A língua é um componente complexo da existência humana, porque seu propósito não é somente facilitar a comunicação, mas também expressar a individualidade e cultura do falante. A ciência linguística, fragmentada em subáreas, nem sempre consegue captar essas questões. Bylund (2022) discorre sobre as lacunas na pesquisa psicolinguística, uma vez que a maioria dos estudos da área são feitos por e com o mesmo padrão de indivíduos: ocidentais, brancos, neurotípicos, ouvintes e falantes de línguas hegemônicas. A problemática trazida pelo autor é extremamente relevante: se a pesquisa conta com apenas um grupo seleto de participantes, então ainda não há compreensão da mente humana como um todo, mas a compreensão de somente um tipo de mente em um tipo de contexto. Surgem, então, diversos questionamentos: de que forma falantes de línguas minoritárias ou marginalizadas usam as línguas? De que forma essas línguas são capazes de influenciar a percepção de seus falantes? De que forma a cultura desses falantes influencia o uso da língua e vice-versa? Uma ciência que não se preocupa em analisar essas questões deixa lacunas. Estudos com outras amostras podem dar início a descobertas mais profundas, complementar aquelas já feitas e possibilitar outras generalizações.
As amostras WEIRD resultam em dados de participantes e contextos ocidentais (western), acadêmicos (educated), provenientes de países industrializados (industrialized), ricos (rich) e democráticos (democratic). Isso contrasta com a realidade experienciada pelo restante da população mundial, representada pelas amostras não-WEIRD, que incluem informantes de contextos distintos daquele grupo dominante em termos de poder. Segundo Polinsky (2018), a população WEIRD corresponde a somente 12% da população mundial. Embora a expressão “não-WEIRD” abranja a maior parte das pessoas do mundo, essa diversidade ainda é frequentemente negligenciada em pesquisas ou, quando estudada, sofre com preconceitos e exotificação. No nosso grupo de pesquisa, tentamos adaptar o acrônimo WEIRD para o contexto brasileiro. Achamos necessário criar outra expressão, seguindo um processo de domesticação na tradução. Criamos o acrônimo “DIRETO”: contexto democrático, industrializado, rico, escolarizado, tradicional e ocidental.
A adoção de um contexto de pesquisa “WEIRD” ou “DIRETO” como grupo ideal de estudo dificulta e desestimula, por exemplo, a pesquisa com falantes de línguas minoritárias, contempladas mais frequentemente pela Sociolinguística. De modo geral, na Psicolinguística, as pesquisas sobre bi-/multilinguismo são feitas através das “lentes do monolinguismo” (Leivada et al., 2023, p. 2). Certas comunidades linguísticas, no entanto, são, por natureza, bi-/multilíngues, não havendo um grupo “monolíngue” de comparação. Ademais, tal prática cria a ideia de que o monolinguismo é a “norma”, o padrão a ser esperado, enquanto o bi-/multilinguismo é o evento “atípico” a ser estudado. A consequência dessa visão é a falta de representatividade das línguas minoritárias nos estudos, enquanto pesquisas com línguas hegemônicas/majoritárias são amplamente desenvolvidas e aceitas pela comunidade acadêmica. Segundo Figueroa (2024), isso contribui para a manutenção da supremacia branca – uma vez que seus perfis linguísticos são adotados como os mais desejáveis na pesquisa, enquanto os de populações racializadas sofrem apagamento, tanto no âmbito acadêmico quanto social.
A pesquisa em Psicologia em geral tem sido criticada por ter uma amostragem excessiva de populações WEIRD (Kirk, 2023). Podemos atribuir essa crítica também à (Psico)Linguística, que tem o problema de realizar uma grande quantidade de pesquisas com um número relativamente pequeno de línguas. No entanto, mesmo em ambientes WEIRD, as experiências dos falantes de línguas minoritárias, Indígenas, Não padrão e Dialetais (MIND, em inglês: minority, indigenous, nonstandard(ized) and dialect variety) nem sempre são capturadas juntamente com o uso de uma língua padrão de maior prestígio. O novo acrônimo incentiva os pesquisadores a MIND sua linguagem – (do inglês mind ‘ter em mente, considerar’), desenvolver formas mais inclusivas de capturar as experiências linguísticas dos falantes MIND, para se afastar das distinções binárias de “bilíngue” e “monolíngue”, reconhecer diferentes dialetos do português e conceder o status de língua a variedades linguísticas independentes, com o objetivo de reconhecer a diversidade linguística. Esse reconhecimento deve abranger, igualmente, as línguas de sinais, como a Libras, frequentemente marginalizada por não se tratar de uma língua oral, mas sinalizada. Devido à estigmatização, muitos multilíngues não reconhecem o seu multilinguismo, porque somente a língua de prestígio é válida.
Outro acrônimo utilizado para contestar a supremacia de algumas amostras na pesquisa psico(linguística) é o MYAL (monolingual, young, avaliable, literate), proposto por Polinsky (2018). A ênfase em falantes idealizados, isto é, monolíngues, jovens, disponíveis e letrados pode estar distorcendo a percepção sobre os achados linguísticos. Pessoas que não correspondem ao padrão MYAL são, por vezes, consideradas como atípicas, mesmo sendo a maioria.
Essas questões na Psicolinguística (assim como em outras ciências) têm relação direta com a colonialidade, uma vez que parte do pressuposto de que certas línguas e nacionalidades são mais interessantes para a pesquisa do que outras (Figueroa, 2024). Essa ideia automaticamente exclui falantes de línguas marginalizadas pela sociedade, contribuindo para perpetuar preconceitos linguísticos, como o de que crianças de classes sociais baixas têm um mal desenvolvimento linguístico porque seu repertório linguístico é de “pior qualidade” – sem levar em consideração que esta noção existe por causa da métrica de comparação: o repertório linguístico de crianças de classe social alta (Figueroa, 2024). Esse tipo de pensamento tenta colonizar linguisticamente (e, por consequência, culturalmente) falantes que se encontram fora do contexto WEIRD, percebido como superior. Por essa razão, muito tem se discutido a respeito de uma Linguística decolonial (Figueroa, 2024), que busca incluir falantes marginalizados pela classe dominante na pesquisa científica.
Apesar de ainda ter muito a avançar, a Linguística tem dado passos significativos a caminho de se tornar uma ciência mais autoconsciente dos próprios vieses. Além da discussão sobre decolonialidade e sobre o conceito WEIRD, outro exemplo é a promissora área da Raciolinguística, que tem como principal preocupação a forma como raça e língua interagem e quais as influências que uma é capaz de ter sobre a outra. Dessa forma, a área é capaz de investigar assuntos sociais importantes, como o fato de pessoas pretas, indígenas e pardas – do acrônimo em inglês BIPOC (black, indigenous, people of color) muitas vezes serem percebidas como indivíduos em necessidade de correção (e recriminação) pelo modo como utilizam a língua. No Brasil, preferimos a sigla “NI” (negros e indígenas), pois não é comum o uso do termo “pessoas de cor” por aqui.
Na Raciolinguística, estudos sobre o vernáculo afro-americano (AAVE) têm mostrado inúmeras lacunas e preconceitos por parte da sociedade estadunidense. No Brasil, temos o “pretuguês”, uma variedade que mistura o português com termos, estruturas e expressões africanas — variedade esta que, assim como o AAVE dos EUA, recebe pouca valorização social e científica. O termo ganhou visibilidade a partir da autora Conceição Evaristo, que o utilizou em sua escrita para demonstrar como a língua é um aspecto importante para a resistência negra brasileira.
Tendo em vista a relevância das discussões apresentadas, que agora ganham espaço no âmbito acadêmico da (Psico)linguística, levar em consideração questões sociais do uso da língua e diferentes amostras não deve ser um fazer restrito à Sociolinguística, uma vez que os campos do conhecimento devem se complementar, investigando o uso e processamento linguístico em seus diversos contextos.
Referências
BYLUND, E. WEIRD Psycholinguistics. In: WILLIAMS, Q.; DEUMERT, A.; MILANI, T. M. (orgs.). Struggles for Multilingualism and Linguistic Citizenship. Bristol/Jackson: Multilingual Matters, 2022. p. 183–200.
FIGUEROA, M. Decolonizing (psycho)linguistics means dropping the language gap rhetoric. In: CHARITY HUDLEY, A. H.; MALLINSON, C.; BUCHOLTZ, M. (orgs). Decolonizing Linguistics. Nova Iorque: Oxford Academic, 2024. p. 157–172.
KIRK, N. W. MIND your language(s): Recognizing Minority, Indigenous, Non-standard(ized), and Dialect variety usage in “monolinguals.” Applied psycholinguistics, v. 44, n. 3, p. 358–364, 2023.
LEIVADA, E. et al. Bilingualism with minority languages: Why searching for unicorn language users does not move us forward. Applied psycholinguistics, v. 44, n. 3, p. 384–399, 2023.
MORAES, D. Nós falamos pretuguês!. Mundo Negro, 4 maio 2022. Disponível em: https://mundonegro.inf.br/nos-falamos-pretugues/. Acesso em: 25 nov. 2024.
POLINSKY, M. Heritage language and their speakers. Cambridge: Cambridge University Press, 2018.
Texto escrito de forma coletiva pelos integrantes do Laplimm no período de outubro a dezembro de 2024.