Não, o português não atrapalha!

Vocês, professores de línguas, pais ou até mesmo estudantes, já se confrontaram ou disseminaram a ideia de que se deve excluir o português das aulas durante a aprendizagem de uma língua estrangeira? Isso é um mito, algo parecido a uma fake news, bastante difundido socialmente.

Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Flag_of_Portuguese_Language.svg

De acordo com a pesquisadora Heloísa Augusta Brito de Mello (2005), há uma forte tendência por parte dos professores de línguas estrangeiras em excluir da sala de aula a(s) língua(s) materna(s) do estudante, com o argumento de que, para o pleno desenvolvimento da sua performance na língua-alvo, é preciso que não haja interferências. Segundo esses professores, as interferências são negativas, uma vez que podem retardar a aprendizagem, além de serem vistas como uma incompetência desse falante/aprendiz em uma outra língua. 

No entanto, como aponta outro estudo de Heloísa Mello (2009), a língua materna pode servir de apoio em determinadas funções, principalmente para o professor, que pode fornecer instruções para a realização de atividades, traduzir palavras ou expressões para esclarecer alguma dúvida, ensinar vocabulário ou estrutura linguística da língua nova, oferecendo suporte ao aluno para o entendimento e incorporação desses itens linguísticos; ensinar teoria para realizar uma reflexão sobre determinados usos da língua-alvo e solicitar explicações ou esclarecimentos para uma melhor compreensão daquilo que está sendo discutido e trabalhado.

Não há razões para excluir a(s) língua(s) materna(s) dos alunos, em particular o português,  durante o processo de ensino e aprendizagem, devido à importância da alternância entre línguas para determinados propósitos comunicativos. Nesse sentido, é necessário  desconstruir crenças e práticas pedagógicas pautadas na ideia de que o português atrapalha o processo de ensinar e aprender outras línguas.

Referências
MELLO, Heloísa. A. B. de. Examinando a relação L1-L2 na pedagogia de ensino de ESL. Revista Brasileira de Lingüística Aplicada. v. 5, n. 1, p. 161-184, 2005.
MELLO, Heloísa. A.B. de. Funções da alternância de línguas na sala de aula de inglês como segunda língua. Linguagem & Ensino, Pelotas, v. 12, n. 1, p. 135-164, 2009.

Autor: Gabriel Zardo. Graduado em Licenciatura em Letras – Português e mestrando no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).

 

Preconceito linguístico e suas manifestações – não devemos proibir formas de falar

O preconceito linguístico é todo juízo de valor negativo a formas de falar e escrever, ou seja, a diferentes variedades linguísticas, com base em crenças sem fundamento científico acerca das línguas e de seus usuários. Porém, você deve ter se perguntando: mas o que são variedades linguísticas? São variações da língua como os sotaques, os dialetos, os regionalismos, as gírias, isto é, as diferenças observadas na fala e na escrita das outras pessoas.

Dessa forma, o preconceito linguístico nada mais é do que o julgamento sobre o modo como o outro fala, influenciado por características culturais, regionais, históricas, de etnia ou de gênero. Esses julgamentos, normalmente, se dirigem às variantes mais informais e ligadas às classes sociais menos favorecidas, em que, na maioria das vezes, as pessoas têm menos acesso à educação formal. 

Algumas manifestações do preconceito linguístico presentes em nosso dia a dia (e que muitas vezes nem percebemos que fazemos) são:

– Interromper as pessoas para corrigir como elas falam;
– Chamar alguém de “burro” por falar diferente;
– Debochar de quem usa gírias;
– Debochar de sotaques regionais;
– Dizer que não conversa com quem fala “errado”;
– Dizer que alguém faltou às aulas de português e que por isso fala “errado”;
– Dizer que quem falar “errado” é preguiçoso porque “hoje em dia tem internet”;
– Falar que os ouvidos doem quando ouve alguém falando “errado”;
– Rir de quem fala “pranta”, “bicicreta” e “chicrete”;
– Dizer que “pra mim fazer” e “eu vou ir” não existem;
– Falar que as pessoas precisam aprender o português antes de aprenderem inglês;
– Acreditar que é necessário escrever “certo” nas redes sociais e criticar as pessoas que não fazem isso;
– Criticar e debochar de quem usa linguagem inclusiva (como, por exemplo, “amigxs” e “todes”);
– Criticar alguém que fala uma língua minoritária. 

A primeira coisa que devemos fazer para combater o preconceito linguístico é ter uma mudança de atitude. Segundo o sociolinguista Marcos Bagno (2020), cada um de nós precisa elevar o grau da própria autoestima linguística e recusar os velhos argumentos que visam menosprezar o saber linguístico individual de cada um. Precisamos nos impor como falantes competentes da nossa língua materna e parar de acreditar que “o brasileiro não sabe português” ou que “o português é muito difícil”. Temos que acionar o nosso senso crítico e filtrar as informações realmente úteis, deixando de lado as afirmações preconceituosas e intolerantes. 

Fonte: https://contramao.una.br/wp-content/uploads/2021/05/Um-pais.jpg

É importante lembrar que, do ponto de vista científico, não existe “erro” de português, pois todo falante nativo de uma língua é plenamente competente nela e consegue diferenciar intuitivamente se uma forma linguística obedece ou não às regras de funcionamento do idioma. O que existe, na verdade, são diferenças de usos em relação ao que é proposto pela gramática normativa, aquela ensinada nas escolas. Essas diferenças nos permitem dizer “tinha uma pedra no caminho” ou “havia uma pedra no caminho”, “vou ir na casa do João” ou “irei na casa do João”, sem que uma seja considerada melhor do que a outra. Cada contexto pedirá uma linguagem mais ou menos formal.

Por último, é preciso entender que toda língua muda e varia. Segundo o pesquisador Marcos Bagno (2020), o que hoje é visto como “certo” um dia já foi considerado como “erro” e, o que hoje é considerado como “errado” pode vir a ser perfeitamente aceito como “certo”. A nossa língua prossegue em sua transformação e, nós devemos buscar entender as diferenças linguísticas, respeitando a identidade de todos os falantes. Como afirma Marcos Bagno (2020), “nós somos a língua que falamos” e, ela molda como vemos o mundo e nosso modo de ver o mundo molda a língua que falamos.

Referências
BAGNO, Marcos. Não é errado falar assim! Em defesa do português brasileiro. São Paulo: Parábola, 2009.
BAGNO, Marcos. Preconceito Linguístico. 56. ed. São Paulo: Parábola, 2020.

Autor: Julia Diogo, graduada em Letras Português e Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA). Atualmente, é mestranda em Letras, na linha de Aquisição, Variação e Ensino, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).

Eu uso estrangeirismos. E você?

Fonte: https://pt.slideshare.net/LuanaNobre15/variao-lingusticapptx

O uso de palavras de outros idiomas, isto é, de estrangeirismos no português, é um tópico presente nas redes sociais ou rodas de conversa. Visto como uma ameaça à existência da língua, ou apontado como um tipo de submissão à cultura “estrangeira”, suscita opiniões acaloradas em defesa do idioma nacional. No entanto, o debate, frequentemente, fica no campo das crenças em torno do que é certo e errado na língua, o que acaba validando preconceitos em relação aos falantes.

Para o sociolinguista e professor da Universidade de Brasília, Marcos Bagno, os empréstimos entre as línguas sempre existiram e não são privilégio de um idioma ou outro. O inglês, por exemplo, possui vários termos emprestados do português. Segundo o autor, os estrangeirismos, com o tempo, adaptam-se aos sons, à ortografia e aos sentidos da língua. Quem já não se sentiu jururu (do tupi yuru-ru) e precisou tomar um café (do árabe, qahwa) com açúcar (do sânscrito, sarkara) sob à luz de um abajur (do francês, abat-jour)?

Outro equívoco apontado por Marcos Bagno nas falas de quem se opõe aos estrangeirismos, é concluir que seu uso exclui as pessoas mais simples da comunicação, já que não entenderiam o que é dito. Avaliar os usos que os falantes fazem da língua, levando em conta prestígio social, escolarização e classe econômica não é nada mais do que puro preconceito linguístico, garante o sociolinguista.

Para concluir

A troca entre as línguas é natural: a gente pega emprestado, mas também empresta. Os estrangeirismos resultam dessa troca. Por si só, não ameaçam as línguas e não excluem os falantes da interação com o mundo, muito pelo contrário. Usá-los não faz um povo mais servil ou “colonizado”. As conversas sobre a(s) língua(s) são saudáveis, importantes e necessárias, porém precisam considerar o que dizem as ciências da linguagem para desconstruir crenças e preconceitos.

Referências
BAGNO, Marcos. Cassandra, Fênix e outros mitos. In: FARACO, Carlos Alberto. Estrangeirismos. São Paulo: Parábola, 2001. p. 49-83.

Autora: Andréa Ualt. Licenciada em Letras – Espanhol e Literaturas de Língua Espanhola, mestre em Educação e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPel. Professora de Espanhol do IFSul-Campus CaVG.

Você não precisa se preocupar em falar como um nativo!

Uma das metas mais comuns entre pessoas que começam a estudar uma língua estrangeira é, um dia, serem capazes de falarem como um falante nativo do idioma que estão aprendendo. De fato, muitos alunos acreditam que só podem se considerar fluentes quando não tiverem mais nenhum traço de sotaque das suas línguas maternas. Mas será que isso – perder o sotaque e falar uma língua estrangeira que nem um nativo – é mesmo possível? Para responder essa pergunta, devemos primeiro entender o que significa aprender uma língua estrangeira.

De acordo com a teoria do professor e pesquisador Larry Selinker (1972), todos nós possuímos uma estrutura linguística latente no cérebro. Conforme temos contato com uma língua, essa estrutura se atualiza, assumindo as formas da língua à qual estamos expostos. Em outras palavras, essa estrutura latente é um dispositivo que, quando ativado, permite que aprendamos outros idiomas. E, quando nos expressamos em outra língua, o que produzimos não é idêntico ao que um nativo produziria, mas sim algo intermediário, situado entre a língua materna e a estrangeira: uma interlíngua.

Podemos enxergar a interlíngua como um continuum com duas extremidades: numa delas, temos a língua materna do aluno; na outra, o falante nativo da língua que o aluno está aprendendo. O aluno, por sua vez, se encontra entre esses dois pontos. Conforme vai estudando as regras e formas da língua estrangeira, ele vai se afastando cada vez mais do ponto inicial e se aproximando do ponto final. Todos aqueles que estiverem em algum ponto desse continuum são considerados bilíngues.

Segundo a professora Isabella Mozzillo (2003), na interlíngua, existem elementos da língua materna do aluno, de quaisquer outras línguas que esse aluno conheça e da língua-alvo. Em outras palavras, a interlíngua é um produto do contato de todas as línguas do sujeito. Novamente de acordo com Larry Selinker (1972), todo falante de uma interlíngua passa por alguns processos, dentre os quais temos: as transferências linguísticas, a supergeneralização e a fossilização.

Transferências linguísticas: quando o sujeito utiliza uma regra que existe na sua língua materna, mas não na língua estrangeira. Exemplo: J’ai acheté un voiture. No exemplo , um aprendiz brasileiro de francês fala “un voiture” porque, em português, fala-se “um carro”. Contudo, em francês, voiture (carro) é um substantivo feminino, e, por isso, a forma correta seria “une voiture”.

Supergeneralização: quando o sujeito aprende uma regra da língua estrangeira e a emprega mesmo quando não é necessária. Exemplo: I goed to the beach yesterday. Nesse exemplo, um aprendiz de inglês, após aprender que deve-se acrescentar um -ed ao final de verbos regulares para conjugá-los no passado, aplica essa regra ao verbo “go”, cuja forma no passado é “went”.

Fossilização: quando o sujeito conserva na sua interlíngua formas de pronúncia ou construção de frases que vêm da sua língua materna e que não consegue deixar de utilizar, independentemente da quantidade de instrução que receba.

O fato é que a imensa maioria daqueles que decidem estudar uma língua estrangeira falarão uma interlíngua. Esse fato, contudo, não deve ser motivo para decepção. Se você fala uma interlíngua, isso significa, antes de mais nada, que você é uma pessoa bilíngue (ou multilíngue). Significa que há um esforço, da sua parte, para entender e se fazer entender pelo outro. A meta de falar da mesma forma que um falante nativo, além de ser irreal, pode, por vezes, levar à frustração. Conservar o sotaque da sua língua materna deve ser motivo não de vergonha, mas de orgulho.

Referências
MOZZILLO, Isabella. A interlíngua construída em ambiente autônomo de aprendizado de línguas estrangeiras. In: NICOLAIDES, Cristine et al. O desenvolvimento da autonomia no ambiente de aprendizagem de línguas estrangeiras. 2003. p.  247-273.
SELINKER, Larry. Interlanguage. IRAL. Boston, MA, v. 10, n. 3, 1972, p. 209-231.

Autor: Leonardo Ribeiro, graduado em Licenciatura em Letras – Português e Inglês pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Atualmente, é aluno do mestrado em Aquisição, Variação e Ensino, com pesquisas em multilinguismo e translinguagem.

Cognatos, cognates, Kognaten, cognados, cognats

Em algumas situações, quando estamos lendo algum texto em uma língua estrangeira, reconhecemos palavras com certas semelhanças com outras línguas. As palavras “emoção”, em português, “Emotion”, em alemão, e “emotion”, em inglês, são alguns exemplos de palavras cognatas entre diferentes línguas.

Os cognatos são definidos como palavras de línguas diferentes que apresentam semelhanças por terem algum vínculo em relação à origem. O pesquisador alemão Ronald Möller (2011) descreve que essa relação é analisada com base no processo evolutivo das línguas, para que comparações possam ser realizadas. 

Os pesquisadores Rena Helms-Park e Vedran Dronjić (2012) afirmam que a relação de significados entre as palavras pode ser direta, por terem a mesma origem, ou indireta, no caso dos empréstimos. Essas palavras semelhantes de línguas diferentes com sentidos diferentes são definidas como falsos cognatos. Por exemplo, Trikot em alemão se refere à camisa de time de futebol. Porém, quando lemos essa palavra ou ouvimos uma transmissão de futebol da TV alemã, possivelmente, o primeiro sentido em que pensamos é numa roupa de lã pesada.

Para fins de pesquisa, busca-se compreender a relação de palavras cognatas, para assim, desvendar os possíveis vínculos entre duas línguas na mente e suas transformações ao longo do tempo.

Referências
MÖLLER, Robert. Wann sind Kognaten erkennbar? Ähnlichkeit und synchrone Transparenz von Kognatenbeziehungen in der germanischen Interkomprehension. Linguistik online, v. 46, n. 2, p. 79–101, 2011. http://dx.doi.org/10.13092/lo.46.373
HELMS-PARK, Rena; DRONJIC, Vedran. Cognates. In: The Encyclopedia of Applied Linguistics. Oxford, UK: Blackwell Publishing, 2012. p. 1–7. https://doi.org/10.1002/9781405198431.wbeal0143

 

Autor: Lisandro Miritz Völz. Graduando em Letras Português e Alemão pela Universidade Federal de Pelotas e  integrante do Laboratório de Psicolinguística, Línguas Minoritárias e Multilinguismo.

Mostre-me como você fala, que eu direi quem é você! É sério?

Com certeza, você já se pegou fazendo comentários sobre como os atendentes de telemarketing usam a língua portuguesa ou como falam os seus vizinhos. Além disso, deve ter opiniões sobre os sotaques do feirante da banca das verduras e do vendedor ambulante, de quem você quer comprar a linda rede nordestina para colocar na varanda. Entretanto, você já parou para pensar por que faz, ou melhor, por que fazemos isso? Por que reagimos e “julgamos” a pronúncia, o sotaque, as formas como as pessoas falam?

Fonte: Arquivo pessoal de Andrea Ualt

Para a pesquisadora brasileira Raquel Freitag, isso se deve a nossa consciência sociolinguística, isto é, a um conjunto de crenças, sentimentos, conhecimento e experiências com a(s) língua(s), que levamos nas nossas memórias. Essa consciência nos faz reagir, avaliar, classificar e entender modos de falar diferentes dos usados por nós, toda vez que os ouvimos.

Algumas das reações que temos sobre a(s) língua(s) não são conscientes: escutamos um determinado sotaque e automaticamente projetamos nossos sentimentos em relação a ele. Outras reações são mais reflexivas, falamos sobre elas: quando como opinamos sobre a “a língua ideal para conseguir um bom emprego”; ou “o melhor português do Brasil”, por exemplo.

Entretanto, a pesquisadora da Universidade de Ohio, Anna Babel, assegura que essas percepções (sejam elas mais ou menos conscientes) sobre modos de falar, sotaques e pronúncias das pessoas estão fortemente ligados a forma como as classificamos, levando em consideração requisitos que não são linguísticos, tais como raça, classe social, escolarização ou mesmo o lugar onde vivem. Para a autora, projetamos nossos preconceitos sociais na língua. Assim sendo, qualquer julgamento que façamos sobre a existência de uma “língua certa” ou um jeito bonito de falar, com certeza não corresponde à realidade dos fatos.

Nesse sentido, a consciência sociolinguística dos falantes é como um tesouro linguístico que, quando decifrado, revela uma série de informações importantes para os linguistas: os modos que entendemos as línguas e as pessoas; quais conhecimentos, crenças e sentimentos as comunidades compartilham sobre os falares uns dos outros; os preconceitos que algumas línguas e dialetos sofrem. A consciência sociolinguística torna possível entender a diferença linguística e cultural não como um problema que precisa ser resolvido ou eliminado, mas como um direito e recurso que melhora nossas relações com as outras pessoas e com o lugar em que vivemos.

Referências
FREITAG, Raquel M. K. O desenvolvimento da consciência sociolinguística e o sucesso no desempenho em leitura. ALFA: Revista de Linguística, São Paulo, v. 65, p. 1-27, 2021.

Vídeo
Como classificamos falantes duma língua?
TED Ideas Worth spreading, 2020, 10min47s. Disponível em: www.ted.com/anna_babel. Acesso em: 23 de agosto de 2022, 14h44min.

Autora: Andréa Ualt
Licenciada em Letras – Espanhol e Literaturas de Língua Espanhola, mestre em Educação e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPel. Professora de Espanhol do IFSul-Campus CaVG.

Você já ouviu falar em translinguagem?

Tudo começou em 1994, quando o pesquisador Cen Williams criou o termo trawsieithu para denominar um modelo de educação bilíngue, comum no País de Gales desde os anos 1980. O objetivo desse estilo de aula era expor os alunos a material em língua inglesa – livros, vídeos, imagens – e estimulá-los a produzir algo – um texto, uma apresentação oral, uma discussão – em língua galesa. Isso quer dizer que a trawsieithu reunia a língua materna dos alunos e a língua que eles estavam aprendendo em uma mesma lição. A grande finalidade desse método era desenvolver o bilinguismo dos alunos, que é a habilidade de gerenciar duas ou mais línguas, segundo as pesquisadoras Isabella Mozzillo e Karen Spinassé (2021).

Com o passar do tempo, o termo trawsieithu foi traduzido para o inglês como translanguaging (em português: translinguagem). Além disso, o termo, além de ganhar um novo nome, ganhou também um novo significado. A professora Ofelia García (2017) se tornou um nome importante neste assunto ao chamar de translinguagem os usos da linguagem que falantes bilíngues empregam no dia-a-dia e de que formas utilizam as suas línguas para se comunicarem em diferentes situações. Segundo a autora, bilíngues não possuem duas línguas separadas dentro do cérebro. Não! O que eles realmente possuem é um único repertório linguístico, composto por elementos – sons, palavras, expressões etc. – de todas as línguas que conhecem. Dependendo da situação na qual se encontram, essas pessoas utilizarão somente elementos da língua X (pois podem estar conversando com alguém que fale somente essa língua); e haverá situações em que essas pessoas poderão utilizar elementos tanto da língua X quanto da língua Y, caso estejam frente a frente com outro bilíngue que conheça as mesmas línguas que elas.

Fonte: https://www.kinderaerztliche-praxis.de/a/gelebte-mehrsprachigkeit-mit-translanguaging-1813177

A professora García, em parceria com a pesquisadora Sara Vogel (2017), explica que o prefixo trans (da palavra “translinguagem”) serve também para designar determinados usos da linguagem que não podem ser classificados nem como uma língua nem outra. São nesses casos que os indivíduos “translinguam” – isto é, empregam formas linguísticas que reúnem elementos de mais de uma língua (trollar, crushzinho etc).

Isso ocorre porque, de acordo com a pesquisadora Tatyana Kleyn (2019), termos como “inglês”, “chinês” e “espanhol” servem para estabelecer uma diferença entre povos e nações, mas não possuem nenhuma função a nível mental. Isso significa que o único lugar onde as línguas estão separadas é nos mapas mundiais. Dentro do cérebro, as línguas estão reunidas e entrelaçadas, e é justamente por isso que usos translíngues da linguagem são tão comuns entre sujeitos que falam duas ou mais línguas.

Referências
LEWIS, Gwyn; JONES, Bryn; BAKER, Colin. Translanguaging: Origins and development from school to street and beyond. Educational Research and Evaluation: An International Journal on Theory and Practice, v. 18, n. 7, p. 641–654, 2012.
KLEYN, Tatyana; GARCÍA, Ofelia. Translanguaging as an Act of Transformation: Restructuring Teaching and Learning for Emergent Bilingual Studentes. In: OLIVEIRA, Luciana. (org.) The Handbook of TESOL in K-12. John Wiley & Sons Ltd., 2019. p. 69-82.
MOZZILLO, Isabella; PUPP SPINASSÉ, Karen. Políticas linguísticas familiares em contexto de línguas minoritáriasLinguagem & Ensino, Pelotas, v. 23, n. 4, p. 1297-1316, 2020.
VOGEL, Sara; GARCIA, Ofelia. Translanguaging. Oxford Research Encyclopedia of Education, USA, p. 1-19, 2017.

Autor: Leonardo Ribeiro, graduado em Licenciatura em Letras – Português e Inglês pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Atualmente, é aluno do mestrado em Aquisição, Variação e Ensino, com pesquisas em multilinguismo e translinguagem.

 

Estratégias de aprendizagem de língua estrangeira: o que são e para que servem?

O que você considera uma estratégia de aprendizagem? Como explicam os pesquisadores Sandra Ballweg e outros, estratégias são métodos utilizados para conseguir atingir um objetivo ou uma meta, como aprender uma nova língua, por exemplo. Tais estratégias podem variar de pessoa para pessoa, pois o processo de internalizar as informações é um processo individual em que se consideram as características dos aprendizes: se são mais reservados e observadores, mais ou menos comunicativos, entre outras. O intuito de usar estratégias é tornar a aprendizagem mais efetiva dentro e fora da sala de aula.

Para que o aprendiz consiga escolher a melhor estratégia, é necessário que ele conheça diferentes estratégias. Ele pode escolher entre estratégias diretas e indiretas. Essas categorias foram criadas pela pesquisadora Rebecca Oxford. As estratégias diretas possibilitam armazenar informações que representam o que aprendeu e lembrou. Alguns exemplos são:

  • Praticar: quanto maior for a frequência, melhor poderão ser os resultados alcançados. É bom que a prática tenha intervalos de tempo (por exemplo, um dia), pois isso facilita a memorização.
  • Reler, falar e repetir o que se escuta: quanto mais exercitar estes três pontos, com mais facilidade poderá conseguir os resultados das próximas vezes.
  • Refazer exercícios, variando a modalidade (oral e escrita, por exemplo).
  • Associar as palavras da língua estrangeira com palavras cognatas da língua materna ou de outras línguas
  • Memorizar, por exemplo, formando frases para utilizar um novo vocabulário.

Já as estratégias indiretas abrangem planejamento emocional e comunicativo. Alguns exemplos são:

  • Organizar a aprendizagem por meio de metas, planejamento e avaliação.
  • Motivar-se para encontrar novas formas de aprender.
  • Interagir com outros aprendizes para apoiar-se e adquirir conhecimento.

As estratégias de aprendizagem existem para auxiliar o aprendiz a aprender da maneira mais eficiente possível. O aprendiz precisa ter conhecimento das estratégias existentes para conseguir procurar a que melhor combine com seu modo de aprender.

Referências
BALLWEG, Sandra et al. Wie lernt man die Fremdsprache Deutsch? Buch mit DVD (DLL 2 – Deutsch lehren lernen: Fort- und Weiterbildung weltweit). München: Klett-Langenscheidt/Goethe Institut, 2013.
OXFORD, Rebecca L. Language learning strategies: what every teacher should know. Boston: Heinle & Heinle, 1990.

Autor: Yago Badaró Santino Ribeiro. Graduando em Letras – Português-Alemão pela UFPel.

Eu, bilíngue?

Responda rapidamente: você se considera uma pessoa bilíngue? Se você respondeu que não, eu pergunto: além do português, você usa outra língua para realizar alguma atividade específica em sua vida? Se a resposta for sim, saiba que você pode se considerar bilíngue! Ainda em dúvida? Talvez este texto possa ajudar, da mesma forma que este vídeo.

Segundo as pesquisadoras Antonieta Megale e Andrea Ualt, a definição de bilinguismo supostamente é bastante óbvia: saber duas línguas. Porém, muitos de nós atribuem o bilinguismo àquelas pessoas que aprenderam dois ou mais idiomas ao mesmo tempo ainda na infância. Além disso, é comum a percepção de que pessoas bilíngues têm exatamente o mesmo nível de conhecimento de ambas as línguas. Talvez por isso você tenha respondido que não se considera bilíngue.

De fato, os exemplos acima se referem a pessoas bilíngues. No entanto, as pesquisas na área da Linguística e áreas afins têm demonstrado que o conceito de bilinguismo é mais abrangente do que se imagina. É o que podemos ver na pesquisa de Isabella Mozzillo e Karen Spinassé (2021), que definem que o indivíduo bilíngue “consegue gerenciar (falar e/ou entender) duas ou mais línguas, utilizando cada uma para os respectivos contextos e propósitos necessários, com a propriedade necessária”.

Assim, por exemplo, se você é brasileiro e está aprendendo sua primeira língua estrangeira depois de adulto e já compreende os textos que lê, as músicas que escuta e, para a “felicidade” de seus vizinhos, já consegue cantá-las no chuveiro, você pode se considerar bilíngue. Se você, por outro lado, tem avós falantes nativos de alemão, não consegue falar com eles nesse idioma, mas compreende quando eles falam com você, você é bilíngue. Se fala pomerano em casa e português no trabalho, é bilíngue também. Se lê artigos em inglês para uma disciplina da faculdade, você é bilíngue. Troca mensagens em espanhol com um amigo da Argentina? Bilíngue!

Fonte: Designed by Freepik

Segundo o linguista François Grosjean, pessoas bilíngues adquirem e usam línguas com diferentes objetivos e pessoas, em situações de vida bastante variadas, o que significa que é perfeitamente normal que seu nível de fluência em cada idioma não seja idêntico. Logo, é possível e aceitável que uma pessoa bilíngue leia e escreva exclusivamente em uma das línguas, tenha um desempenho oral melhor naquela que utiliza com mais frequência, ou então que consiga compreender bem o que as pessoas falam e escrevem em uma das línguas, mas não se expressar oralmente tão bem. Um aspecto importante a se considerar em relação a esses diferentes usos apontados por Grosjean é a questão do vínculo afetivo com os idiomas. No artigo Como você sabe que é bilíngue?, publicado no jornal El País, Virgínia Mendoza menciona alguns linguistas que afirmam que a diferença de carga emocional dos contextos onde são adquiridos os idiomas por um indivíduo bilíngue faz com que seja natural, por exemplo, que ele recorra à língua adquirida em contextos familiares para expressar sentimentos.

Em síntese, ao contrário do que muitos pensam, o bilinguismo não é um fenômeno de simetria entre línguas. Então, agora que você leu este texto, eu volto a perguntar: você se considera uma pessoa bilíngue?

Referências

UALT, Andréa Fonseca. Afinal, o que é esse tal de bilinguismo? Tesouro Linguístico, Pelotas, 10 de fev. de 2021.
GROSJEAN, François. [trad. Heloísa Augusta Brito de Mello e Dilys Karen Rees]. Bilinguismo Individual. Revista UFG, ano X, n. 5, p. 163-176, 2008. . Acesso em: 14 mai. 2021.
MEGALE, Antonieta Heyden. Bilingüismo e educação bilíngüe – discutindo conceitos. Revista Virtual de Estudos da Linguagem – ReVEL, v. 3, n. 5, 2005.
MENDOZA, Virginia. Quando você sabe que é bilíngue? El País, Brasil, 2017.
MOZZILLO, Isabella; PUPP SPINASSÉ, Karen. Políticas linguísticas familiares em contexto de línguas minoritárias. Linguagem & Ensino, Pelotas, v. 23, n. 4, p. 1297-1316, 2020.

Autora: Carolina Fernandes Alves. Licenciada em Letras Português-Espanhol (UFRGS), Mestra em Estudos da Linguagem (UFRGS) e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPEL. Professora do Departamento de Metodologia do Ensino da UFSM. Instagram: @profe_carolina.alves. 

O português também é uruguaio!

Mas a língua do Uruguai não é o espanhol? Para responder essa pergunta, primeiro é importante dizer que não necessariamente um país se constitui apenas por uma língua. Por exemplo, no Brasil, embora o português seja a língua oficial, e, por isso, muitos o identifiquem como um país monolíngue, mais de 200 línguas são faladas, de acordo com os pesquisadores Tommaso Raso, Heliana Mello e Cléo Altenhofen (2011). No Uruguai, não é diferente. Nas comunidades fronteiriças do norte, o português, historicamente, também foi bastante falado. E sabe por quê?

Muitos mitos indicam que o motivo do português ser falado no norte do Uruguai é a presença de brasileiros e de seus meios de comunicação. No entanto, a história é bem mais antiga e tem início lá no século XIX, quando a República Oriental do Uruguai ainda nem tinha esse nome.

O português é falado no norte do Uruguai devido às raízes históricas da época colonial e vem sendo transmitido como língua de herança por gerações. A pesquisadora Ana Maria Carvalho (2006) explica que, no século XIX, o Brasil ocupava grande parte do território uruguaio, como mostra a imagem abaixo, e era visto como um rival na disputa de terras.

Fonte: RONA, José Pedro. El dialecto “fronterizo” del norte del Uruguay. Montevideo. Adolfo Linardi, 1965.

Para se diferenciar no processo de construção de sua nação, o Uruguai buscava eliminar o português do país. Para isso, diversas políticas monolíngues foram implementadas. Entre elas, destacamos a própria construção de Montevidéu como centro de referência hispânico e o ensino apenas de espanhol nas escolas públicas.

Diante dessa ideologia, para a estudiosa Ana Maria Carvalho (2006), o uso do português era “visto como resistência à unidade nacional e traição aos valores da pátria” e, por isso, criou-se uma predisposição em dizer que o espanhol era a língua do governo e da identidade uruguaia, ficando o português uruguaio com status de língua marginalizada.

Atualmente, como resultado das políticas monolíngues implementadas ao longo dos séculos, o português uruguaio é bem menos falado. Por outro lado, existem pesquisas e projetos que buscam resgatar o idioma e utilizá-lo como recurso para um processo de educação bilíngue.

Referências
CARVALHO, Ana Maria. Políticas lingüísticas de séculos passados nos dias de hoje: o dilema sobre a educação bilingüe no norte do Uruguai. Language Problems & Language Planning, v. 30, n. 2, p. 149–171.
RASO, Tommaso; MELLO, Heliana; ALTENHOFEN, Cléo V. Os contatos linguísticos e o Brasil: Dinâmicas pré-históricas, históricas e sociopolíticas. In: MELLO, Helina; ALTENHOFEN, Cléo V.; RASO, Tommaso. Os contatos linguísticos no Brasil. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2011. p. 13-56.

Autora: Caroline Gonçalves Feijó-Quadrado. Licenciada em Letras e Mestre em Educação pela Universidade Federal do Pampa – campus Jaguarão. Doutoranda em Letras pela Universidade Federal de Pelotas.