O uso de palavras de outros idiomas, isto é, de estrangeirismos no português, é um tópico presente nas redes sociais ou rodas de conversa. Visto como uma ameaça à existência da língua, ou apontado como um tipo de submissão à cultura “estrangeira”, suscita opiniões acaloradas em defesa do idioma nacional. No entanto, o debate, frequentemente, fica no campo das crenças em torno do que é certo e errado na língua, o que acaba validando preconceitos em relação aos falantes.
Para o sociolinguista e professor da Universidade de Brasília, Marcos Bagno, os empréstimos entre as línguas sempre existiram e não são privilégio de um idioma ou outro. O inglês, por exemplo, possui vários termos emprestados do português. Segundo o autor, os estrangeirismos, com o tempo, adaptam-se aos sons, à ortografia e aos sentidos da língua. Quem já não se sentiu jururu (do tupi yuru-ru) e precisou tomar um café (do árabe, qahwa) com açúcar (do sânscrito, sarkara) sob à luz de um abajur (do francês, abat-jour)?
Outro equívoco apontado por Marcos Bagno nas falas de quem se opõe aos estrangeirismos, é concluir que seu uso exclui as pessoas mais simples da comunicação, já que não entenderiam o que é dito. Avaliar os usos que os falantes fazem da língua, levando em conta prestígio social, escolarização e classe econômica não é nada mais do que puro preconceito linguístico, garante o sociolinguista.
Para concluir
A troca entre as línguas é natural: a gente pega emprestado, mas também empresta. Os estrangeirismos resultam dessa troca. Por si só, não ameaçam as línguas e não excluem os falantes da interação com o mundo, muito pelo contrário. Usá-los não faz um povo mais servil ou “colonizado”. As conversas sobre a(s) língua(s) são saudáveis, importantes e necessárias, porém precisam considerar o que dizem as ciências da linguagem para desconstruir crenças e preconceitos.
Referências BAGNO, Marcos. Cassandra, Fênix e outros mitos. In: FARACO, Carlos Alberto. Estrangeirismos. São Paulo: Parábola, 2001. p. 49-83.
Autora: Andréa Ualt. Licenciada em Letras – Espanhol e Literaturas de Língua Espanhola, mestre em Educação e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPel. Professora de Espanhol do IFSul-Campus CaVG.
Uma das metas mais comuns entre pessoas que começam a estudar uma língua estrangeira é, um dia, serem capazes de falarem como um falante nativo do idioma que estão aprendendo. De fato, muitos alunos acreditam que só podem se considerar fluentes quando não tiverem mais nenhum traço de sotaque das suas línguas maternas. Mas será que isso – perder o sotaque e falar uma língua estrangeira que nem um nativo – é mesmo possível? Para responder essa pergunta, devemos primeiro entender o que significa aprender uma língua estrangeira.
De acordo com a teoria do professor e pesquisador Larry Selinker (1972), todos nós possuímos uma estrutura linguística latente no cérebro. Conforme temos contato com uma língua, essa estrutura se atualiza, assumindo as formas da língua à qual estamos expostos. Em outras palavras, essa estrutura latente é um dispositivo que, quando ativado, permite que aprendamos outros idiomas. E, quando nos expressamos em outra língua, o que produzimos não é idêntico ao que um nativo produziria, mas sim algo intermediário, situado entre a língua materna e a estrangeira: uma interlíngua.
Podemos enxergar a interlíngua como um continuum com duas extremidades: numa delas, temos a língua materna do aluno; na outra, o falante nativo da língua que o aluno está aprendendo. O aluno, por sua vez, se encontra entre esses dois pontos. Conforme vai estudando as regras e formas da língua estrangeira, ele vai se afastando cada vez mais do ponto inicial e se aproximando do ponto final. Todos aqueles que estiverem em algum ponto desse continuum são considerados bilíngues.
Segundo a professora Isabella Mozzillo (2003), na interlíngua, existem elementos da língua materna do aluno, de quaisquer outras línguas que esse aluno conheça e da língua-alvo. Em outras palavras, a interlíngua é um produto do contato de todas as línguas do sujeito. Novamente de acordo com Larry Selinker (1972), todo falante de uma interlíngua passa por alguns processos, dentre os quais temos: as transferências linguísticas, a supergeneralização e a fossilização.
Transferências linguísticas: quando o sujeito utiliza uma regra que existe na sua língua materna, mas não na língua estrangeira. Exemplo: J’ai acheté un voiture. No exemplo , um aprendiz brasileiro de francês fala “un voiture” porque, em português, fala-se “um carro”. Contudo, em francês, voiture (carro) é um substantivo feminino, e, por isso, a forma correta seria “une voiture”.
Supergeneralização: quando o sujeito aprende uma regra da língua estrangeira e a emprega mesmo quando não é necessária. Exemplo: I goed to the beach yesterday. Nesse exemplo, um aprendiz de inglês, após aprender que deve-se acrescentar um -ed ao final de verbos regulares para conjugá-los no passado, aplica essa regra ao verbo “go”, cuja forma no passado é “went”.
Fossilização: quando o sujeito conserva na sua interlíngua formas de pronúncia ou construção de frases que vêm da sua língua materna e que não consegue deixar de utilizar, independentemente da quantidade de instrução que receba.
O fato é que a imensa maioria daqueles que decidem estudar uma língua estrangeira falarão uma interlíngua. Esse fato, contudo, não deve ser motivo para decepção. Se você fala uma interlíngua, isso significa, antes de mais nada, que você é uma pessoa bilíngue (ou multilíngue). Significa que há um esforço, da sua parte, para entender e se fazer entender pelo outro. A meta de falar da mesma forma que um falante nativo, além de ser irreal, pode, por vezes, levar à frustração. Conservar o sotaque da sua língua materna deve ser motivo não de vergonha, mas de orgulho.
Referências MOZZILLO, Isabella. A interlíngua construída em ambiente autônomo de aprendizado de línguas estrangeiras. In: NICOLAIDES, Cristine et al. O desenvolvimento da autonomia no ambiente de aprendizagem de línguas estrangeiras. 2003. p. 247-273. SELINKER, Larry. Interlanguage. IRAL. Boston, MA, v. 10, n. 3, 1972, p. 209-231.
Autor: Leonardo Ribeiro, graduado em Licenciatura em Letras – Português e Inglês pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Atualmente, é aluno do mestrado em Aquisição, Variação e Ensino, com pesquisas em multilinguismo e translinguagem.
Em algumas situações, quando estamos lendo algum texto em uma língua estrangeira, reconhecemos palavras com certas semelhanças com outras línguas. As palavras “emoção”, em português, “Emotion”, em alemão, e “emotion”, em inglês, são alguns exemplos de palavras cognatas entre diferentes línguas.
Os cognatos são definidos como palavras de línguas diferentes que apresentam semelhanças por terem algum vínculo em relação à origem. O pesquisador alemão Ronald Möller (2011) descreve que essa relação é analisada com base no processo evolutivo das línguas, para que comparações possam ser realizadas.
Os pesquisadores Rena Helms-Park e Vedran Dronjić (2012) afirmam que a relação de significados entre as palavras pode ser direta, por terem a mesma origem, ou indireta, no caso dos empréstimos. Essas palavras semelhantes de línguas diferentes com sentidos diferentes são definidas como falsos cognatos. Por exemplo, Trikot em alemão se refere à camisa de time de futebol. Porém, quando lemos essa palavra ou ouvimos uma transmissão de futebol da TV alemã, possivelmente, o primeiro sentido em que pensamos é numa roupa de lã pesada.
Para fins de pesquisa, busca-se compreender a relação de palavras cognatas, para assim, desvendar os possíveis vínculos entre duas línguas na mente e suas transformações ao longo do tempo.
Referências MÖLLER, Robert. Wann sind Kognaten erkennbar? Ähnlichkeit und synchrone Transparenz von Kognatenbeziehungen in der germanischen Interkomprehension. Linguistik online, v. 46, n. 2, p. 79–101, 2011.http://dx.doi.org/10.13092/lo.46.373 HELMS-PARK, Rena; DRONJIC, Vedran. Cognates. In: The Encyclopedia of Applied Linguistics. Oxford, UK: Blackwell Publishing, 2012. p. 1–7. https://doi.org/10.1002/9781405198431.wbeal0143
Autor: Lisandro Miritz Völz. Graduando em Letras Português e Alemão pela Universidade Federal de Pelotas e integrante do Laboratório de Psicolinguística, Línguas Minoritárias e Multilinguismo.
Com certeza, você já se pegou fazendo comentários sobre como os atendentes de telemarketing usam a língua portuguesa ou como falam os seus vizinhos. Além disso, deve ter opiniões sobre os sotaques do feirante da banca das verduras e do vendedor ambulante, de quem você quer comprar a linda rede nordestina para colocar na varanda. Entretanto, você já parou para pensar por que faz, ou melhor, por que fazemos isso? Por que reagimos e “julgamos” a pronúncia, o sotaque, as formas como as pessoas falam?
Para a pesquisadora brasileira Raquel Freitag, isso se deve a nossa consciência sociolinguística, isto é, a um conjunto de crenças, sentimentos, conhecimento e experiências com a(s) língua(s), que levamos nas nossas memórias. Essa consciência nos faz reagir, avaliar, classificar e entender modos de falar diferentes dos usados por nós, toda vez que os ouvimos.
Algumas das reações que temos sobre a(s) língua(s) não são conscientes: escutamos um determinado sotaque e automaticamente projetamos nossos sentimentos em relação a ele. Outras reações são mais reflexivas, falamos sobre elas: quando como opinamos sobre a “a língua ideal para conseguir um bom emprego”; ou “o melhor português do Brasil”, por exemplo.
Entretanto, a pesquisadora da Universidade de Ohio, Anna Babel, assegura que essas percepções (sejam elas mais ou menos conscientes) sobre modos de falar, sotaques e pronúncias das pessoas estão fortemente ligados a forma como as classificamos, levando em consideração requisitos que não são linguísticos, tais como raça, classe social, escolarização ou mesmo o lugar onde vivem. Para a autora, projetamos nossos preconceitos sociais na língua. Assim sendo, qualquer julgamento que façamos sobre a existência de uma “língua certa” ou um jeito bonito de falar, com certeza não corresponde à realidade dos fatos.
Nesse sentido, a consciência sociolinguística dos falantes é como um tesouro linguístico que, quando decifrado, revela uma série de informações importantes para os linguistas: os modos que entendemos as línguas e as pessoas; quais conhecimentos, crenças e sentimentos as comunidades compartilham sobre os falares uns dos outros; os preconceitos que algumas línguas e dialetos sofrem. A consciência sociolinguística torna possível entender a diferença linguística e cultural não como um problema que precisa ser resolvido ou eliminado, mas como um direito e recurso que melhora nossas relações com as outras pessoas e com o lugar em que vivemos.
Referências FREITAG, Raquel M. K. O desenvolvimento da consciência sociolinguística e o sucesso no desempenho em leitura. ALFA: Revista de Linguística, São Paulo, v. 65, p. 1-27, 2021.
Vídeo
Como classificamos falantes duma língua? TED Ideas Worth spreading, 2020, 10min47s. Disponível em: www.ted.com/anna_babel. Acesso em: 23 de agosto de 2022, 14h44min.
Autora: Andréa Ualt Licenciada em Letras – Espanhol e Literaturas de Língua Espanhola, mestre em Educação e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPel. Professora de Espanhol do IFSul-Campus CaVG.
Tudo começou em 1994, quando o pesquisador Cen Williams criou o termo trawsieithu para denominar um modelo de educação bilíngue, comum no País de Gales desde os anos 1980. O objetivo desse estilo de aula era expor os alunos a material em língua inglesa – livros, vídeos, imagens – e estimulá-los a produzir algo – um texto, uma apresentação oral, uma discussão – em língua galesa. Isso quer dizer que a trawsieithu reunia a língua materna dos alunos e a língua que eles estavam aprendendo em uma mesma lição. A grande finalidade desse método era desenvolver o bilinguismo dos alunos, que é a habilidade de gerenciar duas ou mais línguas, segundo as pesquisadoras Isabella Mozzillo e Karen Spinassé (2021).
Com o passar do tempo, o termo trawsieithu foi traduzido para o inglês como translanguaging (em português: translinguagem). Além disso, o termo, além de ganhar um novo nome, ganhou também um novo significado. A professora Ofelia García (2017) se tornou um nome importante neste assunto ao chamar de translinguagem os usos da linguagem que falantes bilíngues empregam no dia-a-dia e de que formas utilizam as suas línguas para se comunicarem em diferentes situações. Segundo a autora, bilíngues não possuem duas línguas separadas dentro do cérebro. Não! O que eles realmente possuem é um único repertório linguístico, composto por elementos – sons, palavras, expressões etc. – de todas as línguas que conhecem. Dependendo da situação na qual se encontram, essas pessoas utilizarão somente elementos da língua X (pois podem estar conversando com alguém que fale somente essa língua); e haverá situações em que essas pessoas poderão utilizar elementos tanto da língua X quanto da língua Y, caso estejam frente a frente com outro bilíngue que conheça as mesmas línguas que elas.
A professora García, em parceria com a pesquisadora Sara Vogel (2017), explica que o prefixo trans (da palavra “translinguagem”) serve também para designar determinados usos da linguagem que não podem ser classificados nem como uma língua nem outra. São nesses casos que os indivíduos “translinguam” – isto é, empregam formas linguísticas que reúnem elementos de mais de uma língua (trollar, crushzinho etc).
Isso ocorre porque, de acordo com a pesquisadora Tatyana Kleyn (2019), termos como “inglês”, “chinês” e “espanhol” servem para estabelecer uma diferença entre povos e nações, mas não possuem nenhuma função a nível mental. Isso significa que o único lugar onde as línguas estão separadas é nos mapas mundiais. Dentro do cérebro, as línguas estão reunidas e entrelaçadas, e é justamente por isso que usos translíngues da linguagem são tão comuns entre sujeitos que falam duas ou mais línguas.
Referências LEWIS, Gwyn; JONES, Bryn; BAKER, Colin. Translanguaging: Origins and development from school to street and beyond. Educational Research and Evaluation: An International Journal on Theory and Practice, v. 18, n. 7, p. 641–654, 2012.
KLEYN, Tatyana; GARCÍA, Ofelia. Translanguaging as an Act of Transformation: Restructuring Teaching and Learning for Emergent Bilingual Studentes. In: OLIVEIRA, Luciana. (org.) The Handbook of TESOL in K-12. John Wiley & Sons Ltd., 2019. p. 69-82.
MOZZILLO, Isabella; PUPP SPINASSÉ, Karen. Políticas linguísticas familiares em contexto de línguas minoritárias. Linguagem & Ensino, Pelotas, v. 23, n. 4, p. 1297-1316, 2020.
VOGEL, Sara; GARCIA, Ofelia. Translanguaging. Oxford Research Encyclopedia of Education, USA, p. 1-19, 2017.
Autor: Leonardo Ribeiro, graduado em Licenciatura em Letras – Português e Inglês pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Atualmente, é aluno do mestrado em Aquisição, Variação e Ensino, com pesquisas em multilinguismo e translinguagem.
Responda rapidamente: você se considera uma pessoa bilíngue? Se você respondeu que não, eu pergunto: além do português, você usa outra língua para realizar alguma atividade específica em sua vida? Se a resposta for sim, saiba que você pode se considerar bilíngue! Ainda em dúvida? Talvez este texto possa ajudar, da mesma forma que este vídeo.
Segundo as pesquisadoras Antonieta Megale e Andrea Ualt, a definição de bilinguismo supostamente é bastante óbvia: saber duas línguas. Porém, muitos de nós atribuem o bilinguismo àquelas pessoas que aprenderam dois ou mais idiomas ao mesmo tempo ainda na infância. Além disso, é comum a percepção de que pessoas bilíngues têm exatamente o mesmo nível de conhecimento de ambas as línguas. Talvez por isso você tenha respondido que não se considera bilíngue.
De fato, os exemplos acima se referem a pessoas bilíngues. No entanto, as pesquisas na área da Linguística e áreas afins têm demonstrado que o conceito de bilinguismo é mais abrangente do que se imagina. É o que podemos ver na pesquisa de Isabella Mozzillo e Karen Spinassé (2021), que definem que o indivíduo bilíngue “consegue gerenciar (falar e/ou entender) duas ou mais línguas, utilizando cada uma para os respectivos contextos e propósitos necessários, com a propriedade necessária”.
Assim, por exemplo, se você é brasileiro e está aprendendo sua primeira língua estrangeira depois de adulto e já compreende os textos que lê, as músicas que escuta e, para a “felicidade” de seus vizinhos, já consegue cantá-las no chuveiro, você pode se considerar bilíngue. Se você, por outro lado, tem avós falantes nativos de alemão, não consegue falar com eles nesse idioma, mas compreende quando eles falam com você, você é bilíngue. Se fala pomerano em casa e português no trabalho, é bilíngue também. Se lê artigos em inglês para uma disciplina da faculdade, você é bilíngue. Troca mensagens em espanhol com um amigo da Argentina? Bilíngue!
Segundo o linguista François Grosjean, pessoas bilíngues adquirem e usam línguas com diferentes objetivos e pessoas, em situações de vida bastante variadas, o que significa que é perfeitamente normal que seu nível de fluência em cada idioma não seja idêntico. Logo, é possível e aceitável que uma pessoa bilíngue leia e escreva exclusivamente em uma das línguas, tenha um desempenho oral melhor naquela que utiliza com mais frequência, ou então que consiga compreender bem o que as pessoas falam e escrevem em uma das línguas, mas não se expressar oralmente tão bem. Um aspecto importante a se considerar em relação a esses diferentes usos apontados por Grosjean é a questão do vínculo afetivo com os idiomas. No artigo Como você sabe que é bilíngue?, publicado no jornal El País, Virgínia Mendoza menciona alguns linguistas que afirmam que a diferença de carga emocional dos contextos onde são adquiridos os idiomas por um indivíduo bilíngue faz com que seja natural, por exemplo, que ele recorra à língua adquirida em contextos familiares para expressar sentimentos.
Em síntese, ao contrário do que muitos pensam, o bilinguismo não é um fenômeno de simetria entre línguas. Então, agora que você leu este texto, eu volto a perguntar: você se considera uma pessoa bilíngue?
Autora: Carolina Fernandes Alves. Licenciada em Letras Português-Espanhol (UFRGS), Mestra em Estudos da Linguagem (UFRGS) e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPEL. Professora do Departamento de Metodologia do Ensino da UFSM. Instagram: @profe_carolina.alves.
Cresci escutando minha avó e mãe conversarem ora em pomerano, ora em português. Como sou professora de inglês, passei a prestar atenção a alguns dos enunciados que elas produziam: “Ich will Luísa telefonieren”, “Não come a sopa porque está heiß!“. Esses momentos de trocas entre as línguas me faziam questionar sobre o porquê de alterná-las e se elas – minha mãe e minha avó – realmente sabiam falar pomerano.
Você já deve ter assistido às séries norte-americanas Jane the virgin e Cobra Kai. Apesar de abordarem temáticas diferenciadas, ambas apresentam dois pontos em comum: o primeiro deles, o fato de que as famílias das personagens principais utilizam tanto o espanhol quanto o inglês em ambiente familiar e, o segundo, que as famílias são compostas por avós que emigraram da América do Sul para os EUA em busca de uma vida melhor. No entanto, não são todos os membros das duas famílias que utilizam a língua espanhola e, certamente, há uma ou mais razões para que isso ocorra.
Nesses seriados, facilmente observamos as avós (abuelas) se dirigirem às filhas e aos netos utilizando somente a língua espanhola no contexto familiar. As filhas e os netos utilizam, majoritariamente, a língua inglesa e, em alguns momentos, a língua espanhola. Essas escolhas de uso das línguas se devem a alguns fatores, sendo um deles a questão da crença e das práticas em relação a uma língua. As abuelas deixaram seus países e histórias para construírem algo novo na terra das oportunidades. Os pesquisadores King e Fogle (2006) investigaram como eram tomadas as decisões sobre o uso das línguas com crianças nos EUA. Nesse estudo, as mães aparecem como os membros da família que tendem a tomar a responsabilidade pela transmissão da língua que carregam como herança ou pela aprendizagem de uma nova língua.
A essa altura, você deve estar se perguntando: ok, e onde entra a parte das conversas em espanhol e inglês dentro de casa? Essa pergunta pode ser mais bem respondida através de exemplos.
Quarta temporada, episódio quinze (JV)
Jane: Right, that’s it, no more putting it off, we’re getting a new TV. I’ve narrowed it down to three choices based on price, size and picture quality.
Alba: que bién, toma estogrilled cheese, que necesitas comer.
Jane. Ok, I will. But look this is my top choice and I’ve found a discount coupon in a paper for 25%off… oh my God and it expires today! […]
Primeira temporada, episódio 4 Carmen: No, no more karate.
Rosa: Carmen, ¿cuál es el problema aqui? Miggy ha encontrado algo que le gusta hacer.
Carmen: Mira como Miguel está.
Rosa: Yo lo veo. Necesitas mas practica, ¿no es verdad? Arriba com las manos… Carmen: Mama, este hombre es una mala influencia. Miguel: He’s not. You don’t know him.
As conversas acima ocorreram ao redor de uma mesa na sala de janta de duas famílias. É possível notar que os falantes envolvidos fazem escolhas quanto a que língua utilizar. Essa troca entre espanhol e inglês acontece porque todos os envolvidos na conversa são detentores do mesmo par de línguas e possuem motivações acerca do uso de cada uma delas. Além disso, o espaço familiar permite uma maior liberdade para falar espanhol, mesmo residindo nos Estados Unidos. Esse é o espaço do coração, da língua de casa e das memórias. A abuela Alma, ao servir um lanche a sua neta Jane, conversa em espanhol, como de costume, mas muda para o inglês ao se referir a um alimento que passou a fazer parte de seu cotidiano por meio da língua e da cultura dos EUA, o grilled cheese.
Assim, é de grande importância estudar as experiências de mães imigrantes em relação à transmissão de línguas e dar visibilidade ao papel das mulheres no planejamento sobre o que fazer com as línguas. Quando você ouvir a troca de línguas dentro da sua casa ou em um seriado, lembre-se que esse fenômeno é natural, esperado e explicita escolhas linguísticas e culturais.
Referências
ARRIAGADA, Paula. Family Context and Spanish-Language Use: a study of Latino Children in the United States. Social Science Quaterly, n. 3, p. 599 – 619, 2005.
KING, Kendal; FOGLE, Lyn. Bilingual parenting as good parenting: Parents‘ perspectives on family language policy for additive bilingualism. International Journal of Bilingual Education and Bilingualism, v. 9, p. 695-712, 2006.
MOZZILLO, Isabella. A conversação bilíngüe dentro e fora da sala de aula de língua estrangeira. In: HAMMES, W.; VETROMILLE-CASTRO, R. (Org.) Transformando a sala de aula, transformando o mundo: ensino e pesquisa em língua estrangeira. Pelotas: Educat, 2001. p. 287-324.
SPOLSKY, Bernard. Para uma Teoria de Políticas Linguísticas. ReVEL, vol. 14, n. 26, p. 32-44, 2016.
Seriados
Jane the Virgin. Direção: Jennie Urman. Produção: Paul Sciarrotta, Meredith Averill, Corine Brinkerhoff, David Rosenthal, Josh Reims, Gina Lamra e Mark Grossan. Califórnia: Produtora: CBS Televison e Warner Bros. Television, 2014.
Cobra Kai. Direção: Jen Celotta. Produção: Ralph Macchjo, William Zabka, Will Smith, James Lassiter, Caleeb Pinkett, Susan Ekins, Josh Heald, Jon Hurwitz, Hayden Schlossberg. Califórnia: Hurwitz e Schlossberg Productions, Overbrook Entertainment, Heald Productions e Sony Pictures Television, 2018.
Autora: Lydia Tessmann Mülling da Motta. Mestre em Linguística Aplicada pela Universidade Católica de Pelotas.
A sociedade brasileira é formada por mais de 200 milhões de pessoas, e, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE, 2010), 5% dessa população tem algum grau de deficiência auditiva. Desse grupo, 2 milhões de pessoas possuem um nível severo de perda auditiva e 15% deles já nasceram com essa condição. Portanto, em comparação com o número de pessoas ouvintes, a população surda é um grupo minoritário, e resulta em uma comunidade linguística também minoritária, caracterizada pelo uso da Língua Brasileira de Sinais (Libras).
Tudo bem, mas o que é a ‘língua de sinais’? Bem, a língua de sinais consiste em uma língua natural, visual-gestual, com gramática própria, usada pelos surdos para se comunicarem. Aqui no Brasil, ela coexiste com a língua portuguesa, logo, serve como base para a comunidade surda adquirir a modalidade escrita da língua majoritária. Além disso, por estarem em contato, elas propiciam um contexto bilíngue, como se verá a seguir.
Entre as diferentes concepções de bilinguismo, considera-se uma pessoa bilíngue quem se identifique ou seja identificado como adepta de duas línguas, ou seja, quem convive paralelamente com duas formas de comunicação e equilibra os seus usos de acordo com a necessidade da situação. Além disso, nesse espaço de interação, o surdo se relaciona também com duas culturas: a surda e a ouvinte. “Humm, mas como assim?” Um exemplo é quando o aluno surdo tem pais e amigos também surdos e, ao ingressar na escola, ele encontra professores, funcionários e/ou outros colegas ouvintes. Por isso, além de bilíngues, eles também são biculturais.
Ademais, será que há uma lei específica visando à educação desse grupo? Sim, a comunidade surda tem garantido por lei o acesso ao aprendizado do português. O decreto n° 5.626 (BRASIL, 2005) prevê a obrigatoriedade das instituições federais em ofertar o ensino de Libras e de língua portuguesa para alunos surdos desde a educação infantil, sendo a língua de sinais a primeira língua do aluno, e o português a sua segunda língua. A inclusão ainda deve ocorrer por meio da organização de escolas e classes de educação bilíngue com a presença não apenas de professores aptos para tal espaço, mas também de tradutores e intérpretes.
Embora esse ensino seja assegurado por lei, a proposta nem sempre é colocada em prática na realidade de muitas escolas, pois existem inúmeras barreiras impedindo esse processo. Portanto, só será possível oferecer aos surdos um ensino bilíngue de qualidade quando algumas questões – como a formação de professores capacitados para ensinarem português como língua adicional; mudanças na forma de avaliação; e a produção de material didático voltado para as especificidades do aluno surdo – forem estudadas, planejadas e desenvolvidas com mais afinco e atenção.
Referências
BRASIL. Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005. Regulamenta a Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais – Libras, e o art. 18 da Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Diário Oficial da União, Brasília, 23 dez. 2005. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/decreto/d5626.htm. Acesso em: 20 nov. 2020.
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico 2010: Características gerais da população, religião e pessoas com deficiência. Rio de Janeiro: IBGE, 2010. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/94/cd_2010_religiao_deficiencia.pdf. Acesso em: 20 nov. 2020.
Autora: Aline Mackedanz dos Santos – Acadêmica do curso de Letras – Português e Inglês – pela Universidade Federal de Pelotas.
De atrasos aflitivos à grande inteligência: afinal, o que se pode afirmar sobre ser uma criança bilíngue?
Falar mais de um idioma em casa causará atrasos no desenvolvimento do meu filho? Devo perguntar ao meu filho se ele quer falar a minha língua? Será que dominar mais de uma língua sempre é sinal de muito esforço, dedicação ou ainda superdotação? Vamos ver alguns mitos que inquietam famílias e até profissionais da educação.
1. A criança que fala duas línguas demora mais a falar e fala pior que as outras
Essa ideia de “atraso” da criança bilíngue está ligada ao fato de que ela precisa processar uma quantidade maior de informações do que aquela que só tem contato com uma língua. Entretanto, não costuma durar mais do que alguns meses, já que as crianças são capazes, desde bem pequenas, de reconhecer e separar os ambientes e as pessoas com quem usar uma ou outra língua.
2. Deve-se sempre consultar os filhos sobre se querem ou não aprender a língua da gente
Os pais que creem nessa perspectiva, em geral, são os que falam uma língua diferente do que a maioria das pessoas em determinado local. Porém, nem em contextos onde só há uma língua, essa “consulta” sugerida seria plausível; é usar e ponto! Cabe apenas aos pais a decisão de usar a língua da família, como o pomerano, o japonês, o kaingang, com os filhos, dando-lhes a possibilidade de manter as tradições ligadas a esses idiomas.
3. Falar mais de uma língua desde a infância é sinal de ser inteligente
Adquirir duas ou mais línguas quando se é criança não requer nenhum esforço adicional. Basta a família usar regularmente um dos idiomas e exigir que os pequenos respondam nele, como uma ordem qualquer. “Tira o dedo da tomada! Desce do sofá! Fala (inserir aqui a língua) comigo!”. E, claro, lembrar que a língua faz parte de quem somos, pois é a partir dela que construímos nossos afetos e interagimos socialmente. Então, quando os pais decidem qual língua falar com a criança, não se recomenda trocar mais tarde.
Texto de referência:
MOZZILLO, I. Algumas considerações sobre o bilinguismo infantil. Veredas on-line, v. 19, n. 1, p. 147-157, 2015.
Autor: Vinicius Borges de Almeida
Graduado em Letras – Português e Francês pela Universidade Federal de Pelotas (2018). Atualmente, é mestrando em Letras pela mesma instituição e integrante do Grupo de Pesquisa Línguas em Contato. Atua como professor de francês em curso livre há dois anos.
Bilinguismo. O termo ainda não é muito popular no Brasil. No entanto, circula cada vez mais forte e frequente em discussões importantes sobre a educação bilíngue de surdos e de indígenas, além de estar na base das iniciativas que buscam revitalizar as línguas herdadas dos imigrantes, como o pomerano e o talian. De acordo com o francês François Grosjean, professor emérito da Universidade de Neuchâtel, metade da população mundial é bilíngue.
Afinal, o que significa bilinguismo? A definição é polêmica. Os dicionários, como o Michaelis, o definem como a qualidade “daquele que fala dois idiomas”. As pessoas comuns também. Porém, não só elas. No início do século passado, pesquisadores definiram bilíngues como indivíduos com domínio perfeito em dois ou mais idiomas. No entanto, as pesquisas mais recentes são unânimes em afirmar: bilinguismo não é exatamente isso.
Bilíngues, ser ou não ser, eis a questão
O que podem ter em comum:
a) a criança que têm pais que falam duas línguas em casa e as aprendeu simultaneamente antes dos três anos de idade?
b) o adolescente brasileiro que participa de jogos virtuais em uma comunidade em que o inglês é a língua de comunicação?
c) o estudante que lê e escreve em espanhol, mas só fala frases básicas?
d) a criança que entende Kaingang, ou pomerano, usado pelos avós, mas não o fala?
Segundo a definição de bilinguismo de François Grosjean, todas as pessoas dos exemplos acima podem ser consideradas bilíngues. De que maneira? O pesquisador baseia seu conceito de bilinguismo na ideia de uso das línguas. Dessa forma, para o linguista, bilíngues são pessoas que usam as duas línguas que adquiriram/aprenderam em situações do seu dia a dia, alternando-as conforme suas necessidades e finalidades específicas: para conversar com os pais na língua materna deles; ler um artigo; participar de um jogo virtual; escutar uma história dos avós que falam uma língua minoritária, por exemplo. Portanto, bilíngues se valem, em menor ou maior grau, do conhecimento linguístico que possuem e das habilidades comunicativas que dominam (ler, ouvir, falar e escrever) nas duas ou mais línguas que fazem parte da sua vida, tanto para interagir com o outro quanto para experimentar o mundo que os cercam.
Referências
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Autora: Andréa Ualt Fonseca Licenciada em Letras – Espanhol e Literaturas de Língua Espanhola, mestre em Educação e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPel. Professora de Espanhol do IFSul-Campus CaVG.