Arquivo da categoria: Línguas minoritárias

Documentação de línguas indígenas brasileiras: uma necessidade para além dos estudos linguísticos

A Linguística Documental é o campo de estudos dedicado à documentação de registros (falados ou escritos) e revitalização de línguas minoritárias e/ou ameaçadas de extinção. Apesar de haver resquícios de documentação linguística no Brasil desde o século XVI, com os missionários e viajantes europeus relatando e registrando (por meio de cartas, listas de palavras, sermões, gramáticas etc.) as línguas indígenas faladas no litoral do Brasil, foi a partir dos anos 1990 que a área alcançou o status de disciplina.

De acordo com a linguista e antropóloga brasileira Bruna Franchetto (2004), no Brasil, todas as línguas indígenas são consideradas minoritárias e, devido a isso, surge a urgente necessidade de se documentar e preservar essas línguas para que, dessa maneira, as memórias linguística, histórica, sociocultural e afetiva desses povos sejam preservadas.

Fonte; https://www.imaginie.com.br/temas/a-extincao-de-linguas-indigenas-no-brasil/

Para que uma documentação linguística seja realizada, é necessário que a/o profissional responsável pela coleta de registros falados e/ou escritos numa determinada comunidade disponha de um leque de ferramentas (gravadores, câmeras, caderno de campo e computadores, por exemplo) que auxiliam em todas as etapas do processo, desde antes da documentação até as etapas pós-documentação. Todas as ferramentas devem ser checadas antes de serem utilizadas, e o uso deve ser feito com discernimento sem deixar de lado os aspectos éticos envolvidos no processo de documentação, uma vez que a privacidade e o protagonismo das comunidades indígenas devem ser respeitados.

Segundo a linguista Cilene Campetela e demais pesquisadores (2017), muitos projetos foram e têm sido idealizados em diversas instituições públicas do país com o intuito de documentar e garantir a preservação de línguas ameaçadas de extinção, sobretudo as línguas indígenas. Com isso, professores e alunos, por meio da elaboração de estudos e projetos, têm cada vez mais despertado o interesse de outras pessoas no que se refere a esse campo de estudos tão necessário que é o campo da Linguística Documental.

Mesmo com esses esforços, é notório que são muitos os fatores que se apresentam como obstáculos ao processo de documentação, a exemplo das questões econômicas e socioculturais que nos permeiam. Ainda assim, é necessário resistir, pois só assim teremos disponíveis políticas e projetos de documentação e revitalização que, como sugere o título deste texto, é uma necessidade que vai muito além dos estudos linguísticos.

Referências
CAMPETELA, C. et al. Documentação linguística, pesquisa e ensino: revitalização no contexto indígena do norte do Amapá. Revista LinguíStica, Rio de Janeiro, v. 13, n. 1, p. 151-167, jan. 2017.

FRANCHETTO, B. Línguas indígenas e comprometimento linguístico no Brasil: situação, necessidades e soluções. Cadernos de Educação Escolar Indígena, Cáceres, v. 3, n. 1, p. 9-26, 2004.

Indicações de sites que auxiliam na documentação de línguas indígenas do Brasil:
Biblioteca Digital Curt Nimuendajú
Museu do Índio – Funai
Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG)
Povos Indígenas do Brasil

Autor: João Gabriel Pereira da Silveira
Graduando em Letras-Bacharelado com ênfase em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). É revisor bolsista da Coordenação de Gestão Editorial e Impacto Social (CGEI), vinculada à Pró-Reitoria de Extensão e Cultura da UFPE, e membro do Grupo de Estudos e de Pesquisa em Tradução e Tecnologia (Getradtec) da mesma instituição. E-mail: jgsilveira96@gmail.com.

Libras: língua, cultura e patrimônio do Brasil

No Brasil, ainda há a ideia de que a língua portuguesa é a única falada no país. Na verdade, temos outras diversas línguas que compõem a cultura brasileira. Uma delas é a Língua Brasileira de Sinais, conhecida como Libras.

Relacionada ao monolinguismo (uma só língua), há no imaginário social a ideia de que a aprendizagem de uma segunda língua quebra o estigma social de língua como unificadora da nação. Ao darmos continuidade a essa ideia, estamos contribuindo para o esquecimento de determinadas culturas que se relacionam com as línguas minoritárias.

A importância de aprender uma segunda língua contribui em diversos aspectos da vida social. Um erro comum é considerar a Libras uma linguagem e não uma língua; por isso, é relevante que se tenha orientação das necessidades comunicativas de pessoas surdas.

Em abril deste ano, há 19 anos, a Libras foi reconhecida como meio legal de comunicação e expressão dos surdos através da lei nº 10.436/2002, que garante ser papel do poder público o apoio e utilização de Libras como meio de comunicação.

Vemos a importância dessa ação com o relato da militante acadêmica surda do movimento Surdo não é somente de sujeitos surdos: “[…] a comunidade surda de fato não é só de sujeitos surdos, há também sujeitos ouvintes – membros de família, intérpretes, professores, amigos e outros – que participam e compartilham os mesmos interesses em comuns, em uma determinada localização”. (STROBEL, 2008, p. 30)

Outros agentes que promovam à cultura surda condições sociais e culturais nas esferas de comunicação e a valorização da Libras em interação com a cultura dominante (cultura dos ouvintes) fazem com que a identidade cultural do sujeito surdo se forme.

O desenvolvimento de ações culturais que fomentem a Libras é um importante papel para a continuidade no progresso da comunidade surda, é por meio do fortalecimento da cultura surda que é possível estabelecer novas conjunturas sociais. Um exemplo é o inventário da Libras, que promove a língua a patrimônio linguístico e cultural. Além disso, a Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (FENEIS) é um importante órgão para a realização de práticas culturais que fomentem a integração de relações entre ouvintes e surdos.

Fonte: https://www.libras.com.br/divulgacao-libras

Referências
STROBEL, K. As imagens do outro sobre a cultura surda. Florianópolis: Editora UFSC, 2008.

Autora: Camila Franz, formada em Letras Licenciatura Português e estudante de Mestrado em Linguística, ambas pela Universidade Federal de Pelotas.

O contexto bilíngue na educação da comunidade surda

A sociedade brasileira é formada por mais de 200 milhões de pessoas, e, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE, 2010), 5% dessa população tem algum grau de deficiência auditiva. Desse grupo, 2 milhões de pessoas possuem um nível severo de perda auditiva e 15% deles já nasceram com essa condição. Portanto, em comparação com o número de pessoas ouvintes, a população surda é um grupo minoritário, e resulta em uma comunidade linguística também minoritária, caracterizada pelo uso da Língua Brasileira de Sinais (Libras).

Fonte: https://www.gov.br/mdh/pt-br/ondh/centrais-de-conteudo/imagens/libras.png/view

Tudo bem, mas o que é a ‘língua de sinais’? Bem, a língua de sinais consiste em uma língua natural, visual-gestual, com gramática própria, usada pelos surdos para se comunicarem. Aqui no Brasil, ela coexiste com a língua portuguesa, logo, serve como base para a comunidade surda adquirir a modalidade escrita da língua majoritária. Além disso, por estarem em contato, elas propiciam um contexto bilíngue, como se verá a seguir.

Entre as diferentes concepções de bilinguismo, considera-se uma pessoa bilíngue quem se identifique ou seja identificado como adepta de duas línguas, ou seja, quem convive paralelamente com duas formas de comunicação e equilibra os seus usos de acordo com a necessidade da situação. Além disso, nesse espaço de interação, o surdo se relaciona também com duas culturas: a surda e a ouvinte. “Humm, mas como assim?” Um exemplo é quando o aluno surdo tem pais e amigos também surdos e, ao ingressar na escola, ele encontra professores, funcionários e/ou outros colegas ouvintes. Por isso, além de bilíngues, eles também são biculturais.

Ademais, será que há uma lei específica visando à educação desse grupo? Sim, a comunidade surda tem garantido por lei o acesso ao aprendizado do português. O decreto n° 5.626 (BRASIL, 2005) prevê a obrigatoriedade das instituições federais em ofertar o ensino de Libras e de língua portuguesa para alunos surdos desde a educação infantil, sendo a língua de sinais a primeira língua do aluno, e o português a sua segunda língua. A inclusão ainda deve ocorrer por meio da organização de escolas e classes de educação bilíngue com a presença não apenas de professores aptos para tal espaço, mas também de tradutores e intérpretes.

Embora esse ensino seja assegurado por lei, a proposta nem sempre é colocada em prática na realidade de muitas escolas, pois existem inúmeras barreiras impedindo esse processo. Portanto, só será possível oferecer aos surdos um ensino bilíngue de qualidade quando algumas questões – como a formação de professores capacitados para ensinarem português como língua adicional; mudanças na forma de avaliação; e a produção de material didático voltado para as especificidades do aluno surdo – forem estudadas, planejadas e desenvolvidas com mais afinco e atenção.

Referências
BRASIL. Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005. Regulamenta a Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais – Libras, e o art. 18 da Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Diário Oficial da União, Brasília, 23 dez. 2005. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/decreto/d5626.htm. Acesso em: 20 nov. 2020.
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico 2010: Características gerais da população, religião e pessoas com deficiência. Rio de Janeiro: IBGE, 2010. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/94/cd_2010_religiao_deficiencia.pdf. Acesso em: 20 nov. 2020.

Autora: Aline Mackedanz dos Santos – Acadêmica do curso de Letras – Português e Inglês – pela Universidade Federal de Pelotas.

 

Por que as pessoas insistem em falar outras línguas além do português?

Fonte: https://www.istockphoto.com/br/ilustra%C3%A7%C3%B5es/language-barrier

A resposta para a pergunta feita no título é bastante simples: porque falar a língua materna é um direito de todos. Estão erradas as pessoas que defendem o ideal de que no Brasil se deve apenas falar português. Ao analisarmos os dados em relação aos idiomas usados no País (SIMONS; FENNIG, 2020), verificamos a existência de 218 línguas utilizadas pela população. No entanto, a maior parte dessas não recebe a devida importância por serem línguas minoritárias.

Línguas minoritárias são aquelas faladas por pequenos grupos de pessoas, em um ambiente no qual a língua nacional é diferente. Esses idiomas servem como meio de comunicação em diversas comunidades (NARDI, 2004). É o caso das línguas de origem indígena, africana, alemã, italiana. Mesmo não tendo destaque, é fundamental que elas sejam protegidas da extinção.

Existem algumas iniciativas governamentais que buscam chamar a atenção para o valor dessas línguas como, por exemplo, as ações do Colegiado da Diversidade Linguística do Rio Grande do Sul (2018). O governo do Rio Grande do Sul considera a diversidade linguística como um patrimônio cultural, que reflete a história e a cultura dos povos que as falam. Também, entende que o conhecimento proveniente do domínio de um idioma auxilia os falantes nas possibilidades de mobilidade e acesso a culturas diversas – a cultura da sua comunidade e a cultura nacional. Compreende, ainda, que seu uso pode aumentar a potencialidade econômica e científica de seus falantes. Todas essas razões favorecem a manutenção das línguas minoritárias.

Fonte: https://www.ufrgs.br/projalma/documento-sobre-a-diversidade-linguistica/

Falantes e não falantes de línguas minoritárias devem exigir o desenvolvimento de planos destinados à garantia de existência desses idiomas. Estudos recentemente desenvolvidos enumeram uma série de estratégias de proteção às línguas minoritárias (HORST; KRUG; FORNARA, 2017). Espaços como o ambiente escolar, a comunidade e as famílias são os mais importantes para a conscientização de que essas línguas devem ser preservadas. Muito pode ser feito a partir de atividades de promoção dos idiomas, sendo alguns exemplos: oficinas, seminários, apresentações teatrais e musicais, desenvolvimento das habilidades escritas e orais, incentivo do uso das línguas em rádios locais, em momentos recreativos e na convivência familiar.

Em síntese, é preciso entender que falar uma língua minoritária não se trata de “insistir”, mas de exercer um direito.

Referências
SIMONS, G.; FENNIG, C. Ethnologue: Languages of the World. Dallas: SIL International, 2017. Disponível em: https://www.ethnologue.com/country/BR. Acesso em: 09 set. 2020.
NARDI, J. Línguas minoritárias e memórias. Resgate: Revista Interdisciplinar de Cultura, v. 12, n. 1, p. 117–134, 2004.
COLEGIADO DA DIVERSIDADE LINGUÍSTICA DO RIO GRANDE DO SUL. Diversidade linguística do RS: inventariar, reconhecer, salvaguardar, promover. Conselho Estadual de Cultura do RS. Documento. Porto Alegre, 2018.
HORST, C.; KRUG, M.; FORNARA, A. E. Estratégias de manutenção e revitalização linguística no Oeste Catarinense. Organon, v. 32, n. 62, p. 1–16, 2017.

Autora: Aline Behling Duarte
Possui graduação em Letras – Português/Inglês e respectivas Literaturas, na Universidade Federal de Pelotas (2012). Mestra em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pelotas, na área de concentração – Estudos da Linguagem (2018). Atualmente é integrante do Laboratório de Psicolinguística, Línguas Minoritárias e Multilinguismo (LAPLIMM) e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pelotas, na linha de pesquisa Aquisição, variação e ensino.

 

 

Uma língua também pode morrer

Em 18 de janeiro de 1858, desembarcou em São Lourenço do Sul a primeira leva de imigrantes pomeranos oriundos da então Pomerânia. Apesar de todas as dificuldades, eles foram se estabelecendo nas terras do município, prosperando e abrindo o caminho para futuras levas. Além da cultura e das tradições, o grande tesouro que trouxeram para as terras brasileiras foi a língua, que hoje inclusive é dada como quase extinta no local onde se originou.

Lamentavelmente, o uso do pomerano tem diminuído também em terras brasileiras. A modernização e certas crenças parecem ser algumas justificativas para isso. Os mitos que envolvem a escolha da língua na qual uma criança deve ser criada podem ser os verdadeiros culpados da diminuição do uso desta língua tão única. Conforme a pesquisadora Isabella Mozzillo (2015), muitos pais acabam se convencendo que criar e educar uma criança em duas línguas simultaneamente pode ser prejudicial para o desenvolvimento da criança, quando na verdade pode ser prejudicial não incentivar o uso das duas línguas.

A escolha do convite de enterro para chamar atenção dos falantes pomeranos ocorre pelo grande e inquestionável respeito que os pomeranos têm pela morte, como estudado por Gislaine Maltzahn (2012). Além do mais, esse tipo de texto é muito conhecido na comunidade pomerana. A intenção é buscar a reflexão, já que, se continuarem acreditando nos mitos sobre a ensino de duas ou mais línguas para as crianças, os seus descendentes diretos já não serão mais herdeiros dessa língua e talvez nem da cultura pomerana. Também poderia trazer questionamentos sobre as mudanças necessárias para que a língua pomerana permaneça prestigiada e valorizada na sua própria comunidade. Afinal, o uso da língua pomerana não é importante apenas para a manutenção dela mesma. A língua é também a chave para a compreensão de muitos elementos culturais. Existem brincadeiras, receitas, tradições e costumes que só têm sentido completo se forem passados adiante com o uso da língua que identifica todas essas ações.

Por fim um questionamento: Se você recebesse um convite para enterro, de um ente querido, que só aconteceria daqui há alguns anos e entendesse que você poderia salvar esse ente, ou até mesmo prorrogar a sua existência por mais uma geração caso mudasse algumas convicções e não acreditasse em mentiras, o que você faria por este ente querido? Este ente é querido é a língua pomerana! Não podemos deixar que a língua seja extinta, como já ocorreu com outras 12 línguas brasileiras, segundo o Atlas das línguas em perigo, da UNESCO. A mudança necessária para a manutenção do pomerano está ao nosso alcance?

Referências:
MALTZAHN, Gislaine Maria. Família, ritual e ciclos de vida: estudo etnográfico sobre narrativas pomeranas em Pelotas (RS). 2012. 152 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Humanas) – Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2012.
MOZZILLO, Isabella. Algumas considerações sobre o bilinguismo infantil. Veredas – Revista de estudos linguísticos, v. 19, p. 147-157, 2015.

Autora: Gisleia Blank
Graduada em Letras – Português/Alemão pela UNISINOS (2011). Mestranda em Letras pelo PPGL da UFPel, integrante do Laboratório de Psicolinguística, Línguas Minoritárias e Multilinguismo. Atua principalmente como professora particular de Alemão.

HQ sinalizada: Séno Mókere Káxe Koixómuneti (Sol: a Pajé surda)

Desenvolver pesquisas na área dos quadrinhos, em especial, das HQs sinalizadas (CEZAR, 2019), trouxe-nos muitos desafios e, ao mesmo tempo, muita satisfação. Criar uma narrativa gráfica tendo como principal objetivo o desenvolvimento de um material bilíngue para surdos (Libras – português escrito) nos fez pensar no plurilinguismo brasileiro das línguas de sinais.

Ao escolhermos retratar a existência da língua terena de sinais, durante o processo histórico da comunidade, optamos por explorar as ilustrações a partir das características da cultura (pintura, ritual, cores) para minimizamos o uso da escrita das línguas majoritárias (português/terena escrito). Junto a isso, exploramos com os recursos tecnológicos (vídeos) a transmissão dos saberes também em Libras. Dessa forma, acreditávamos que conseguiríamos levar o gênero HQ para os surdos urbanos e para as escolas da Terra Indígena Cachoeirinha-MS (surdos e não surdos) com a intenção de despertar e valorizar as línguas de minorias. Cabe destacar que a escrita terena pode apresentar variação como: Sêno Mókere Káxe Koixomoneti, Séno Mókere Koéxoneti, entre outras. A variação aqui utilizada é da aldeia Cachoeirtinhao/MS escrita pela professora de língua terena Maiza Antonio residente nessa aldeia.

Trabalhar com diferentes línguas envolve se debruçar nos conhecimentos históricos (com e sem registros escritos), analisar a estrutura linguística e compreender os artefatos culturais que envolvem, em outras palavras, uma grande entrega à pesquisa. Foi o que fizemos nestes últimos três anos de pesquisa (2018-2020), na Universidade Federal do Paraná (UFPR) em parceria com a Universidade Federal de Grande Dourados (UFGD); o Instituto de pesquisa da Diversidade Intercultural (IPEDI), a Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho (Linbra-UNESP); a Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), o Laboratório de Mídias (UFJF) e a Gibiteca de Curitiba. Formamos uma grande equipe de pesquisadores nas línguas estudadas: terena oral, terena escrito, língua brasileira de sinais, língua de sinais terena, português escrito e língua inglesa.

A HQ foi divulgada primeiramente para os indígenas terena que contribuíram voluntariamente com a pesquisa que foi por eles mostrada nas aldeias terena (Vagner da Aldeia Água Branca, Aquidauana/MS, Kaliny da Aldeia Jaguapiru, Dourados/MS e Maiza da Aldeia Cachoeirinha, Miranda/MS) todos relataram um encantamento com a produção do material. A equipe de pesquisadores também salientou a originalidade de articular os recursos digitais com as ilustrações de Júlia Ponnick que generosamente aceitou não só ilustrar, mas se envolver com os estudos teóricos sobre a comunidade (SILVA, 2013; VILHALVA, 2012; SUMAIO, 2014; SOARES, 2018).

A narrativa criada é um misto de ficção, fatos históricos de registros escritos e registros orais, transmitidos ao longo das gerações na comunidade terena. A história acontece antes do século XV, quando a personagem principal Káxe, a pajé surda, é chamada para o ritual típico de solicitar benção aos ancestrais ao nascer uma criança. Nesse momento, junto à benção, a pajé recebe a visão do futuro do povo terena por meio de imagens. Dessa forma, o desenvolvimento da narrativa perpassa os principais momentos históricos: desde o início do povo terena (Aruak) datado de antes do século XV, percorrendo o caminho geográfico que os terenas realizaram até se fixarem, em sua maior parte, na região do Mato Grosso do Sul.

Além do registro histórico, encontram-se os aspectos culturais bem marcados nas ilustrações como por exemplo as pinturas corporais, o artesanato, as plantações e a espiritualidade. Optamos a explorar as imagens ao invés da escrita em ‘’balões’’ em razão de priorizar a estrutura linguística das línguas de sinais, em outras palavras, visual-espacial.

Partimos da primeira pesquisa que descreve a existência da língua terena de sinais, que foi realizada pela pesquisadora e linguista Priscilla Alyne Sumaio Soares (2014; 2018). No entanto, há relatos e transmissões orais de que sempre existiram surdos (anciãos). Por este motivo, optamos por apresentarmos personagens se comunicando (sinalizando) ao longo da narrativa gráfica.

A narrativa encerra-se com o retorno do plano espiritual da pajé surda no ritual inicial de nascimento com a anciã transmitindo os ensinamentos em língua terena de sinais. A ideia transmitida é relatar o futuro do povo terena destacando sua principal característica de UNIÃO (ilustrado o sinal em língua terena de sinais).

Essa HQ impulsionou a criação de outros materiais que estão sendo realizados pela equipe envolvida, como o “Glossário Virtual Plurilíngue” em vídeos (terena de sinais, Libras) e escrita (terena e português) que tem como intuito refletir sobre a importância da língua de sinais ser a língua de instrução e transmissão dos saberes para surdos (Lei 10436/2002 – Decreto 5626/2005) e divulgar as outras línguas de sinais do Brasil que não dispõe de leis (SILVA; QUADROS, 2019).

A HQ será lançada pela editora Letraria e estará disponível para compra no site. Confira a tradução deste texto para a Libras neste link.

Boa leitura sinalizada!

Principais referências

BRASIL. Decreto-lei nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005. Diário Oficial [da] República Federativa do brasil, Brasília, 23 de dez. 2005. Seção 1, p. 30.
BRASIL. Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, 25 de abril de 2002. Acesso em: 10 mar. 2007.
CEZAR, K. P. L. HQ’s sinalizadas. Projeto de pesquisa institucional. Universidade Federal do Paraná, 2019-2020.
SILVA, D. Estudo lexicográfico da língua terena: proposta de um dicionário terena-português. 2013. 292 f. Tese (doutorado) – Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho, Faculdade de Ciências e Letras (Campus de Araraquara), 2013.
SILVA, D. S.; QUADROS, R.M. Línguas de sinais de comunidades isoladas encontradas no Brasil. Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 5, n. 10, p. 22111-22127 oct. 2019.
SOARES, P. A. S. LÍNGUA TERENA DE SINAIS: análise descritiva inicial da língua de sinais usada pelos terena da Terra Indígena Cachoeirinha. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós Graduação em Linguística e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Doutor em Linguística e Língua Portuguesa. Araraquara – São Paulo, 2018.
SUMAIO, P. A. Sinalizando com os terena: um estudo do uso da LIBRAS e de sinais nativos por indígenas surdos. 2014. 123 f. Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara, 2014.
VILHALVA, S. Mapeamento das Línguas de Sinais Emergentes: um estudo sobre as comunidades linguísticas Indígenas de Mato Grosso do Sul. 2012. 124 f. Thesis (MSc in Linguistics) – Programa de Pós-Graduação em Linguística – Centro de Comunicação e Expressão. Universidade Federal de Santa Catarina, 2009.
VILHALVA, S. Índios surdos: mapeamento das línguas de sinais no Mato Grosso do Sul. Petrópolis: Arara Azul, 2012.

Autores:
Ivan de Souza: Acadêmico do curso de licenciatura em Letras Libras da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Tradutor-intérprete de Libras. Pesquisador da iniciação científica (PIBIS/FA/UFPR). E-mail para contato: hiven89@gmail.com.
Kelly Cezar: Pós-doutora pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). Doutora pelo Programa de Linguística e Língua Portuguesa da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP-FClar/Araraquara). Professora Adjunta da Universidade Federal do Paraná (UFPR), campus de Curitiba. Líder do projeto institucional “HQ’s sinalizadas”. Docente do curso de licenciatura em Letras Libras (UFPR). E-mail para contato: kellyloddo@gmail.com.

O que são línguas minoritárias?

Você já parou para pensar quantas línguas há no Brasil? Com quantas delas você já teve contato ou quantas fala? Provavelmente você já se deparou com alguma língua minoritária. Ao contrário do que muitas vezes pensamos, o português não é a única língua do Brasil. Como Maher (2013) aborda, há uma variedade de línguas em cada estado, que possuem sua cultura e sua história.

Ao acessar o site Ethnologue, podemos ver que  há mais de 100 línguas minoritárias no Brasil, dentre elas, a língua brasileira de sinais (Libras) e línguas indígenas como o kaingang, macuxi, terena, guajajara, guarani, entre outras. Há também línguas que foram trazidas para cá por meio de imigrantes, como o talian, polonês, alemão, ucraniano, pomerano, chinês e hunsriqueano.

Fonte: Criado pela autora no site https://www.mentimeter.com/

O português é a língua oficial do Brasil, usada pelo governo em seus documentos e leis, nas escolas, na televisão e no rádio. Mas há outras línguas que são usadas em diferentes contextos, como no comércio, na rua, em casa, em bares e eventos comunitários. De acordo com Altenhofen (2013), essas línguas são chamadas de minoritárias, pois pertencem a grupos que não são tão prestigiados social, cultural ou politicamente como os grupos de línguas majoritárias (línguas com maior prestígio, como o português no Brasil). Assim, as línguas minoritárias do país possuem status social mais baixo do que o português.

Algumas dessas línguas não são reconhecidas oficialmente, a maioria é falada em pequenos grupos ou em comunidades locais como o pomerano, que é mais presente, por exemplo, em Santa Maria do Jetibá (ES), São Lourenço do Sul, Arroio do Padre e Canguçu (RS). Algumas línguas minoritárias também podem ser incorporadas na escola, como no Mato Grosso, que adicionou o xavante ao seu currículo.

No entanto, por terem um status minorizado, algumas línguas minoritárias correm risco de extinção. Um dos motivos mais comuns é o fato de a maioria delas ser mais presente no contexto familiar e, com o passar das gerações, os filhos e netos vão, aos poucos, deixando de aprender a língua da família. Assim, é importante que haja esforços para a manutenção dessas línguas, por exemplo, por meio de campanhas de conscientização e ações de intervenção nas comunidades. Por isso, também é de grande relevância que haja estudos linguísticos sobre essas línguas, para que também seja possível analisar qual o tipo de ação adequada para a sua manutenção.

Se você deseja conhecer um pouco mais sobre as línguas minoritárias no mundo, poderá acessar os seguintes links: Wikitongues, Endangered Language Alliance, ILoveLanguages!, e Indigenous Tweets.

Referências
ALTENHOFEN, C. V. Bases para uma política linguística das línguas minoritárias no Brasil. In: NICOLAIDES, C.; SILVA, K. A.; TÍLIO, R; ROCHA, C. H. (Org.) Política e Políticas Linguísticas. Campinas: Pontes Editores, 2013. p. 93–116.
MAHER, T. M. Ecos de resistência: políticas linguísticas e línguas minoritárias no Brasil. In: NICOLAIDES, C.; SILVA, K. A.; TÍLIO, R; ROCHA, C. H. (Org.) Política e Políticas Linguísticas. Campinas: Pontes, 2013. p. 117-134.

Autora: Gabriela Wally Griep
Possui graduação em Letras – Português e Inglês pela Universidade Federal de Pelotas (2017). Atualmente é mestranda em Letras pela mesma instituição e integrante do Laboratório de Psicolinguística, Línguas Minoritárias e Multilinguismo (Laplimm). É professora de inglês há mais de dois anos em escola de idiomas.

Línguas africanas no Brasil: você já pensou sobre essas línguas?

Na história do Brasil, sabe-se que o povo de origem africana chegou ao país na condição de pessoas escravizadas. Assim, de acordo com a historiadora Sharyse Amaral (2011), estima-se que entre os séculos XVI e XIX milhares de pessoas do continente africano foram trazidas de forma abrupta e violenta. Os africanos que conseguiram resistir às péssimas condições a que foram submetidos nos navios negreiros trouxeram para a nova terra a cultura do seu lugar de origem, como os costumes, a religião e a língua, foco deste texto.

Antes de tudo, é necessário mencionar que o nosso país não tem apenas o português como o único idioma, pois, de acordo com a linguista Terezinha Maher (2013), temos mais de 200 línguas, entre línguas de imigração, indígenas e as de origem africana, as quais são consideradas línguas plenas ou especiais. É possível encontrar as línguas africanas em rituais de religiões de matriz africana e como demarcação social, conforme dado apontado por Margarida Petter em 2017.

Apesar da ausência dessas línguas nas placas de “Bem-vindo”, em entrada de cidades, assim como em placas indicando comunidades quilombolas ou placas turísticas, por exemplo, é possível ver sua influência em nosso vocabulário. Contamos com palavras influenciadas principalmente pelo banto, grupo etnolinguístico localizado principalmente na África subsaariana, como, por exemplo, abadá, caçula, dengo, tanga, banguela, muvuca, entre outras. Confira mais exemplos no texto de Flora Pereira.

http://www.afreaka.com.br/notas/diversidade-linguistica-africana-e-suas-herancas-na-formacao-portugues-brasil/

Considerando que na época do tráfico negreiro a população escravizada era a maior na sociedade da época e, atualmente, a população afrodescendente no Brasil representa mais de 50%, segundo os últimos dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), convém trazer para a nossa discussão a seguinte questão: Por que esse grande número não foi suficiente, em termos quantitativos, para que tivéssemos maior conhecimento, presença e comunidades de fala com as línguas de origem africana?

É necessário lembrar que os africanos, desde sua chegada ao Brasil, já vieram ocupando posições sociais marginalizadas e subjugadas. Isso explica, em partes, porque o povo preto pouco conseguiu manter viva sua língua materna, especialmente pelo fato de os colonizadores promoverem a mistura de diferentes etnias africanas em uma capitania a fim de evitar uma rebelião. Junto disso, sabe-se que o acesso à educação para essas pessoas era totalmente negado pela sociedade da época.

O caso das línguas africanas revela que há relações de poder nas políticas linguísticas. A população africana escravizada, em virtude da sua posição social marginalizada, não tinha poder na sociedade da época para manter sua língua de origem, mesmo que contabilizasse a maioria da população na época.

Por fim, é preciso levantar que o principal problema em torno das línguas africanas e dos dialetos originários dela é a falta de visibilidade dessas línguas, assim demonstrando certo apagamento de parte da cultura de um povo, o preto. Apesar disso, reconhecemos a sobrevivência dessas línguas em rituais religiosos e como demarcação social como um processo de resistência da cultura afro-brasileira.

Referências
AMARAL, Sharyse Piroupo do. História do negro no Brasil. Brasília: Ministério da Educação. Salvador: Centro de Estudos Afro orientais, 2011.
MAHER, T. M. Ecos de resistência: políticas linguísticas e línguas minoritárias no Brasil. In: NICOLAIDES, C.; SILVA, K. A.; TÍLIO, R; ROCHA, C. H. (Org.) Política e Políticas Linguísticas. Campinas: Pontes, 2013. p. 117-134.
PETTER, Margarida. Línguas Africanas no Brasil. África: Revista do Centro de Estudos Africanos. USP, S. Paulo, n. 27-27, p. 63-89, 2007. 

Autora: Nessana Pereira
Graduação em Letras – Português pela Universidade Federal de Pelotas (2018). Atualmente, é mestranda em Letras pela mesma instituição.

Ser coda: você sabe o que isso significa?

As línguas de sinais são línguas naturais utilizadas pelas comunidades surdas. No Brasil, a Libras foi instituída como meio de comunicação legal das comunidades surdas brasileiras através de uma Lei do ano de 2002. Os filhos ouvintes de pais surdos começaram a ser referidos como “codas” por causa da criação da organização internacional CODA (Children of Deaf Adults).

Segundo a linguista e coda Ronice Quadros (2017), codas são crianças ou adultos filhos de pais surdos. Esses sujeitos estão naturalmente expostos a dois mundos diversos: o mundo dos surdos e o mundo dos ouvintes. Os codas compartilham a experiência de crescerem em famílias que utilizam uma língua de herança em casa que é, muitas vezes, diferente daquela utilizada fora do ambiente familiar, na maioria da sociedade. Podemos chamá-los de bilíngues, pois os codas transitam desde muito cedo nesses dois mundos e aprendem as línguas desses dois ambientes linguísticos.

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Coda Brasil

Anualmente, acontece o Encontro nacional de codas, um evento pensado para que estes possam trocar suas experiências, aprender novos conhecimentos e conhecer outros filhos de pais surdos brasileiros. No dia 28 de setembro de 2020, no canal do Facebook da Associação de surdos de Pelotas (ASP), Maitê Maus da Silva compartilhou suas experiências sobre ser coda. Ela nos explica que ser coda é ter orgulho de possuir pais surdos. Maitê comenta que em 2013 aconteceu o primeiro encontro de filhos de pais surdos no Brasil, que é um momento em que os codas se reconhecem entre seus pares que possuem experiências semelhantes. Para participar do Encontro nacional de codas, saber Libras não é uma obrigatoriedade, mas um dos requisitos é ser maior de 18 anos. Ela comenta que ter pais surdos ou mãe ou pai surdos possibilita aprendizagens diferentes que, como tudo na vida, têm o lado bom e o lado ruim.

No dia 9 de outubro, Natasha foi convidada a dar o seu relato sobre ser coda. Ela comenta que considera extremamente importante a participação dos filhos de pais surdos na Associação de surdos, pelo fato de poderem apreender os sinais utilizados na Libras. Muitas vezes, as famílias utilizam sinais provisórios dentro dos seus lares, além de ser importante esse contato com outros surdos, pois a língua de sinais é uma língua viva e os sinais sofrem mudanças. Natasha também menciona que na Associação de surdos há contato com o mundo dos surdos e, neste ambiente, seus pais surdos, ao se encontrarem com seus pares, se sentem felizes. Como coda, Natasha acredita que ela precisa participar do mundo ouvinte e também do mundo surdo, pois é nesse mundo que se encontram seus pais. “É preciso ter empatia e se colocar no lugar dos outros, pois no mundo ouvinte há muitas barreiras e preconceitos para as pessoas surdas”, afirma Natasha. O último ponto citado por ela é a questão das famílias que possuem codas terem suas experiências de vida muito semelhantes, e é nesse espaço social que há a possibilidade de trocas.

Nos seguintes links, é possível assistir na íntegra aos relatos de Maitê e Natasha em língua de sinais e com legendas e áudio em português: relato da Maitêrelato da Natasha. 

Referências
Children of Deaf Adults International Inc. Disponível em: https://www.coda-international.org/. Acesso em 06 nov. 2020.
QUADROS, R. M. Língua de Herança – Língua brasileira de sinais. Porto Alegre: Penso, 2017.

Autora: Karina Ávila Pereira
Doutora em Educação. Professora Adjunta da Área de Libras da Universidade Federal de Pelotas.

 

Devemos temer o Portunhol?

Quando ouvimos falar em portunhol, prontamente surgem alguns pré-conceitos. Podemos lembrar, por exemplo, do estereótipo de brasileiros tentando comicamente falar espanhol. Mas esse termo denomina mais de um fenômeno, segundo explica a linguista Eliana Sturza.

Portunhol pode indicar uma mistura entre português e espanhol que objetiva a interação e a comunicação imediata. É utilizado, por exemplo, por turistas e por vendedores e clientes em trocas comerciais, como uma prática para a compreensão entre usuários de diferentes línguas.

Chama-se também portunhol a forma de falar dos aprendizes que estão em níveis iniciais e que realizam mesclas entre os idiomas. É visto como problema a ser superado, ainda que seja um processo normal. Muito cursos de espanhol, por exemplo, oferecem “soluções” para que se evite cometer esse deslize.

Além disso, portunhol é um dos nomes que recebe a língua falada por muitos habitantes do norte do Uruguai, principalmente aqueles da zona rural e de periferias urbanas. Pode-se considerar uma herança das disputas entre portugueses e espanhóis por esse território. Por ser predominantemente oral e ser utilizado por pessoas com pouco nível de instrução, é caracterizado como variedade inferior ou “mal falar”. Atualmente, tem sido apresentado como marcador de identidade cultural, como afirma a linguista Isabella Mozzillo. Está presente, por exemplo, na produção do escritor Fabian Severo e do músico Chito de Mello.

Existe ainda o Portunhol Selvagem, que é um recurso de escrita literária. Compõe-se do entrelaçamento de outras línguas, além de português e espanhol, como guarani e inglês. Um dos maiores divulgadores dessa expressão é o poeta Douglas Diegues.

Muitas dessas definições são pejorativas e demonstram preconceito pelos modos de falar em que ocorrem misturas de línguas. O portunhol não demonstra incompetência e não precisa ser temido. É recurso comunicativo e artístico. É produto do processo de aprendizagem. É elemento da identidade dos falantes.

A riqueza da diversidade expressa por essa língua de contato pode ser vista no documentário Portuñol, premiado no Festival de Cinema de Gramado e no Festival As Amazonas do Cinema.

Página do Instagram portunol.doc. Divulgação dos prêmios que o documentário Portuñol recebeu no festival As Amazonas do Cinema.

Referências
MOZZILLO, Isabella. Vamos falar sobre o Portunhol. Tessituras, Pelotas, v. 6, n. 1, p. 59-64, jan./jun. 2018.
STURZA, Eliana. Portunhol: língua, história e política. Gragoatá, Niterói, v. 24, n. 48, p. 95-116, jan./abr. 2019.

Autora: Débora Medeiros da Rosa Aires é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Desenvolve pesquisa sobre ideologias linguísticas e ensino/aprendizagem de língua estrangeira. Atua como professora de Língua Espanhola na rede pública de ensino do município de Capão do Leão/RS.