Guiné-Bissau: diversidade étnica e linguística muito além do português

A Guiné-Bissau, localizada na costa oeste da África, faz fronteira com a República do Senegal ao norte, com a República da Guiné (Conacri) ao leste e ao sul e é banhada pelo Oceano Atlântico, onde também se situam as ilhas de Cabo Verde. Com uma população estimada em 2.230.908 habitantes, o país se destaca pela rica diversidade étnica e linguística. O cenário linguístico é composto por múltiplas línguas, entre elas o crioulo ou Kriol (língua guineense), e o português, conforme o Decreto-Lei n.º 7/2007. Além disso, a presença do francês também se faz sentir, em razão da imigração proveniente de países vizinhos francófonos, como Senegal e Guiné (Conacri).

Fonte: https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=14980052

O crioulo, ou língua guineense, ocupa um lugar de destaque: é a principal língua de comunicação na Guiné-Bissau, funcionando como língua franca entre os vários grupos étnicos do país. Sua formação, segundo autores como Benjamin Bull e Filomena Embaló, remonta aos séculos XVI e XVII, como resultado do contato entre os portugueses (invasores) e os povos locais. Com o tempo, passou a ser também a língua de interação entre as diferentes etnias. Aprenda um pouco da língua guineense!

A língua guineense configura-se como um importante marcador de identidade nacional. Sua estrutura gramatical possui fortes influências africanas e um léxico majoritariamente derivado do português, porém com simplificação morfológica e com adaptações fonéticas e semânticas quando comparados os idiomas. O guineense tem variações dialetais: em Bissau e Bolama, é mais próximo do português; no sul, observa-se a influência de etnias como Beafada, Nalu e Balanta; no norte, há influências de Manjaco, Mancanha, Felupe e Papel e no leste, de Mandinga e Fula.

Durante a luta pela independência do país, o guineense foi essencial como instrumento de mobilização e de unidade nacional. Após a independência, seu uso se consolidou na administração pública, nos meios de comunicação e no cotidiano da população. Atualmente, é falado por cerca de 90% da população, porém, apesar da sua importância, enfrenta desafios relacionados à normatização da escrita e à falta de reconhecimento oficial.

Fonte: https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=157300587

A riqueza étnica da Guiné-Bissau se expressa na presença de diversos grupos: Baiotes, Balantas, Mansoancas, Beafadas, Banhuns, Bijagós, Brames ou Mancanhas, Casangas, Felupes, Fulas, Mandingas, Manjacos, Nalus e Pepeis. Segundo Tcherno Djaló, alguns grupos menores, como os Bagas, Baoyotes, Bambarãs, Cobianas, Conháguis, Djacancas, Jalofos (ou Wolof), Landumas, Cocolis, Padjadincas (ou Badjarancas), Tandas, Oincas, Quissincas, Saracolés, Sossos (ou Djaloncas), Timenes e os Sereres estão em risco de desaparecer enquanto identidades étnicos-linguísticas distintas.

Fonte: https://eportuguese.blogspot.com/2011/08/

Pode dizer-se que a diversidade étnica e linguística da Guiné-Bissau é um espelho da riqueza cultural do país, ao mesmo tempo que coloca desafios à sua coesão sociolinguística. O guineense, enquanto língua franca, contribui para o reforço da identidade nacional, embora a falta de uniformização continue a ser um obstáculo. Valorizar e conservar essas línguas é fundamental para promover a inclusão e fomentar o desenvolvimento sustentável.

Referências
BULL, Benjamim Pinto. O Crioulo da Guiné-Bissau: filosofia e sabedoria. Lisboa: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas, 1988.
DJALÓ, Tcherno. O Mestiço e o Poder: Identidades, Dominações e Resistências na Guiné. Lisboa: Autor, 2012.
EMBALÓ, Filomena. O crioulo da Guiné-Bissau: língua nacional e fator de identidade nacional. Revista Papia, v. 18, p. 101-107, 2008.

Autor: Marcelino Issa da Cunha. Mestre em Linguística no Programa de Pós-Graduação em Linguística (PROLING) na Universidade Federal da Paraíba, linha de pesquisa: Linguística Aplicada. Atualmente é doutorando em Letras no Programa de Pós-Graduação em Letras na Universidade Federal de Pelotas, linha de pesquisa: Aquisição, Variação e Ensino.

É necessário começar cedo a estudar uma língua estrangeira?

Você já deve ter ouvido falar, em anúncios de escolas ou centro de idiomas, que quanto mais cedo uma criança começa a estudar uma língua estrangeira, melhor será sua aprendizagem ou, ainda, que há uma idade limite depois da qual é muito difícil ou até impossível aprender outra língua. A partir dessa informação, muitos pensam que não adianta começar a estudar outra língua depois de se tornar adulto e, inclusive, desistem da ideia sem ao menos tentar. Mas será que essa informação é verdade? 

Essa ideia, chamada de hipótese do período crítico, foi muito difundida entre a população sem ter nenhuma comprovação científica. Embora a idade precoce seja um dos fatores que influenciam a aprendizagem, pesquisadores não chegaram a um consenso sobre ser essencial iniciar cedo os estudos de uma língua estrangeira para alcançar uma efetiva aprendizagem. 

Fonte: Imagem gerada pela IA do Canva

Os estudos na área indicam que, além da idade, são importantes muitos outros fatores como metodologia de ensino, semelhança com a língua materna, autoconfiança e identificação com a comunidade da língua que se pretende estudar, além da motivação pessoal. Aprender outro idioma inclui, portanto, questões que envolvem o aprendiz, o ambiente de aprendizagem e a própria língua. A experiência de aprender uma língua estrangeira é como um diamante, há várias facetas. A idade é somente uma delas. 

Fonte: Creative Commons

Assim, um bom nível de proficiência, a habilidade de usar uma língua estrangeira de forma eficiente em diferentes situações, pode ser desenvolvido independente da idade em que a pessoa começa a estudar. Mas será que isso significa que não é necessário que crianças estudem línguas estrangeiras? 

O estudo de línguas estrangeiras, certamente, trará muitos benefícios para qualquer criança. Diferentes aprendizagens contribuem para o desenvolvimento cognitivo, ou seja, a capacidade do cérebro armazenar novas informações e resolver tarefas cada vez mais complexas. Isso significa que estudar línguas estrangeiras contribuirá para a formação e o desenvolvimento infantil, assim como estudar música, ler, jogar xadrez, praticar esportes, entre outras atividades cognitivas. 

É importante destacar que, mesmo que você não tenha tido oportunidade de estudar outras línguas quando criança, começar mais tarde não impede que você aprenda de forma efetiva, se comunique de forma eficiente e interaja com outras culturas a partir do conhecimento linguístico. Não há motivos para desistir de aprender outra língua sem ao menos tentar, independente da idade. 

Referência
SINGLETON, D.; LEŚNIEWSKA, J. The Critical Period Hypothesis for L2 Acquisition: An Unfalsifiable Embarrassment? Languages, v. 6, n. 3, p. 1-15, 2021.

Autora: Vivian Anghinoni Cardoso Corrêa. Licenciada em Letras e Mestre em Educação pela Universidade Federal de Pelotas. Estudante de Doutorado em Letras na mesma instituição.

O bilinguismo é um antídoto contra o Alzheimer?

Recentemente, tem se disseminado a crença de que o bilinguismo seria uma forma de prevenir o Alzheimer. No entanto, essa afirmação está baseada em um mito. Para começar a questioná-lo, é importante ressaltar que tanto pessoas que falam uma língua quanto pessoas que usam duas línguas podem sofrer de Alzheimer, embora de maneiras diferentes.

O Alzheimer é uma doença que afeta as células cerebrais e provoca uma perda progressiva da memória. Esse declínio afeta a comunicação, o comportamento e a capacidade de raciocínio dos pacientes.

Fonte: https://www.freepik.com/premium-vector/alzheimer-illness-disease-patients-concept_16504648.htm

No caso dos bilíngues, além desses sintomas, observam-se outros. Para ilustrar, imaginemos um paciente que fala português e inglês e vive no Brasil. Ao falar, ele poderia misturar, de maneira não intencional, as duas línguas, usando palavras ou frases em inglês enquanto fala português. Além disso, ele poderia se dirigir aos seus familiares brasileiros em inglês, acreditando que está falando português. Como podemos ver, a comunicação com pacientes bilíngues traz desafios específicos.

Então, se qualquer pessoa pode desenvolver Alzheimer, existe alguma vantagem em falar várias línguas, como sugere o mito? Sim, pode ser que seja o tempo. Segundo os pesquisadores McLoddy Kadyamusuma, Eve Higby e Loraine Obler, há uma tendência na pesquisa que mostra que os bilíngues são diagnosticados com Alzheimer de 4 a 5 anos mais tarde do que os monolíngues, e os sintomas tendem a demorar mais a aparecer.

Esses benefícios do bilinguismo são resultado do que se conhece como “reserva cognitiva“, mudanças na constituição do cérebro que o tornam mais capaz de resistir a danos ou doenças. Aprender mais de uma língua pode contribuir para o desenvolvimento dessa reserva cognitiva. No entanto, é importante ter em mente que os bilíngues que obtêm maiores benefícios cognitivos costumam ser migrantes que utilizam as duas línguas em sua vida diária.

Fonte: http://bit.ly/42ZJMh4

Porém, não é necessário começar a aprender idiomas de forma compulsiva; outros fatores, como a educação, o estilo de vida saudável, leitura, atividade física e as relações sociais, também desempenham um papel fundamental na reserva cognitiva. Por isso, recomendo desafiar as capacidades mentais e físicas, encontrar prazer nas atividades e, claro, aprender uma nova língua.

Referência
KADYAMUSUMA, McLoddy; HIGBY, Eve; OBLER, Loraine. The neurolinguistics of Multilingualism. In: SINGLETON, David; ARONIN, Larissa (ed.) Twelve Lectures on Multilingualism. Bristol: Multilingual Matters Limited,  2019. p. 271-298.

Autora: Camila Alejandra Loayza Villena. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPel. Professora de espanhol para adultos.

Línguas conectadas na mente: o que são influências translinguísticas?

Você já deve ter ouvido falar em transferências (chamadas atualmente de influências translinguísticas por muitos pesquisadores) no processo de aquisição/aprendizagem de línguas estrangeiras. Em 1989, o pesquisador norte-americano Terence Odlin definiu a transferência como a influência de uma língua sobre o uso de outra, e esse conceito segue sendo usado na atualidade pelos professores e pesquisadores.

Fonte: imagem gerada pelo site https://br.freepik.com/

É importante salientar que os estudos em Linguística demonstram que uma língua influencia a outra não só no início da aquisição, mas durante toda a vida. Afinal, as transferências são um recurso comum quando falamos de pessoas bilíngues (que usam duas línguas) ou multilíngues (que usam três ou mais línguas), pois todas as línguas estão conectadas na mente e não divididas em “caixinhas” como se acreditava até alguns anos atrás.

Em 2021, a pesquisadora brasileira Raphaela de Freitas realizou um trabalho sobre as influências translinguísticas na produção oral em espanhol de brasileiros falantes de português, espanhol e inglês. Nesse estudo, é possível observar as transferências do português nas produções em espanhol, como, por exemplo, a utilização das palavras “logo” e “fonte” da língua portuguesa na fala em língua espanhola sendo usadas no lugar de “luego” e “fuente”: “logo viene dos otras personas: un chico y una chica” e “primero veo a un señor llegar a una acercarse a una fonte”. Isso ocorre, sobretudo, devido às semelhanças entre as duas línguas, o que motiva as influências, neste caso, na oralidade.

Além disso, as influências translinguísticas não ocorrem apenas no âmbito das palavras, como nos exemplos citados anteriormente, mas também em outros aspectos da língua, como na gramática e na pronúncia. O estudo das transferências, portanto, abrange uma variedade de fatores que moldam o uso das línguas por bilíngues e multilíngues em diferentes contextos comunicativos.

Em resumo, as influências translinguísticas desempenham um papel fundamental na aquisição e no uso de línguas ao longo da vida. Esse fenômeno ocorre tanto em bilíngues quanto em multilíngues e não se limita apenas ao início da aprendizagem, mas permanece em diferentes níveis de proficiência linguística e manifesta-se na escrita e na oralidade. Assim sendo, entender as transferências é crucial para compreender a dinâmica da aprendizagem de línguas e o impacto da interação entre elas.

Referências
FREITAS, Raphaela Palombo Bica de. Influências translinguísticas lexicais na produção oral em espanhol por brasileiros adultos imigrantes falantes de português, espanhol e inglês. 2021. Dissertação (Mestrado em Letras) – Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade Federal de Pelotas.
ODLIN, Terence. Language Transfer: Cross-Linguistic Influence in Language Learning. Cambridge: Cambridge University Press, 1989.

Autor: Lucas Röpke da Silva – Professor de espanhol e português como línguas estrangeiras. Atualmente, realiza o curso de mestrado acadêmico em Letras na Universidade Federal de Pelotas na linha de pesquisa Aquisição, Variação e Ensino.
Siga o autor: @lucas.ropke

É possível aprender uma nova língua a distância?

Aprender uma nova língua é uma habilidade interessante, tanto no ambiente de trabalho quanto na vida acadêmica. Além disso, conhecer línguas minoritárias, como pomerano ou talian, é ótimo, pois isso preserva memórias culturais de valor inestimável (leia mais sobre aqui: https://bit.ly/3XFUq8G). Os professores McLoddy Kadyamusuma, Eve Higby e Loraine Obler apontam outra vantagem: a aprendizagem de línguas beneficia nosso cérebro, impulsionando o desenvolvimento cognitivo, ou seja, como processamos informações. No entanto, nem sempre é fácil ter acesso a aulas de idiomas. O custo elevado e a necessidade de reorganizar a rotina muitas vezes são obstáculos. Felizmente, a tecnologia e a educação a distância podem nos ajudar. Atualmente, existem diversos cursos de línguas gratuitos e online, que permitem estudar no próprio ritmo, sem a pressão de horários fixos. A dúvida, porém, é: será que é possível aprender uma língua à distância?  Vamos descobrir!

Pesquisadores como Stephen Krashen defendem que, de maneira geral, a aprendizagem de línguas ocorre pela exposição à língua, ouvindo e interagindo até reconhecer padrões e associar sons a significados. Com o uso ativo, seja falando ou escrevendo, as conexões cerebrais se fortalecem. O processo também envolve fatores cognitivos, como a memória, a atenção e processamento da linguagem, que nos ajudam a interpretar e aplicar as informações. Mesmo à distância, podemos ativar esses processos.

Segundo a pesquisadora Mailce Borges Mota, a memória é essencial no aprendizado de línguas, envolvendo dois sistemas principais: a memória declarativa, que armazena vocabulário e regras gramaticais, e a memória procedural, que nos permite falar e escrever automaticamente. Na educação a distância, tecnologias ajudam a fortalecer a memória e, consequentemente, a aprendizagem. Entre elas, podemos citar o feedback automático e aplicativos de repetição espaçada, uma técnica de aprendizagem que consiste em revisar um conteúdo várias vezes, mas com intervalos de tempo entre as revisões. Isso ajuda a memorizar melhor as informações do que estudar tudo de uma só vez, conforme o pesquisador Nicholas Cepeda e seus colegas.

Além disso, ferramentas como aplicativos de gamificação, que oferecem pontuações e recompensas, ajudam a manter nossa motivação e foco (aqui vão duas opções: Kahoot e Educaplay. Também é comum o uso de tecnologias como reconhecimento de voz e tradução automática, como o Google Tradutor que facilitam e agilizam a compreensão de pronúncia e gramática, tornando o processo de aprendizagem mais eficiente.

Assim, não há motivos para acreditar que aprender línguas à distância seja impossível. Pelo contrário: essa abordagem oferece benefícios para sua jornada linguística. Quem sabe esta informação não seja um incentivo para se aventurar na aprendizagem de uma nova língua como o espanhol para conhecer países vizinhos?

 

Referências
CEPEDA, Nicholas.; PASHLER, Harold.; VUL, Edward.; WIXTED, John.; ROHRER, Doug. Distributed practice in verbal recall tasks: A review and quantitative synthesis. Psychological Bulletin, Washington, DC, v. 132, n. 3, p. 354–380, maio 2006.
KADYAMUSUMA, McLoddy.; HIGBY, Eve.; OBLER, Loraine. The Neurolinguistics of Multilingualism. In: ARONIN, Larissa; SINGLETON, David. (ed.). Twelve lectures on multilingualism. Bristol: Multilingual Matters, 2019. p. 271-296.
MOTA, Mailce Borges. Sistemas de memória e processamento da linguagem: um breve panorama. Revista LinguíStica, v. 11, n. 1, p. 205-215, 2015.
KRASHEN, Stephen. Principles and Practice in Second Language Acquisition. Oxford: Pergamon Press, 1982.

Autora: Juliana Ribeiro dos Santos, graduada em Licenciatura em Letras – Português e Inglês. Atualmente, é aluna do Mestrado em Letras, na mesma universidade.

 

 

Keep calm: Code-switching é normal

Code-switching é um termo em inglês utilizado para se referir à alternância linguística, ou seja, a troca de um idioma para outro em uma interação. Se você usa mais de uma língua no seu dia a dia, provavelmente, já fez isso, porque é uma prática comum para quem é bilíngue.

Conforme discutido pela professora Isabella Mozzillo, o code-switching mostra a flexibilidade do nosso cérebro. Todas as informações sobre as palavras de uma língua são armazenadas no léxico mental, ou seja, uma base de dados dentro da nossa memória. Como essa informação está sempre disponível para nós, ao alternar de um idioma para outro, mobilizamos o nosso conhecimento sobre a língua que desejamos usar naquela situação. Ao fazer isso, a nossa mente precisa ignorar o que sabemos sobre a língua que não está sendo usada. Logo, só alternamos entre idiomas porque temos essa capacidade de controlar qual língua usar em cada momento.

As pesquisadoras Louise Dabène e Danièle Moore explicam que o code-switching pode acontecer em momentos diferentes. Ao interagir com alguém, eu posso: alternar de um idioma para o outro em uma mesma frase, trocando uma única palavra ou uma sequência de palavras, como em 1, na figura abaixo; trocar o idioma entre uma frase e outra, como em 2; e/ou dizer várias frases em um idioma e, após um tempo, mudar para outro, como em 3.

Essas mudanças não são aleatórias, pois dependem do interlocutor, do contexto social e da intenção comunicativa. Um falante de português e inglês, por exemplo, só fará essa troca com alguém que conheça as mesmas línguas. Então, se essa pessoa interagir com um falante de português e espanhol, a interação será apenas em português, já que eles não compartilham o outro idioma que conhecem.

Além disso, é importante saber que o code-switching, além de ser uma estratégia para auxiliar a comunicação, pode ser motivado por diferentes razões: a falta de um vocabulário específico, a necessidade de expressar uma emoção ou de marcar uma identidade, a vontade de mudar de assunto etc. Logo, podemos alternar entre idiomas tanto para comunicar uma ideia quanto para expressar a nossa identidade. Para exemplificar isso, pode-se observar situações que ocorreram nas Olimpíadas de Paris (2024). Durante os jogos, alguns brasileiros criaram cartazes comparando comidas tradicionais do Brasil e dos países rivais. Comidas típicas brasileiras foram escritas em português e o restante da frase em inglês. Essa foi uma forma de usar o code-switching para marcar a identidade brasileira e, ao mesmo tempo, provocar o time rival.

Fonte: https://midianinja.org/mais-sushi-e-menos-coxinha-entenda-o-humor-do-brasil-ser-fregues-do-japao-nas-olimpiadas/
Fonte: https://www.uol.com.br/esporte/olimpiadas/ultimas-noticias/2024/08/08/brasileiros-provocam-eua-no-volei-em-paris-coxinha-e-melhor-que-hot-dog.htm

Portanto, podemos alternar entre línguas quando apenas um idioma não é o suficiente para comunicar tudo o que queremos dizer.

Referências
DABÈNE, Loiuse; MOORE, Danièle. Bilingual speech of migrant people. In: MILROY, Lesley; MUYSKEN, Peter. (org). One speaker, two languages: cross-disciplinary perspectives on code-switching. Cambridge: Cambridge University Press, 1995. p. 17-44.MOZZILLO, Isabella. O code-switching: fenômeno inerente ao falante. Papia, v. 19, p. 185-200, 2009.

Autora: Aline Mackedanz dos Santos. Graduada em Licenciatura em Letras – Português e Inglês pela Universidade Federal de Pelotas. Atualmente, é mestranda na linha de Aquisição, Variação e Ensino na mesma universidade.

 

Pode traduzir na aula de língua estrangeira?

É muito comum no Brasil a crença de que na aula de língua inglesa, por exemplo, o professor e o estudante só podem falar inglês e não podem recorrer ao português em nenhum momento. Essa ideia está presente em muitas escolas e cursos de idiomas, não só de inglês, mas também de diferentes línguas como espanhol, francês, italiano, alemão, entre outras.

Mas afinal, pode traduzir durante a aprendizagem de língua estrangeira? A resposta é: deve! A tradução em sala de aula é um recurso valioso que pode trazer benefícios tanto para os alunos quanto para os professores. As pesquisadoras Clara Guedes e Isabella Mozzillo afirmaram, em uma pesquisa realizada em 2014, que a utilização da língua materna na aula de língua estrangeira é uma ferramenta que pode facilitar a compreensão de conteúdos por parte dos estudantes, principalmente daqueles que estão nos estágios iniciais de aprendizagem. 

Além disso, a tradução pode auxiliar na ampliação de vocabulário, uma vez que ao compararmos palavras entre línguas, expandimos o vocabulário nas duas línguas e adquirimos uma melhor compreensão, por exemplo, de palavras cognatas (semelhantes) e falsas cognatas (parecidas nas duas línguas, porém com significados diferentes).

Há muitos anos, alguns pesquisadores, por exemplo, Domingos Corrêa da Costa, em um texto seu publicado em 1988, já defendiam que a tradução poderia ser considerada como uma quinta habilidade. Isto é, além das quatro habilidades básicas trabalhadas em sala de aula de língua estrangeira (ouvir, falar, ler e escrever), a tradução seria mais uma habilidade.

Como vimos, a tradução é um recurso muito útil para a aula de língua estrangeira. Sendo assim, o que os professores podem fazer para trabalhar a tradução em sala de aula? Uma possibilidade é promover explicações contrastando as línguas. Dessa forma, é possível mostrar exemplos de estruturas que são similares e diferentes nos dois (ou mais) idiomas. Isso ajuda os estudantes a entenderem as particularidades de cada língua e evitarem erros comuns cometidos pelos aprendizes.

Outra possibilidade é realizar atividades de tradução inversa, solicitando aos alunos que traduzam textos da língua estrangeira para o português e vice-versa. Uma sugestão é utilizar gêneros que são tipicamente traduzidos, como legendas e canções em sites como o Vagalume, por exemplo. Os professores podem propor aos estudantes que já possuem pelo menos um nível intermediário da língua uma atividade na qual se solicite a legendagem de um curta-metragem em sala de aula ou a tradução de um música que gostem para enviar para a publicação. Outras atividades mais criativas, como traduzir um poema ou um miniconto, também podem ser feitas em sala de aula. Isso reforça a compreensão e ajuda a consolidar o vocabulário. Nesse sentido, longe de ser um obstáculo, a tradução pode ser uma aliada poderosa no processo de ensino e aprendizagem de línguas estrangeiras.

Referências
COSTA, Domingos Corrêa da. Tradução e ensino de línguas. In: BOHN, Hilário; VANDRESEN, Paulo (orgs.). Tópicos de lingüística aplicada: o ensino de línguas estrangeiras. Florianópolis: Editora da UFSC, 1988. p. 282-291.
GUEDES, Clara Pereira Sampaio; MOZZILLO, Isabella. O papel da tradução no cruzamento de fronteiras linguísticas e culturais no ensino de língua estrangeira. In: ENCONTRO INTERNACIONAL DE LETRAS, 8.; JORNADAS LATINOAMERICANAS DE LINGUAGENS E CULTURA, 1.; JORNADINHAS DE LITERATURA INFANTIL E ENSINO, 1., 2014, Foz do Iguaçu. Anais… Foz do Iguaçu: Unioeste/Unila, 2014. p. 508-512.

Autor: Lucas Röpke da Silva – Professor de espanhol e português como línguas estrangeiras. Atualmente, realiza o curso de mestrado acadêmico em Letras na Universidade Federal de Pelotas na linha de pesquisa Aquisição, Variação e Ensino.

A aprendizagem da língua coreana no Brasil

Com a popularização da cultura sul-coreana, por exemplo, através do K-pop e dos K-dramas, a língua coreana ganha destaque mundial, e o Brasil não é exceção. Um relatório do Duolingo em 2020 apontou o coreano como o segundo idioma de maior crescimento no país, e, em 2023, alcançou a sexta posição entre os mais estudados no aplicativo, ultrapassando o português. Esse avanço resulta não só do interesse cultural, mas também do investimento da Coreia do Sul, que, por meio do Instituto Rei Sejong, apoia o ensino do coreano em 258 institutos em 85 países, incluindo cinco no Brasil.

Grupo Seventeen (Pledis/Divulgação)
K-drama Lovely Runner (TVN/ Divulgação)

Os dados levam à reflexão sobre as perspectivas de aprendizagem do coreano no Brasil. Para a comunidade sul-coreana brasileira, a língua coreana desempenha um papel importante. Para muitos, ela é a língua materna — idioma aprendido durante a infância, geralmente no contexto familiar. Ela pode ser uma língua de herança, conectada à identidade cultural e étnica. Nesse caso, os descendentes de coreanos nem sempre falam fluentemente o idioma, mas está presente no ambiente familiar, atuando como um marcador cultural e identitário para essas pessoas. 

Fora da comunidade, o coreano é geralmente aprendido como uma língua estrangeira, ou seja, ensinada fora do seu contexto nativo. Em alguns casos, pode ser uma segunda língua, que, conforme a linguista Karen Spinassé, exige comunicação diária e desempenha um papel importante na integração social. No entanto, independentemente de ser uma língua estrangeira ou uma segunda língua, o coreano é uma língua adicional para a maioria dos brasileiros, ou seja, aprendida após a língua materna, refletindo a complexidade do multilinguismo.

Apesar de sua ascensão, o coreano é uma língua falada por poucos no Brasil, seu uso se concentra em pessoas com vínculos culturais com a Coreia ou em fãs da cultura sul-coreana. Todavia, o curso de graduação em coreano da USP, o único da América do Sul, já é um dos principais polos de estudos coreanos na América Latina, e a demanda por mais cursos só aumenta.

À medida que mais brasileiros estudam o idioma e instituições ampliam suas ofertas, é possível imaginar que, no futuro, o coreano terá um papel relevante no cenário multilíngue brasileiro, tornando-se uma nova oportunidade de aprendizagem e (re)conexão cultural.      

Referências
KING SEJONG INSTITUTE FOUNDATION. King Sejong Institute Locations.
SPINASSÉ, Karen Pupp. Os conceitos Língua Materna, Segunda Língua e Língua Estrangeira e os falantes de línguas alóctones minoritárias no Sul do Brasil. Contingentia, Porto Alegre, Brasil, v. 1, n. 1, p. 1-10, 2008. 

Autora: Giovana Canez Valerão, graduanda em Letras – Português e Espanhol pela UFPEL, é pesquisadora do Laboratório de Psicolinguística, Línguas Minoritárias e Multilinguismo (LAPLIMM), onde desenvolve o projeto “A hallyu, o coreano como língua adicional e o multilinguismo de brasileiros”.

 

DODA e o orgulho surdo

DODA é uma sigla que não é comum no país e no mundo. Porém, acreditamos que vocês já tenham lido ou ouvido falar sobre CODA; inclusive, no Tesouro Linguístico, há um texto dedicado a explicar sobre o que é ser CODA. Embora os termos sejam parecidos, há uma diferença entre CODA e DODA que iremos esclarecer neste texto. Vamos ver?

O que é CODA?

O termo, originário do inglês, é uma abreviação para Child of Deaf Adults. Em português, a expressão é traduzida como “Filho de Pais Surdos”. Ele se refere às pessoas ouvintes que têm pai ou mãe surdos, ou até mesmo ambos.

O que é DODA?

DODA também é um termo originário do inglês, é uma abreviação para Deaf Child of Deaf Adults. Em português, a expressão é traduzida como “Filho Surdo de Pais Surdos”. Ele se refere às pessoas surdas que têm pai ou mãe surdos, ou ambos. Portanto, os filhos surdos de pais surdos são chamados de DODA, embora, na maioria das vezes, sejam chamados simplesmente de “Deaf families” (“família surda”).

Quantas famílias DODA existem no mundo

As famílias surdas são uma minoria: aproximadamente 5 a 10% dos filhos surdos nascem de pais surdos, enquanto os restantes 90-95% de todos os filhos surdos nascem de pais ouvintes. Ao contrário dos filhos surdos de famílias ouvintes, os DODAs crescem em lares onde a língua de sinais, como a Libras, é a principal forma de comunicação e possuem cultura surda, já que tanto os pais quanto os filhos são surdos.

Orgulho surdo?

Muitas vezes, as famílias surdas recebem o diagnóstico de surdez dos seus filhos e, quando os médicos confirmam que seus filhos são surdos, as famílias comemoram e até fazem festa porque os filhos são surdos como os pais! Isso é um tipo de orgulho surdo (Deaf Pride). Também existe a frase “Viva a família surda”. Tem uma imagem muito reconhecida no mundo: quando o médico diagnostica que seu filho é surdo, os pais surdos comemoram! Claro que os ouvintes podem ficar chocados, porém, para as famílias surdas, isso é motivo de muito orgulho

Fonte: https://deaf-art.org/profiles/matt-daigle/

Mostramos nossa experiência ao receber o diagnóstico da nossa primeira filha, Fiorella, em 2015, e da segunda filha, Florence, em 2019.

Fonte: O diário da Fiorella

 

 

 

 

Fonte: O diário da Fiorella

 

 

 

 

 

 

 

Nós, famílias surdas, sabemos que os DODAs têm mais acesso à língua, como a Libras, e à cultura surda, pois têm uma integração ainda mais forte com a cultura surda. Isso ocorre porque a língua e a cultura nascem na família, que já valoriza a língua de sinais e a Cultura Surda como base da família surda. Por isso, filhos surdos crescem em um ambiente linguístico totalmente acessível desde cedo, o que facilita o desenvolvimento pleno da língua de sinais e de sua identidade dentro da comunidade surda. Já para os filhos surdos de famílias ouvintes, às vezes, acontece de não adquirirem uma língua desde bebês, além de as famílias ouvintes não terem a cultura surda.

Autora: Francielle Cantarelli Martins. Professora de Libras da Universidade Federal de Pelotas.

A importância do resgate das formas de escrita ancestrais da África

Você sabia que a África possui formas de escritas ancestrais? Atualmente, os avanços nos estudos em linguística histórica e comparada sobre a língua faraônica (língua egípcia) e outras línguas africanas (kandianas) têm revelado dados muito interessantes. 

Pesquisadores como Cheikh Anta Diop e Jean-Claude Mboli têm estudado a conexão entre a língua dos faraós e as outras línguas africanas e descobriram que essas línguas pertencem a uma mesma família. Esses estudos incentivam o resgate das formas antigas de escrita que surgiram na África, ajudando a revelar as raízes da sua história.

Fonte: http://www.freepik.com

De volta às origens

A África, ou Kanda (termo que significa “cidade, reino, país”, nas línguas bantu), foi o berço das línguas africanas e de suas formas de escrita. É importante recuperar essas escritas antigas para re-escrever e compreender as línguas africanas modernas e, assim, combater a ideia de que a África só possui tradição oral. Na verdade, tanto a fala quanto a escrita são partes fundamentais da cultura africana. Os países colonizadores não trouxeram a escrita para o continente africano; ao contrário, foi a África que contribuiu com a civilização mundial. 

A força da fala e da escrita

Compreender como os faraós escreviam sua língua com a escrita que inventaram (os hieróglifos) possibilita aplicar esses conhecimentos às línguas africanas modernas. Essa compreensão inclui a da fonologia dos glifos (sons dos símbolos) e dos símbolos propriamente ditos. Podemos, por meio de um exercício comparativo, hieroglifizar os idiomas modernos, criando uma escrita que reflete melhor a cultura e identidade africanas. Vejamos abaixo alguns exemplos de como os hieróglifos podem ser usados para representar palavras e ideias nas línguas africanas modernas.

𓃀 /b/ *[bo] = pé, perna (língua egípcia)

𓃀𓉐 /b/ [bɑ] = lugar (língua sango)

𓃀 /b/, 𓇋𓃀 /j-b/ [ɛ-bɔ] = pé, sola do pé (língua bekwel)

𓃀 /b/, 𓇋𓃀 /j-b/ [e-bo] = sola do pé (língua nzime)

Podemos ver como a palavra “pé” e suas extensões semânticas (perna, sola do pé, lugar, isto é, espaço pisado) se escreve com o glifo (imagem) do (que representa a letra b), e pode conter afixos (prefixos ou sufixos) conforme a língua. Para ser mais específico, como na palavra “lugar” na língua sango, outro símbolo é acrescentado no final (à direita), isto é, um símbolo para “casas” ou “espaços” (chamado determinativo), para enfatizar que se trata de um lugar.

Como alerta o escritor queniano Ngũgĩ wa Thiong’o, o processo de hieroglifização das línguas africanas modernas é um exercício que os linguistas do continente devem começar a fazer para a promoção e consolidação de sistemas de escritas originários. Isso não só fortalece a identidade linguística e cultural dos povos africanos, mas também combate os preconceitos históricos que marginalizaram suas línguas.  

Confira a arte hieroglífica (ou hieroglifizada) na língua bekwel. Ela mostra um pouco a aplicação do processo (e projeto) de hieroglifização das línguas africanas modernas que promovo.

Referências
BILOLO, Mubabinge. Vers un dictionnaire cikam-copte-lubaː Bantuïté du vocabulaire égyptien-copte dans les essais de Homburger et d’Obenga. Munich, Freising, Kinshasa: African University Studies, 2011.
DIOP. C. A. The African origin of civilization: myth or reality. New York: L. Hill, 1974.
DIOP, C. A. Parenté génétique de l’égyptien pharaonique et des langues négro-africaines. Dakar-Abidjan: IFAN/NEA, 1977.
IMHOTEP, Asar. Towards a Comparative Dictionary of Cikam and Modern African Languages. Houston, TX: Madu-Ndela Press, 2020.
MBOLI, Jean-Claude. Origines des langues africaines: essai d’application de la méthode comparative aux langues africaines anciennes et modernes. Paris: L’Harmattan, 2010.
MBOLI, Jean-Claude. Épopée bantu: des Grands Lacs à la Méditerranée. [s.l.]: ESIBLA, 2024.
OBENGA, T. Origine commune de l’égyptien ancien, du copte et des langues négro-africaines: introduction à la linguistique historique africaine. Paris: L’Harmattan, 1993.
SY, Jacques H. (ed.). L’Afrique, berceau de l’écriture et ses manuscrits en péril: des origines de l’écriture aux manuscrits anciens (Égypte pharaonique, Sahara, Sénégal, Ghana, Niger). v.1. Paris: L’Harmattan, 2014.
THIONG’O, Ngũgĩ wa. Decolonising the mind: the politics of language in African literature. London: J. Currey; Portsmouth, N.H. : Heinemann, 1986.

Autor: Peresch Aubham Edouhou
Falante das línguas bekwel e ikota, possui graduação em Letras – Português e Inglês pela Universidade Federal de Pelotas (2019), mestrado em Letras (Estudos da linguagem) pela Universidade Federal do Rio Grande (2022). Atualmente é doutorando em Letras (Literatura) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).