor e pesquisador Larry Selinker (1972), todos nós possuímos uma estrutura linguística latente no cérebro. Conforme temos contato com uma língua, essa estrutura se atualiza, assumindo as formas da língua à qual estamos expostos. Em outras palavras, essa estrutura latente é um dispositivo que, quando ativado, permite que aprendamos outros idiomas. E, quando nos expressamos em outra língua, o que produzimos não é idêntico ao que um nativo produziria, mas sim algo intermediário, situado entre a língua materna e a estrangeira: uma interlíngua.

Podemos enxergar a interlíngua como um continuum com duas extremidades: numa delas, temos a língua materna do aluno; na outra, o falante nativo da língua que o aluno está aprendendo. O aluno, por sua vez, se encontra entre esses dois pontos. Conforme vai estudando as regras e formas da língua estrangeira, ele vai se afastando cada vez mais do ponto inicial e se aproximando do ponto final. Todos aqueles que estiverem em algum ponto desse continuum são considerados bilíngues.

Segundo a professora Isabella Mozzillo (2003), na interlíngua, existem elementos da língua materna do aluno, de quaisquer outras línguas que esse aluno conheça e da língua-alvo. Em outras palavras, a interlíngua é um produto do contato de todas as línguas do sujeito. Novamente de acordo com Larry Selinker (1972), todo falante de uma interlíngua passa por alguns processos, dentre os quais temos: as transferências linguísticas, a supergeneralização e a fossilização.

Transferências linguísticas: quando o sujeito utiliza uma regra que existe na sua língua materna, mas não na língua estrangeira. Exemplo: J’ai acheté un voiture. No exemplo , um aprendiz brasileiro de francês fala “un voiture” porque, em português, fala-se “um carro”. Contudo, em francês, voiture (carro) é um substantivo feminino, e, por isso, a forma correta seria “une voiture”.

Supergeneralização: quando o sujeito aprende uma regra da língua estrangeira e a emprega mesmo quando não é necessária. Exemplo: I goed to the beach yesterday. Nesse exemplo, um aprendiz de inglês, após aprender que deve-se acrescentar um -ed ao final de verbos regulares para conjugá-los no passado, aplica essa regra ao verbo “go”, cuja forma no passado é “went”.

Fossilização: quando o sujeito conserva na sua interlíngua formas de pronúncia ou construção de frases que vêm da sua língua materna e que não consegue deixar de utilizar, independentemente da quantidade de instrução que receba.

O fato é que a imensa maioria daqueles que decidem estudar uma língua estrangeira falarão uma interlíngua. Esse fato, contudo, não deve ser motivo para decepção. Se você fala uma interlíngua, isso significa, antes de mais nada, que você é uma pessoa bilíngue (ou multilíngue). Significa que há um esforço, da sua parte, para entender e se fazer entender pelo outro. A meta de falar da mesma forma que um falante nativo, além de ser irreal, pode, por vezes, levar à frustração. Conservar o sotaque da sua língua materna deve ser motivo não de vergonha, mas de orgulho.

Referências
MOZZILLO, Isabella. A interlíngua construída em ambiente autônomo de aprendizado de línguas estrangeiras. In: NICOLAIDES, Cristine et al. O desenvolvimento da autonomia no ambiente de aprendizagem de línguas estrangeiras. 2003. p.  247-273.
SELINKER, Larry. Interlanguage. IRAL. Boston, MA, v. 10, n. 3, 1972, p. 209-231.

Autor: Leonardo Ribeiro, graduado em Licenciatura em Letras – Português e Inglês pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Atualmente, é aluno do mestrado em Aquisição, Variação e Ensino, com pesquisas em multilinguismo e translinguagem.