“Eles dança, eles olha, eles fica”? Em aulas de francês?

Vocês devem estar se perguntando: o que formas estranhas de concordância no português, como as que aparecem no título, têm a ver com uma língua aparentemente tão sofisticada quanto o francês? Pasmem e acreditem! Elas têm tudo a ver!

No entanto, antes de se mostrarem as relações entre as concordâncias ilustradas no título e as da língua francesa, é muito importante esclarecer que tais concordâncias nada estão erradas. Elas são, somente, uma variação dentro da língua portuguesa falada no Brasil, denominadas, linguisticamente, de variantes linguísticas não padrão do português brasileiro.

Esse assunto tão complexo, inclusivo e fascinante foi o que me levou, como professora de português e de francês, a dar espaço a variantes do português em aulas de francês língua estrangeira, sobretudo, àquelas que sofrem preconceito, desprestígio e estigma. Procuro, na medida do possível, trazer esse tipo de variação linguística para debater e confrontar com estruturas da língua francesa que é, sem dúvida nenhuma, uma língua de prestígio internacional.

Fonte: https://www.mlfmonde.org/tribunes/la-langue-francaise-est-elle-une-langue-laique/

Tudo isso, na intenção de mostrar aos alunos que algumas coisas em francês se dizem de maneira semelhante a algumas variantes no português. Nesse caminho, o aluno é levado a entender que as variantes nada têm de menor, de desprestígio, muito menos de erradas, mas são integradoras e fazem parte de todas as línguas (BAGNO, 1999; BORTONI-RICARDO, 2004; 2005; 2014).

É o que acontece com os verbos regulares no presente do indicativo: ambas as línguas têm várias pessoas em concordância verbal na escrita, porém, no registro falado, aparecem apenas duas. A divergência está no fato de que em português, tais concordâncias emergem em registros não padrão, enquanto, no francês, em registros padrão. Vejam só a explicação a seguir!

Tomando-se, por exemplo, a conjugação do verbo “falar” no português, têm-se todas as pessoas conjugadas na escrita [eu falo, tu falas, ele(a) fala, nós falamos, vós falais, eles/as falam, mas apenas duas nas variantes faladas por algumas pessoas, como em eu – [falu], tu, ele(a), nós, a gente, vocês eles(as) – [fala]. Observem, então, que em uma modalidade oral não padrão do português tem-se eu [falu] e o restante das pessoas, todo mundo [fala], enquanto na escrita, cada pessoa do verbo tem uma conjugação específica.

No francês, acontece a mesma coisa com esses verbos. Tomando-se, por exemplo, o mesmo verbo falar – parler [parle] no francês. Na escrita têm-se todas as pessoas conjugadas (je parle, tu parles, il/elle/on parle, nous parlons, vous parlez, ils/elles parlent, mas somente três aparecem na oralidade  (je, tu, il, elle, ils, elles, on [parl], nous [parlõ] e vous [parle].

Se observarmos com atenção, a similaridade parece não ser tão perfeita assim, já que o português tem duas pessoas e o francês, três na oralidade. Pois bem! Muitas pessoas falantes de francês utilizam on parle [õ parl] no lugar de nous parlons [nu parlõ], assim há uma espécie de apagamento do nous parlons e a utilização de on parle no lugar – o que resulta em duas pessoas na oralidade do francês. Vejam, então, que no francês existe vous parlez [parle] e o restante das pessoas tout le monde parle (todo mundo fala), absolutamente igual ao que ocorre com as conjugações verbais no presente do indicativo de verbos regulares em variantes não padrão do português, resultando nas concordâncias, aparentemente estranhas, que aparecem no título deste texto – eles dança, eles olha, eles fica, pronúncia que todos os falantes de francês usam em qualquer circunstância.

Referências
BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. São Paulo: Loyola, 1999.
BORTONI-RICARDO, Stella Maris. M. Educação em língua materna: a sociolinguística em sala de aula. São Paulo: Parábola, 2004.
BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Nós cheguemu na escola, e agora? Sociolinguística & educação. São Paulo: Parábola, 2005.
BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Manual de sociolinguística. São Paulo: Contexto, 2014.

Autora: Claudia Regina Minossi Rombaldi. Professora do Instituto de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-grandense (IFSul), no Campus Pelotas-Visconde da Graça (CaVG). Realizou estágio pós-doutoral no Programa de Pós-graduação em Letras, do Centro de Letras e Comunicação (CLC), da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), sob a orientação da Profa. Dra. Isabella Mozzillo.

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