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Você sabe o que são direitos linguísticos?

Já parou para pensar sobre como a pluralidade de línguas ao redor do mundo contribui para a riqueza cultural da sociedade? Os direitos linguísticos, ainda pouco difundidos fora do meio acadêmico, desempenham um papel crucial na promoção da diversidade cultural e na garantia de que todos tenham a oportunidade de se expressar na sua própria língua. Mas, afinal, o que são “direitos linguísticos”?

O tema dos direitos linguísticos, no sentido atualmente compreendido, começa a surgir após o término da Segunda Guerra Mundial com a publicação da Declaração Universal dos Direitos Humanos. O segundo artigo da Declaração deixa claro que todo ser humano deve poder desfrutar de seus direitos e liberdades sem qualquer distinção, como de raça, cor, sexo, língua etc. No entanto, de acordo com Ricardo Nascimento Abreu (2020), professor e pesquisador da Universidade Federal de Sergipe, é no movimento dos “novos direitos” no final do século XX e início do século XXI, como os direitos das mulheres, das crianças, dos idosos etc., que os direitos linguísticos ganham destaque.

Para Abreu, pode-se dividir os direitos linguísticos em dois tipos: o direito das línguas e o direito dos grupos linguísticos. Em relação ao primeiro, entende-se como normas e ações que buscam reconhecer, promover e preservar línguas, em especial aquelas consideradas “minoritárias”. Podemos mencionar, por exemplo, o Decreto nº 7387/2010, que regulamenta o Inventário Nacional da Diversidade, iniciativa que busca reconhecer diversas línguas nacionais e promover políticas públicas para essas línguas. Já sobre o segundo, entende-se como normas e ações que buscam garantir o direito de todo indivíduo se expressar nas suas próprias línguas. Podemos mencionar, como exemplo, o Projeto de Lei nº 5182/2020, que objetiva, caso seja aprovado, a atribuição de tradutores e intérpretes comunitários em todas as esferas do serviço público, como em hospitais e tribunais, para garantir a indivíduos que não falam português o direito de se expressarem na sua própria língua e, assim, o acesso aos serviços por intermédio desses profissionais.

A discussão sobre os direitos linguísticos é bastante recente, mas também muito ampla. Você já tinha ouvido falar sobre esses direitos? Comente aqui embaixo outros exemplos!

Referências
ABREU, Ricardo Nascimento. Contribuições para uma delimitação dos Direitos Linguísticos no Brasil. In: Seminário Ibero-americano de Diversidade Linguística, 1., 2014, Foz do Iguaçu. Anais […]. Foz do Iguaçu: IPHAN, 2014. p. 108-117.
ABREU, Ricardo Nascimento. Direito Linguístico: olhares sobre as suas fontes. A Cor Das Letras, v. 21, n. 1, p. 172-184, 2020.
BRASIL. Decreto nº 7.387, de 09 de dezembro de 2010. Institui o Inventário Nacional da Diversidade Linguística e dá outras providências.
BRASIL. Projeto de Lei nº 5182, de 2020. Institui-se como política pública a obrigatoriedade de alocação de tradutores e de intérpretes comunitários em todas as instituições públicas federais, estaduais e municipais, de forma permanente ou através da formação de núcleos especializados de tradução e de interpretação comunitária especialmente organizados para atender às demandas específicas de cada área. Brasília: Senado Federal, 2020.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948. 

Autor: Gabriel Plácido Campos, graduado em Bacharelado em Letras Tradução – Inglês-Português pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel).

Cognatos, cognates, Kognaten, cognados, cognats

Em algumas situações, quando estamos lendo algum texto em uma língua estrangeira, reconhecemos palavras com certas semelhanças com outras línguas. As palavras “emoção”, em português, “Emotion”, em alemão, e “emotion”, em inglês, são alguns exemplos de palavras cognatas entre diferentes línguas.

Os cognatos são definidos como palavras de línguas diferentes que apresentam semelhanças por terem algum vínculo em relação à origem. O pesquisador alemão Ronald Möller (2011) descreve que essa relação é analisada com base no processo evolutivo das línguas, para que comparações possam ser realizadas. 

Os pesquisadores Rena Helms-Park e Vedran Dronjić (2012) afirmam que a relação de significados entre as palavras pode ser direta, por terem a mesma origem, ou indireta, no caso dos empréstimos. Essas palavras semelhantes de línguas diferentes com sentidos diferentes são definidas como falsos cognatos. Por exemplo, Trikot em alemão se refere à camisa de time de futebol. Porém, quando lemos essa palavra ou ouvimos uma transmissão de futebol da TV alemã, possivelmente, o primeiro sentido em que pensamos é numa roupa de lã pesada.

Para fins de pesquisa, busca-se compreender a relação de palavras cognatas, para assim, desvendar os possíveis vínculos entre duas línguas na mente e suas transformações ao longo do tempo.

Referências
MÖLLER, Robert. Wann sind Kognaten erkennbar? Ähnlichkeit und synchrone Transparenz von Kognatenbeziehungen in der germanischen Interkomprehension. Linguistik online, v. 46, n. 2, p. 79–101, 2011. http://dx.doi.org/10.13092/lo.46.373
HELMS-PARK, Rena; DRONJIC, Vedran. Cognates. In: The Encyclopedia of Applied Linguistics. Oxford, UK: Blackwell Publishing, 2012. p. 1–7. https://doi.org/10.1002/9781405198431.wbeal0143

 

Autor: Lisandro Miritz Völz. Graduando em Letras Português e Alemão pela Universidade Federal de Pelotas e  integrante do Laboratório de Psicolinguística, Línguas Minoritárias e Multilinguismo.

Descolonização linguística: para o ensino de Literaturas Africanas de Línguas Africanas

A problemática da estandardização, oficialização e inserção de línguas africanas no sistema educativo varia muito nos diferentes países africanos. De acordo com o Ethnologue, há poucas línguas africanas oficializadas, ensinadas nas escolas e universidades como línguas de ensino. Por exemplo, em Moçambique, há aproximadamente 42 línguas autóctones, mas apenas 3 institucionalizadas. Mas, segundo um relato, o poder moçambicano tem uma vontade política de implementar 23 línguas nacionais no sistema educativo. No Gabão, é uma outra história. Além do fato de o francês ser a única língua oficial do país, não há verdadeiras políticas linguísticas públicas para a integração das línguas nacionais no sistema  educativo.

Hoje, existem disciplinas de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa no Brasil na universidade e na escola. Em vários outros países africanos, é ensinada a Literatura francófona, que inclui trabalhos produzidos por africanos francófonos, que é ensinada também na França, no Canadá, e assim por diante, e, a Literatura anglófona (literatura inglesa, nigeriana, ganesa, americana etc.). Sabemos que algumas línguas africanas são ensinadas também fora da África como o iorubá no Brasil, o wolof, o mandika e o bambara na França e na Rússia. Porém, disciplinas ou o ensino de Literaturas Africanas de Línguas Africanas propriamente dito (aqui não incluímos países como a Etiópia, que possui uma longa tradição de escrita autóctone) têm pouca visibilidade tanto na África quanto fora. Por quê?

A meu ver, para que haja o ensino oficial ou em massa das literaturas em línguas africanas, deveríamos, antes de tudo, perguntar onde estão as obras escritas em línguas e nos gêneros tradicionais africanos. Os registros mencionam a existência das literaturas em línguas africanas, que possuem uma longa história (desde o Egito antigo), e podemos citar algumas obras um pouco antigas como Feqer eske meqabe (O amor até a morte) da literatura amárica etíope (BUREAU, 1979), ou mais contemporâneas, como a obra bilíngue Cantares dos Ovimbundu do autor angolano Basílio Tchikale (2011), escrita na língua umbundu, E sok mɛ ná di mɔɔ-dhyeeb ɛ (Quando eu era criança), Tye bɛkwyel di ɛ, nɛ esee bɛ dii sɛ ɛ (Atividades típicas da nosso país), e Esesa mɛtse mɛgɔ (Histórias engraçadas), na língua bekwel, de um grupo de escrita criativa em língua bekwel no Congo, entre outros (MARTIN-GRANEL, 1992).

No entanto, percebemos que, apesar da existência dessas obras escritas em línguas africanas, constatamos que essas literaturas autóctones ainda têm um longo caminho para adquirir uma grande visibilidade nos domínios acadêmicos e escolares. E, para que se implemente um ensino democratizado das Literaturas Africanas clássicas e contemporâneas de línguas africanas no continente e fora, os autores africanos precisam produzir tais literaturas quantitativa e qualitativamente. Hoje, no Brasil, essa iniciativa é promovida por plataformas tais como a Revista NJINGA & SEPÉ, da Universidade de Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), que recebe produções científicas e literárias escritas em qualquer língua africana. Ela tem uma primeira edição na qual encontramos literatura em várias línguas africanas, dentre as quais a poesia na língua bekwel (EDOUHOU, 2021).

Fonte: https://cultura.culturamix.com/literatura/literatura-africana

Referências
BUREAU, J. T. Leiper Kane, Ethiopian Literature in Amharic. In: L’Homme, 1979, tome 19, n. 1. p. 152-153, 1979.
EDOUHOU, P. A. Voltar às fontes da mãe. Njinga & Sepé: Revista Internacional de Culturas, Línguas Africanas e Brasileiras São Francisco do Conde (BA), v. 1, n. 1, p. 282-288, jan./jun. 2021.
ELIBIYO, M. Z. Rapidolangue ou Flop des langues gabonaises à l’école. Paris: Edilivre-Aparis, 2016.
MARTIN-GRANEL, N. GERÁRD, A. Littératures en langues africaines. In: Cahiers d’études africaines, v. 32, n. 126, p. 343-346, 1992.
TCHIKALE, B. Cantares dos Ovimbundu. Luanda: Kilombelombe, 2011.

Autor: Peresch Aubham Edouhou
Falante de bekwel, ikota e francês, possui graduação em Letras – Português e Inglês pela Universidade Federal de Pelotas (2019). Atualmente é mestrando em Letras (Estudos da Linguagem) pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG) e escreve poemas em línguas africanas.

Torre de Babel – história baseada em fatos reais (só que ao contrário)

O mito da Torre de Babel conta por que existem tantas línguas no mundo. Nele, uma população unida e monolíngue decide construir uma torre que alcance o céu. Deus, irritado com a prepotência das pessoas, confunde a língua delas para que não se entendam mais e espalha as línguas pelo mundo.

Mito linguístico por trás dessa história: falar uma língua é o ideal. Falar muitas línguas é ruim, pois confunde e separa.

A narrativa de Babel talvez seja uma alegoria do que realmente pode ter ocorrido com as línguas humanas, só que os autores entenderam errado: não foram as muitas línguas que causaram a separação das pessoas, mas a separação é que deu origem a muitas línguas.

Quanto mais falantes uma língua houver e mais espalhados geograficamente estiverem, mais distantes se tornarão seus jeitos de se comunicar. Grupos separados e em contextos diferentes acabam adaptando a língua às suas realidades particulares e, com o tempo, a diferença entre seus dialetos se torna tão grande que um grupo já não compreende mais o outro. Temos, então, duas novas línguas. Foi mais ou menos assim que o latim se tornou português, espanhol, francês, italiano e outras vinte e poucas línguas. O processo é acelerado quando falantes de línguas diferentes entram em contato, pois elas incorporam elementos umas das outras, e daí às vezes nascem novas línguas. A língua crioula haitiana surgiu mais ou menos assim.

De volta ao mito, é importante esclarecer que, ainda que todas as línguas do mundo venham de uma só língua (não a de Babel, claro), isso ocorreu muito antes do surgimento de qualquer sociedade organizada. E é muito provável que tenham sido diversas “línguas-originais”, já que por mais de 2 milhões de anos (95,5% da existência dos humanos), fomos apenas vários bandos pequenos de caçadores-coletores nômades e desencontrados. A escrita só surgiu há 5 mil anos. Se a história da humanidade fosse uma pessoa completando 70 anos hoje, é como se ela só tivesse aprendido a ler e escrever um mês e meio antes desse aniversário.

Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Torre_de_Babel#/media/Ficheiro:Pieter_Bruegel_the_Elder_-_The_Tower_of_Babel_(Vienna)_-_Google_Art_Project_-_edited.jpg

A crença por trás de “uma língua = ordem; mais de uma língua = desordem” tem a ver com poder e dominação. É mais fácil controlar os subjugados se todos falam uma só língua – melhor ainda se for a do dominador. Essa crença alimenta outro mito: o de uma nação, uma língua. Embora a maior parte do mundo seja bilíngue e praticamente todos os países tenham mais de uma língua, a ideia que querem que compremos é a de que cada país fala uma língua: no Reino Unido é o inglês, na Itália é o italiano e no Brasil é o português. Deixemos essas fake news de lado e prestemos atenção aos fatos: no Reino Unido se fala inglês e outras 15 línguas, na Itália se fala italiano e outras 34 línguas e no Brasil se fala português, pomerano, talian, kaingang e outras 214 línguas. Sim, mais de duzentas!

Agora, compartilhem este post e vamos contar para todos que a diversidade linguística e o multilinguismo estão entre as melhores e mais preciosas qualidades da humanidade.

Ah! Só mais uma coisinha: no mito de Babel, Deus não amaldiçoou as pessoas ao lhes dar muitas línguas. Ele as salvou do tirano monolíngue que queria que construíssem uma torre para chegar a lugar nenhum.

Autor: Renan C. Ferreira
Graduado em Letras – Licenciatura em Língua Inglesa e Literatura (2010) e Mestre em Letras – Estudos da Linguagem (2018) pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Atualmente desenvolve sua pesquisa de Doutorado sobre Relativismo Linguístico e a Cognição Bilíngue na mesma instituição. Faz parte do grupo de pesquisa Línguas em Contato e atua como professor de língua inglesa há 13 anos.

O clássico e o popular… no Egito Antigo!

Observe a placa egípcia na foto. Quando esse objeto foi feito, há exatos 2037 anos atrás, o reino egípcio já existia há mais de 3000 anos. Três mil anos!

Fonte: o autor. Foto tirada no Kunsthistorisches Museum, em Viena, na Áustria. A estela de An-Em-Her foi feita para um alto-sacerdote de Ptah no ano de 217 a.C. O texto foi talhando em baixo-relevo numa peça de calcário.
Fonte: O autor. Foto tirada no Kunsthistorisches Museum, em Viena, na Austria. A estela de An-Em-Her foi feita para um alto-sacerdote de Ptah no ano de 217 a.C. O texto foi talhado em baixo-relevo numa peça de calcário.

A língua egípcia, assim como acontece com todas as línguas do mundo, foi mudando ao longo dos séculos, e é certo que um egípcio que trabalhou na construção da Grande Pirâmide, lá pelo ano 2570 a.C., não conseguiria compreender a pessoa que colocou essa placa aí na parede no ano 217 a.C.

Da mesma forma, um romano da época das lutas no Coliseu não conseguiria se comunicar fluentemente com um falante de português, francês ou espanhol, apesar de essas línguas modernas serem basicamente a mesma língua dos romanos, que foi mudando e se dividindo nos últimos 2000 anos.

A escrita clássica (hieróglifos) da língua egípcia é bastante complexa e era conhecida apenas pela elite. Usava um sistema de ideogramas (um símbolo = um conceito, mas sem informação fonológica), em combinação com sinais determinativos (sem pronúncia, mas com função gramatical) e fonéticos (um símbolo = um som). O sistema chegou a ter mais de 5000 sinais diferentes. A maioria do povo, fora da corte real e dos templos, sempre usou formas alternativas, algumas derivadas ou simplificadas dos hieróglifos, outras completamente paralelas ao sistema oficial.

De volta à placa da foto, abaixo do texto solene em hieróglifos, vemos uma linha e meia de uma escrita cursiva que hoje chamamos de demótico (do grego “dēmotikós”, ‘popular’). O texto maior está na língua e escrita clássica (é como se hoje escrevêssemos um texto importante em latim, como faz a Igreja Católica). Já a pequenina linha na parte de baixo traz um resumo do texto na língua egípcia como era falada em 217 a.C., para os que não sabiam ler na língua escrita clássica.

A escrita demótica entrou em contato com o alfabeto grego (assim como a língua egípcia falada ‘encontrou’ a língua grega antiga) e esse contato deu origem ao copta, a forma mais moderna da língua egípcia. O copta ainda era falado até pouco tempo atrás – hoje ainda existe como língua litúrgica na Igreja Ortodoxa Copta.

 

Autor: Renan C. Ferreira
Graduado em Letras – Licenciatura em Língua Inglesa e Literatura (2010) e Mestre em Letras – Estudos da Linguagem (2018) pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Atualmente desenvolve sua pesquisa de Doutorado sobre Relativismo Linguístico e a Cognição Bilíngue na mesma instituição. Faz parte do grupo de pesquisa Línguas em Contato e atua como professor de língua inglesa há 13 anos.

Língua e descolonização

Os séculos de colonização portuguesa no continente africano – e em Angola de forma específica – deixaram suas marcas: na língua falada, nos costumes, na história, nas memórias, na literatura. Nesse sentido, mesmo com a conquista da tão sonhada independência, é impossível retornar a uma época na qual os africanos ainda não haviam mantido contato com os europeus.

Um desses impactos consiste na questão da língua utilizada no país africano para a comunicação no cotidiano, para a produção de documentos oficiais ou para a escrita de obras literárias. Após a conquista da independência angolana, em 1975, a língua portuguesa – a língua do ex-colonizador, do opressor – foi adotada como idioma oficial do país. Muitos poderiam se questionar sobre as consequências da escolha, da preferência pela língua portuguesa: os idiomas africanos não poderiam ter primazia?

Estudiosos, como Laura Padilha (2002), apontam que o uso da língua portuguesa pelos angolanos não acontece de forma passiva. Dessa forma, o português, anteriormente sinal e evidência do colonizador, da escravidão e da opressão, torna-se uma importante ferramenta de revolução social, a partir da reinvenção e da renovação da língua do silenciador pelo silenciado. Uma vez usada pelos novos falantes de acordo com suas necessidades, a língua do dominador se volta contra a dominação. Faz parte dessa transformação do português a incorporação de palavras, expressões e estruturas sintáticas das línguas africanas – e, dessa forma, a língua europeia vai ganhando contornos angolanos.

As literaturas das ex-colônias portuguesas são chamadas por Pires Laranjeira (2000) de literaturas calibanescas, pois foram obrigadas a deglutir a literatura portuguesa, misturada com a brasileira, afro-americana, africanas etc., para criar algo só seu, para marcar a sua diferença. Assim, tendo em vista a importância da apropriação da língua portuguesa e da sua transformação em um idioma angolanizado para a solidificação da nação, fica claro o papel de destaque da literatura no processo. Como explica Edward Said (2011), o imperialismo se reforçou a partir de um discurso que o tornava algo natural e correto e a literatura em muito contribuiu para a propagação desse discurso. Dessa forma, a literatura igualmente assumiu o papel oposto de marcar a necessidade da independência, do reconhecimento dos povos africanos e da violência perpetrada sobre eles ao longo dos séculos de colonialismo.

Fonte:   Mayombe               Teoria Geral do Esquecimento         Mãe, Materno Mar                    Os transparentes 

 

Referências
LARANJEIRA, Pires (org.). Negritude africana de língua portuguesa: textos de apoio (1947-1963). Coimbra: Angelus Novus, 2000.

PADILHA, Laura Cavalcante. Novos pactos, outras ficções: ensaios sobre literaturas afro-luso-brasileiras. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002.

SAID, Edward. Cultura e imperialismo. São Paulo: Companhia das letras, 2011.

Autora: Luara Pinto Minuzzi
Doutora em Letras pela PUCRS, com a tese “Escrever para tornar a escuridão mais bonita: um estudo sobre a construção simbólica da morte em quatro romances angolanos”. Atua como professora de Literatura e de Língua Portuguesa no Colégio Monteiro Lobato (Porto Alegre).

Funkeiros cults

Nas últimas semanas, a página do Facebook chamada Funkeiros Cults ganhou visibilidade, chamando a atenção dos jovens na rede social. A página combina literatura, em sua maioria clássica, com uma linguagem informal composta por gírias utilizadas nas periferias do nosso país. A página tem como objetivo quebrar o preconceito de que a literatura é consumida somente por uma classe social dominante ou por acadêmicos.

A página Funkeiros Cults passa a mensagem principal do livro apresentado no post em uma frase, utilizando gírias utilizadas nas periferias. Essa forma de se comunicar é motivo de preconceito na sociedade. A linguista Maria Marta Pereira Scherre relata que o preconceito linguístico seria um julgamento desrespeitoso em relação à fala de outra pessoa. Ela ainda afirma que existem algumas variedades linguísticas que sofrem mais preconceitos e que são geralmente associadas a um grupo de pessoas que possuem um menor reconhecimento na sociedade. Mas o que é uma variedade linguística? “Variedade linguística” é o termo utilizado para se referir a formas diferentes de utilizar a língua de um mesmo país. Essas variedades linguísticas resultam da variação de uma língua que ocorre devido a vários fatores, como por exemplo, a faixa etária, a escolaridade, a região, o contexto social e cultural.

De acordo com o linguista da Universidade de São Paulo, Ronald Beline, os grupos compostos por indivíduos que se comunicam de forma semelhante são denominados comunidades de fala. A variedade linguística presente em uma comunidade de fala se caracteriza por um vocabulário específico de um grupo social e é denominada “socioleto”. E é o socioleto do grupo do qual os funkeiros fazem parte que a página Funkeiros Cults usa para fazer as suas publicações. Podemos observar na página uma criatividade linguística do português, que deve ser valorizada como tal, porque todas as formas de comunicações são válidas.

 

REFERÊNCIAS:

ABRAÇADO, Jussara. Entrevista com Maria Marta Pereira Scherre sobre preconceito lingüístico, variação lingüística e ensino. Cadernos de Letras da UFF, n. 36, p. 11-26, 2008.

BATTISTI, Elisa. Redes sociais, identidade e variação linguística. In: FREITAG, Raquel Meister Ko (Organizadora). Metodologia de Coleta e Manipulação de Dados em Sociolinguística. São Paulo: Editora Edgard Blücher, 2014. p. 79-98.

BELINE, Ronald. A variação Lingüística. In: FIORIN, José Luiz. Introdução à Lingüística. São Paulo: Contexto, 2003. p. 121-139.

 

Autor: Thomas de Julio Hopfengartner
Graduando do curso de Licenciatura em Letras – Português e Alemão na Universidade Federal de Pelotas. Faz parte do projeto de extensão: “Ações de Conscientização Linguística” na mesma universidade.

O que é intercompreensão?

Ao pensarmos em Brasil, temos a ideia de que a língua portuguesa é a única falada em todo território nacional. Entretanto, excluímos as realidades imigratórias, indígenas e fronteiriças que moldam nosso país linguisticamente.

Em um minicurso do professor Francisco del Olmo, dois conceitos de comunicação são abordados e estão relacionados às realidades expostas acima. Segundo ele, o cenário onde somente uma língua circula é nomeado comunicação endolíngue (com muitos dialetos). Já situações fronteiriças e turísticas configuram uma comunicação exolíngue, pois existe mais de uma língua em uso. Aplicando esses conceitos em nosso âmbito nacional, constata-se que há uma comunicação exolíngue, visto que há também situações imigratórias, indígenas, fronteiriças e turísticas que demandam o uso de outras línguas.

Dentro dessa comunicação exolíngue, se encontra o cenário da intercompreensão, que segundo Möller e Zeevaert (2015), é um processo motivado pelas relações entre as famílias linguísticas que pode ser ocasionado pelas palavras cognatas, similaridades na estrutura frasal e na ortografia. Línguas derivadas do latim, como por exemplo, português, espanhol, francês, italiano têm maior possibilidade de intercompreensão, dado que fazem parte da mesma família linguística. Dessa forma, um brasileiro que lê ou escuta esses outros idiomas pode compreendê-los mesmo sem ter conhecimentos sobre eles. Além disso, para Francisco del Olmo, a intercompreensão pode ocorrer de forma que nenhum falante precise ceder sua língua para que a comunicação aconteça. Logo, cada falante escolhe sua forma de falar e ambos tentam o processo de intercompreensão. Segundo o professor, esse processo se torna democrático e eficaz. O portunhol falado na fronteira entre Brasil e Uruguai, por exemplo, é fruto do processo da intercompreensão, o qual evidencia a democratização linguística. No vídeo da Coopération Educative France au Brésil, é possível conhecer outras línguas da mesma família linguística do nosso português.

 

 

REFERÊNCIAS: 

MÖLLER, R.; ZEEVAERT, L. Investigating word recognition in intercomprehension: Methods and findings. Linguistics, v. 53, n. 2, p. 314-315, 2015.

MINICURSO – INTERCOMPREENSÃO: Minicurso – Intercompreensão: A chave para as línguas – Aula 1. Vídeo apresentado por Francisco del Olmo. [Curitiba: Parábola Editorial], 2020. Publicado pelo canal Parábola Editorial.

O QUE É INTERCOMPREENSÃO? Vídeo disponibilizado no YouTube pela Coopération Educative France au Brésil.

 

Autora: Larissa Caroline Ferreira
Graduanda de Letras – Português e Alemão e voluntária no Laboratório de Psicolinguística, Línguas Minoritárias e Multilinguismo da Universidade Federal de Pelotas.

Diversidade linguística na Netflix

A Netflix, plataforma de streaming mais utilizada no Brasil, possui um catálogo de produções em diversas línguas. Às vezes, esses filmes ficam escondidos na plataforma. Por isso, fizemos uma lista com sugestões de filmes em outras línguas além do português e inglês. Produções audiovisuais são ótimas formas de conhecer outras línguas e outras culturas. Acessando um filme sugerido, é possível conhecer outros semelhantes. Os filmes são somente algumas sugestões e podem não estar mais disponíveis no futuro, devido às frequentes atualizações do catálogo da plataforma.

Árabe
Antes da explosão (Egito)
Barakah com Barakah (Arábia Saudita)
Tempestade de areia (Israel)

Alemão
Ele está de volta
3 turcos e um bebê

Bengali
Abby Sen

Coreano
O barbeiro do presidente
Tempo de caça

Chinês
Família a gente não escolhe (chinês cantonês)
Pérolas no mar (chinês mandarim)

Espanhol
Un padre no tan padre (México)
Roma (México)
Toc Toc (Espanha)
A noite de 12 anos (Uruguai)
A história oficial (Argentina)

Francês
Eu não sou um homem fácil
Sementes Podres
Bem-vindo a Marly Gomont

Georgiano
My happy family

Hebraico
Maktub

Híndi
Dhanak
Como estrelas na terra

Holandês
Layla M.

Iídiche
Menashe

Islandês
Inspire, expire

Japonês
Assunto de família

Khmer
First they killed my father

Marata
Killa

Nianja (língua do Malawi), junto com inglês
O menino que descobriu o vento

Mixteca (língua do México), junto com espanhol
Roma

Sueco
Jag älskar dig

Tâmil
Nila

Turco
Milagre na Cela 7
Confusão em família
Dügün Dernek

Urdu
Dukhtar

Wolof
Atlantique

O espanhol andino na cidade de La Paz, Bolívia

A língua espanhola é muito rica, pois é falada em muitos países. Segundo o Ethnologue, é a quarta língua mais falada no mundo, considerando o número total de falantes.

Em La Paz, Bolívia, expressões como “Nunca no me ha escuchado” ou “Sabe jugar futbol los domingos” podem chamar a atenção de um falante nativo de espanhol de outro lugar ou de um aprendiz da língua pela sua estranheza ou peculiaridade. Essas construções sintáticas são próprias de um dialeto do espanhol: o espanhol andino ou espanhol motoso, predominante nas regiões que compõem a Cordilheira dos Andes (ROSA, 2012). Esse dialeto nasce da influência que exerce o aimará e o quechua (em menor medida) na produção oral e escrita do espanhol. Neste curto texto, são apresentadas algumas características deste dialeto, tendo como foco o espanhol falado na cidade de Chuquiago Marka, ou La Paz, como é comumente conhecida.

Algumas das particularidades são mantidas desde a época do Vice-Reino do Peru (século XVI). Prova disso são os registros escritos que se tem de três ilustres personalidades da época: Guamán Poma, Santa Cruz Pachacuti y Tito Yupanqui (MENDOZA, 2012). De textos deles foram retirados alguns exemplos que cabem apresentar pela sua vigência:

– Uso de artigos definidos com nomes próprios: al San Francesco;
– Sequência pronominal me lo com valor de cortesia: me lo diesse mano;
– Uso da preposição en com verbos de movimento: lo lleve en casa de los pentores.

Nos textos de Aguilar, Huet e Pérez (2014), Mendoza (2012), Rivanedeira (2014, 2016a, 2016b) e Rosa (2012), encontramos outras propriedades deste dialeto que a qualquer paceño, habitante de La Paz, serão familiares, pela sua abundância num contexto informal de fala:

– Uso particular de posposições: Dámelo nomás pues pero.
– Dupla negativa: Nunca no me ha escuchado.
– Alteração da ordem da frase, uso de duplo possessivo e uso da preposição en mais locativo: De mi mamá en su tienda estoy yendo.
– Uso da preposição de ao invés de por: Ha llovido, de eso se ha mojado.
– Uso do verbo saber com sentido de hábito: Sabe jugar fútbol los domingos.

Esperamos que este breve resumo das características do espanhol andino tenha sido de utilidade ao leitor, expandindo seu conhecimento sobre Bolívia e sua cultura.

Fonte: Max Glaser (Google Earth).

 

REFERÊNCIAS:

AGUILAR, M. J.; HUET, M.; PÉREZ, S. Diccionario ejemplificado e ilustrado de bolivianismos, DEIB. In: XVII CONGRESO INTERNACIONAL ASOCIACION DE LINGUISTICA Y FILOLOGIA DE AMERICA LATINA (ALFAL), João Pessoa, 2014, p. 2209-2219.

MENDOZA, J. Antecedentes lingüísticos para una fisonomía del castellano de Bolivia. Discurso de ingreso a la ABL, Centro Cultural de España, 2012.

RIVADENEIRA, R. Bolivianismos en el dicionário de la lengua espanola. 23. ed. La Paz – Bolivia: Plural, 2014.

RIVADENEIRA, R. El castellano hablado en La Paz. Khana, La Paz – Bolivia, p. 1 – 4, 2016.

RIVADENEIRA, R. Registros lingüísticos. Academia boliviana de la lengua, La Paz – Bolivia, 2016.

ROSA, J. M. Diatelogia do español. Natal – Brasil: IFRN Editora, 2012.

 

Autora: Camila Alejandra Loayza Villena
Graduada em Letras – Português e Espanhol pela Universidade Federal de Pelotas (2019). Atualmente é aluna especial do mestrado em Letras na linha de pesquisa Aquisição, variação e ensino.