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Por que alemão?

Num sábado de 2025, eu estava na praça com minha família. Meu filho, de um ano e meio na época, brincava com um menino da mesma idade, enquanto nós, os adultos, conversávamos sobre parentalidade. De repente, surgiu uma pergunta sobre a língua que eu falava com ele. A tia do menino, ao saber que eu estava falando alemão, perguntou: “Mas por quê?”

Fonte: ChatGPT

Naquele momento, não consegui dar uma resposta completa. A mãe do menino se antecipou e respondeu: “Eles são professores de alemão.” E eu apenas complementei: “É, ele já é bilíngue.” Poderia ter explicado com mais detalhes, mas preferi deixar o assunto seguir. Depois, fiquei pensando nos dois aspectos por trás daquela pergunta: o bilinguismo e a língua alemã.

A pergunta dela foi um pouco vaga, então, não se sabe exatamente se ela estava se referindo à língua alemã em si ou ao bilinguismo. Isso me instigou a escrever um pouco sobre os dois aspectos. 

O alemão é uma língua diversa, falada tanto em comunidades minoritárias em diversos países, inclusive no Brasil, quanto como língua oficial em cinco países: Alemanha, Áustria, Suíça, Liechtenstein e Luxemburgo. Estima-se que cerca de 100 milhões de pessoas falem alemão como língua materna. O Instituto Goethe estima que 15,5 milhões de pessoas aprendam alemão em mais de 99 países.

No Brasil, a língua alemã está mais próxima do que imaginamos: é ensinada em escolas, cursos livres e universidades, como apresenta o site Falemão. Além disso, a língua aparece por meio de marcas (por exemplo, Schmidt, Schneider, Gerdau, Volkswagen, Knorr, Bosch). A língua também está presente no português em palavras como, por exemplo, kombi, blitz, Wanderlust e Alzheimer. Além disso, alemão e inglês compartilham inúmeras semelhanças entre si (por exemplo, Wind – wind, Freund – friend, gut – good, trinken – drink) e com o português (por exemplo, Information, telefonieren, interessant, Computer). Como afirma a pesquisadora Jasone Cenoz (2013), saber uma língua aparentada pode facilitar a aprendizagem da outra. Então, uma criança que sabe alemão pode utilizá-lo como ponte para a aprendizagem de inglês, por exemplo. 

A aprendizagem de alemão pode abrir portas profissionais e acadêmicas. Há multinacionais, como T-Systems e SAP, que priorizam a língua para admissão. Em cidades brasileiras fundadas por alemães ou seus descendentes, o recrutamento de trabalhadores para o comércio privilegia, em algumas lojas, pessoas que falam alemão. O conhecimento da língua também pode ser útil para conseguir uma bolsa para estudar na Alemanha, Áustria ou Suíça. O DAAD (Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico) e a Fundação Alexander von Humboldt, por exemplo, mantêm programas de intercâmbio e pesquisa na Alemanha — programas dos quais já participei. Outra possibilidade é trabalhar nesses países. Muitas pessoas “se viram” lá com a língua que receberam de herança da família.

Quando uma criança aprende alemão (ou qualquer outra língua) em casa, como língua de herança, ela se beneficia de algo que muitos pais pagam caro para proporcionar: o bilinguismo precoce. E isso não tem a ver com ensinar a língua como se fosse um professor, mas de transmiti-la em práticas cotidianas como algo natural. Mais do que uma língua, a criança herda uma cultura, valores, tradições, narrativas e uma maneira afetiva de se comunicar com as gerações anteriores e, com isso, fortalece seu senso de pertencimento familiar. A linguista belga Annick de Houwer (2009) defende que o contato precoce e contínuo com duas línguas dentro da família amplia as oportunidades de interação e favorece o desenvolvimento de repertórios comunicativos e culturais diversificados. 

Transmitir uma língua minoritária é também um ato de resistência, que contraria a pressão pela assimilação ao português e pelo monolinguismo no Brasil. Essa pressão é um dos fatores que diminui o número de falantes da língua e fomenta o preconceito. Ensinar e valorizar a transmissão de línguas de herança é uma forma de preservar um patrimônio imaterial e promover diversidade. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) reconhece, entre outras línguas, o hunsriqueano e o pomerano como parte do patrimônio cultural imaterial do Brasil.

A outra forma de interpretar a pergunta da tia do menino tem relação com o bilinguismo precoce e simultâneo. Como explicam os pesquisadores Krista Byers-Heinlein e Casey Lew-Williams, em publicação de 2013, de modo geral, crianças nascem prontas para aprender a língua ou as línguas do seu ambiente sem confusão ou atraso. Ensinar duas línguas em casa desde cedo para a criança é um presente que os pais podem dar, em vários sentidos – tanto faz qual língua. Apesar de não ser isenta de desafios, é uma tarefa tão gostosa que se torna gratificante e divertida. 

O bilinguismo infantil pode trazer inúmeros benefícios: 

  • estimula habilidades cognitivas, como discutido pelos autores Krista Byers-Heinlein e Casey Lew-Williams em uma publicação de 2013;
  • desenvolve a consciência linguística, conforme demonstrado no livro de Ellen Bialystok, publicado em 2001; 
  • facilita a aprendizagem de outras línguas, como mostrado por Jasone Cenoz (2013);
  • pode aprimorar a compreensão sobre os estados mentais dos outros, segundo a revisão de Chi-Lin Yu, Ioulia Kovelman e Henry Wellman, publicada em 2021;
  • funciona como uma ponte entre gerações, além de valorizar a identidade cultural e expandir as possibilidades de comunicação, como destaca Annick de Houwer (2021);
  • pode favorecer o desenvolvimento da capacidade de compreender diferentes pontos de vista, algo essencial para uma boa comunicação, como sugerido por um estudo conduzido por Samantha Fan e colegas (2015);
  • abre duas (ou mais) janelas para o mundo, como defendem Krista Byers-Heinlein e Casey Lew-Williams (2013).

O entusiasmo diante dos possíveis benefícios é compreensível, mas é bom lembrar que essas hipóteses ainda não foram suficientemente testadas em países do Sul Global, como o Brasil. Porém, se elas não se aplicarem a algum contexto, é importante salientar que o bilinguismo não faz mal e tem o peso afetivo como valor. São inúmeros os fatores que podem influenciar o bilinguismo, e as populações são muito diferentes entre si.

Por tudo isso, tanto o uso de línguas de herança quanto o bilinguismo merecem respeito como uma forma natural de uso das línguas. Não apenas o bilinguismo de elite (português-inglês), de escola bilíngue, tem valor social. As escolhas linguísticas são um direito das famílias e refletem laços de identidade, afeto e pertencimento. Afinal, uma língua é muito mais do que um meio de comunicação: é uma forma de estar no mundo.

As escolhas linguísticas devem ser interpretadas sem julgamento como um direito da família. Se alguma família quisesse inventar uma língua e falar com a criança, isso não deveria ser interpretado como algo estranho. Uma língua é muito mais do que um instrumento, representa a pessoa. Duas línguas, também.

Referências
BIALYSTOK, Ellen. Bilingualism in Development: Language, Literacy, and Cognition. Cambridge University Press, 2001.
BYERS-HEINLEIN, Krista; LEW-WILLIAMS, Casey. Bilingualism in the Early Years: What the Science Says. Learning Landscapes, v. 7, n. 1, p. 95–112, 2013.
CENOZ, Jasone. The influence of bilingualism on third language acquisition: Focus on multilingualism. Language Teaching, v. 46, n. 1, p. 71–86, 2013.
DE HOUWER, Annick. An Introduction to Bilingual Development. Bristol: Multilingual Matters, 2009.
DE HOUWER, Annick. Bilingual Development in Childhood. Cambridge University Press, 2021.
FAN, Samantha et al. The Exposure Advantage: Early Exposure to a Multilingual Environment Promotes Effective Communication. Psychological Science, v. 26, n. 7, p. 1090-1097, 2015.
YU, Chi-Lin; KOVELMAN, Ioulia; WELLMANN, Henry M. How Bilingualism Informs Theory of Mind Development. Child Dev Perspect, v. 15, n. 3, p. 154-159, 2021.

Agradeço à colega Isabella Mozzillo, pela leitura atenta e crítica deste texto.

Autor: Bernardo Kolling Limberger. Pai do Davi. Professor de Pós-Graduação na Universidade Federal de Pelotas e de Graduação na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre. Coordenador do Laboratório de Psicolinguística, Línguas Minoritárias e Multilinguismo – Laplimm.

Poliglota, multilíngue, plurilíngue: qual termo devo usar?

Você conhece algum poliglota? O termo “poliglota” é frequentemente usado no cotidiano por pessoas leigas em Linguística. Podemos remontar a origem da palavra “poliglota” a duas palavras do grego: polu- (πολύ) e glotta (γλώσσα), que significam “muitas línguas”. O Dicionário de Aprendizes de Oxford para o Inglês define “poliglota” como “saber, usar e escrever em mais de uma língua”. Todavia, há debate sobre o número de línguas que um poliglota deve dominar com proficiência plena: quatro, cinco ou mais línguas? A mesma fonte ainda sugere “multilíngue” como sinônimo. 

Mas você sabia que esse conceito já foi superado pela Linguística? Atualmente, esse termo é considerado obsoleto, visto que passou a representar um falante idealizado de línguas estrangeiras altamente proficiente em todas ou na maioria das línguas que domina. Esse perfil corresponde a um número muito limitado de pessoas.

Fonte: Canva

Em contraposição, como explica o professor Bernardo Limberger (2018), o termo multilinguismo vem sendo utilizado na Psicolinguística e na área de Aquisição de Terceira Língua para designar o uso de três ou mais línguas. O falante multilíngue pode apresentar comportamentos linguísticos ainda mais complexos que aqueles observados em contextos de bilinguismo, caracterizado pelo uso de duas línguas. As pesquisadoras Britta Hufeisen e Ulrike Jessner (2019) mencionam que o multilinguismo é um fenômeno social e individual complexo, que envolve processos de aquisição, manutenção, atrito (perda gradual de habilidades linguísticas) e perda de línguas. 

Todavia, de acordo com o professor Cléo Altenhofen (2013), em estudos de caráter mais social, o multilinguismo é abordado de forma distinta, sendo usado em referência à diversidade linguística presente nas sociedades. Nessa mesma conjuntura, ele define outro conceito: o de plurilinguismo, entendido como uma habilidade individual que engloba a pluralidade linguística e cultural e que emerge no multilinguismo. Para os pesquisadores Tej Bhatia e William Ritchie (2013), o conceito de plurilinguismo pode ser também utilizado com termo abrangente com referência ao indivíduo que usa várias línguas. 

Portanto, é importante definir de qual perspectiva você parte — se da Sociolinguística ou da Psicolinguística/Aquisição de Terceira Língua. É fundamental destacar que, independentemente disso, as pessoas que usam várias línguas no seu cotidiano não são poliglotas, mas sim multilíngues ou plurilíngues. Esses conceitos englobam uma diversidade de características pessoais e coletivas relacionadas à aprendizagem e à aquisição de línguas. Ao caracterizarmos o falante dessa forma, não se idealiza a sua proficiência, não se questionam habilidades linguísticas nem se isolam questões sociais, psicológicas e linguísticas que influenciam o uso das línguas. 

Referências
ALTENHOFEN, C. V. Migrações e contatos linguísticos na perspectiva da geolinguística pluridimensional e contatual. Revista Norte@mentos, v. 6, n. 12, p. 31-52, 2013.
BHATIA, Tej K.; RITCHIE, William C. The Handbook of Bilingualism and Multilingualism. 2. ed. Chichester, UK: Blackwell Publishing, John Wiley & Sons, 2013. p. 1-22.
HANSEN, A. What Is the Difference Between a Polyglot and a Multilingual Person? Spanish Academy, 2020.
HUFEISEN, B; JESSNER, U. Lecture 3: The psycholinguistics of Multiple Language Learning and Teaching. In: Singleton, D. M. Aronin, L. Twelve Lectures on Multilingualism. Bristol: Multilingual Matters, 2019. p. 65-100.
LIMBERGER, B.  K. Processamento da leitura multilíngue e suas bases neurais: um estudo sobre o hunsriqueano. 2018. Tese de doutorado em Linguística, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2018. 

Autora: Giovana Canez Valerão, graduada em Letras – Português e Espanhol pela Universidade Federal de Pelotas, mestranda em Letras no Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL) da mesma universidade, é responsável pela página @hallyucoreanoemultilinguismo no Instagram.

 

 

Libras e português: algumas provas de que essa relação pode dar certo!

Muitas pessoas ainda se questionam se o aprendizado da Libras (Língua Brasileira de Sinais) poderia prejudicar, de alguma forma, o desenvolvimento das habilidades de leitura e escrita em língua portuguesa pelas pessoas surdas. Em 2014, um grupo de estudiosos da área da educação de surdos publicou um documento que deve servir de base para a construção de uma série de orientações para o ensino de pessoas surdas. Já em muitas escolas se está tentando trabalhar nessa linha de pensamento: Libras como a língua em que o aluno irá interagir durante as aulas e português como a língua da leitura e da escrita, pois é a língua oficial do Brasil. Veja algumas das instituições gaúchas, por exemplo, a Escola Bilíngue Professor Alfredo Dub, em Pelotas, e a Escola Bilíngue Profª Carmen Regina Teixeira Baldino, em Rio Grande.

Além disso, a professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Carina Cruz, fez uma pesquisa sobre a possibilidade da consciência fonológica em línguas de sinais ser uma grande aliada na leitura em uma língua oral escrita. A fonologia é uma área da linguística que estuda as pequenas partes de uma palavra ou de um sinal que tem significado. Na pesquisa publicada pela professora, temos estudos feitos em outros países e no Brasil que mostram que os surdos, mesmo crianças, já conhecem essas pequenas partes e as usam para relacionar ou construir novos significados. Isso poderia auxiliar na sua reflexão sobre a escrita da língua oral na qual escrevem e leem.

A pesquisa de Carina Cruz mostra estudos feitos na Suíça e nos Estados Unidos. A maioria comprovou que aqueles surdos que tiveram contato com a língua de sinais de seu país na tenra idade são os mesmos que conseguiram perceber a sua fonologia e que têm maior habilidade na leitura da língua oral escrita. Um outro estudo dos EUA mostrou que alguns professores de surdos já estão usando essa relação como estratégia de ensino da leitura e escrita do inglês. No Brasil, a professora destacou trabalhos que trazem essa consciência fonológica em surdos que começaram a aprender a Libras antes dos quatro anos. Seguindo o que aconteceu nos outros países, eles poderiam ter maior facilidade no desenvolvimento das habilidades de leitura e escrita da língua portuguesa, graças ao seu conhecimento da Libras! Libras e português, uma relação que dá certo!

Referências
CRUZ, Carina Rebello. Consciência fonológica da língua de sinais: implicações na linguagem e na leitura. ReVEL, edição especial, n. 15, p. 63-82, 2018. 
MEC/SECADI. Relatório do Grupo de Trabalho, designado pelas Portarias no 1.060/2013 e no 91/2013, contendo subsídios para a Política Linguística de Educação Bilíngue – Língua Brasileira de Sinais e Língua Portuguesa, 2014

Autora: Joseane Maciel Viana, graduada em Licenciatura em Letras – Português e Inglês, com Mestrado em Letras, pela Universidade Federal de Pelotas. Atualmente, é aluna do Doutorado em Aquisição, Variação e Ensino, na mesma universidade.

O bilinguismo é um antídoto contra o Alzheimer?

Recentemente, tem se disseminado a crença de que o bilinguismo seria uma forma de prevenir o Alzheimer. No entanto, essa afirmação está baseada em um mito. Para começar a questioná-lo, é importante ressaltar que tanto pessoas que falam uma língua quanto pessoas que usam duas línguas podem sofrer de Alzheimer, embora de maneiras diferentes.

O Alzheimer é uma doença que afeta as células cerebrais e provoca uma perda progressiva da memória. Esse declínio afeta a comunicação, o comportamento e a capacidade de raciocínio dos pacientes.

Fonte: https://www.freepik.com/premium-vector/alzheimer-illness-disease-patients-concept_16504648.htm

No caso dos bilíngues, além desses sintomas, observam-se outros. Para ilustrar, imaginemos um paciente que fala português e inglês e vive no Brasil. Ao falar, ele poderia misturar, de maneira não intencional, as duas línguas, usando palavras ou frases em inglês enquanto fala português. Além disso, ele poderia se dirigir aos seus familiares brasileiros em inglês, acreditando que está falando português. Como podemos ver, a comunicação com pacientes bilíngues traz desafios específicos.

Então, se qualquer pessoa pode desenvolver Alzheimer, existe alguma vantagem em falar várias línguas, como sugere o mito? Sim, pode ser que seja o tempo. Segundo os pesquisadores McLoddy Kadyamusuma, Eve Higby e Loraine Obler, há uma tendência na pesquisa que mostra que os bilíngues são diagnosticados com Alzheimer de 4 a 5 anos mais tarde do que os monolíngues, e os sintomas tendem a demorar mais a aparecer.

Esses benefícios do bilinguismo são resultado do que se conhece como “reserva cognitiva“, mudanças na constituição do cérebro que o tornam mais capaz de resistir a danos ou doenças. Aprender mais de uma língua pode contribuir para o desenvolvimento dessa reserva cognitiva. No entanto, é importante ter em mente que os bilíngues que obtêm maiores benefícios cognitivos costumam ser migrantes que utilizam as duas línguas em sua vida diária.

Fonte: http://bit.ly/42ZJMh4

Porém, não é necessário começar a aprender idiomas de forma compulsiva; outros fatores, como a educação, o estilo de vida saudável, leitura, atividade física e as relações sociais, também desempenham um papel fundamental na reserva cognitiva. Por isso, recomendo desafiar as capacidades mentais e físicas, encontrar prazer nas atividades e, claro, aprender uma nova língua.

Referência
KADYAMUSUMA, McLoddy; HIGBY, Eve; OBLER, Loraine. The neurolinguistics of Multilingualism. In: SINGLETON, David; ARONIN, Larissa (ed.) Twelve Lectures on Multilingualism. Bristol: Multilingual Matters Limited,  2019. p. 271-298.

Autora: Camila Alejandra Loayza Villena. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPel. Professora de espanhol para adultos.

Línguas conectadas na mente: o que são influências translinguísticas?

Você já deve ter ouvido falar em transferências (chamadas atualmente de influências translinguísticas por muitos pesquisadores) no processo de aquisição/aprendizagem de línguas estrangeiras. Em 1989, o pesquisador norte-americano Terence Odlin definiu a transferência como a influência de uma língua sobre o uso de outra, e esse conceito segue sendo usado na atualidade pelos professores e pesquisadores.

Fonte: imagem gerada pelo site https://br.freepik.com/

É importante salientar que os estudos em Linguística demonstram que uma língua influencia a outra não só no início da aquisição, mas durante toda a vida. Afinal, as transferências são um recurso comum quando falamos de pessoas bilíngues (que usam duas línguas) ou multilíngues (que usam três ou mais línguas), pois todas as línguas estão conectadas na mente e não divididas em “caixinhas” como se acreditava até alguns anos atrás.

Em 2021, a pesquisadora brasileira Raphaela de Freitas realizou um trabalho sobre as influências translinguísticas na produção oral em espanhol de brasileiros falantes de português, espanhol e inglês. Nesse estudo, é possível observar as transferências do português nas produções em espanhol, como, por exemplo, a utilização das palavras “logo” e “fonte” da língua portuguesa na fala em língua espanhola sendo usadas no lugar de “luego” e “fuente”: “logo viene dos otras personas: un chico y una chica” e “primero veo a un señor llegar a una acercarse a una fonte”. Isso ocorre, sobretudo, devido às semelhanças entre as duas línguas, o que motiva as influências, neste caso, na oralidade.

Além disso, as influências translinguísticas não ocorrem apenas no âmbito das palavras, como nos exemplos citados anteriormente, mas também em outros aspectos da língua, como na gramática e na pronúncia. O estudo das transferências, portanto, abrange uma variedade de fatores que moldam o uso das línguas por bilíngues e multilíngues em diferentes contextos comunicativos.

Em resumo, as influências translinguísticas desempenham um papel fundamental na aquisição e no uso de línguas ao longo da vida. Esse fenômeno ocorre tanto em bilíngues quanto em multilíngues e não se limita apenas ao início da aprendizagem, mas permanece em diferentes níveis de proficiência linguística e manifesta-se na escrita e na oralidade. Assim sendo, entender as transferências é crucial para compreender a dinâmica da aprendizagem de línguas e o impacto da interação entre elas.

Referências
FREITAS, Raphaela Palombo Bica de. Influências translinguísticas lexicais na produção oral em espanhol por brasileiros adultos imigrantes falantes de português, espanhol e inglês. 2021. Dissertação (Mestrado em Letras) – Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade Federal de Pelotas.
ODLIN, Terence. Language Transfer: Cross-Linguistic Influence in Language Learning. Cambridge: Cambridge University Press, 1989.

Autor: Lucas Röpke da Silva – Professor de espanhol e português como línguas estrangeiras. Atualmente, realiza o curso de mestrado acadêmico em Letras na Universidade Federal de Pelotas na linha de pesquisa Aquisição, Variação e Ensino.
Siga o autor: @lucas.ropke

Keep calm: Code-switching é normal

Code-switching é um termo em inglês utilizado para se referir à alternância linguística, ou seja, a troca de um idioma para outro em uma interação. Se você usa mais de uma língua no seu dia a dia, provavelmente, já fez isso, porque é uma prática comum para quem é bilíngue.

Conforme discutido pela professora Isabella Mozzillo, o code-switching mostra a flexibilidade do nosso cérebro. Todas as informações sobre as palavras de uma língua são armazenadas no léxico mental, ou seja, uma base de dados dentro da nossa memória. Como essa informação está sempre disponível para nós, ao alternar de um idioma para outro, mobilizamos o nosso conhecimento sobre a língua que desejamos usar naquela situação. Ao fazer isso, a nossa mente precisa ignorar o que sabemos sobre a língua que não está sendo usada. Logo, só alternamos entre idiomas porque temos essa capacidade de controlar qual língua usar em cada momento.

As pesquisadoras Louise Dabène e Danièle Moore explicam que o code-switching pode acontecer em momentos diferentes. Ao interagir com alguém, eu posso: alternar de um idioma para o outro em uma mesma frase, trocando uma única palavra ou uma sequência de palavras, como em 1, na figura abaixo; trocar o idioma entre uma frase e outra, como em 2; e/ou dizer várias frases em um idioma e, após um tempo, mudar para outro, como em 3.

Essas mudanças não são aleatórias, pois dependem do interlocutor, do contexto social e da intenção comunicativa. Um falante de português e inglês, por exemplo, só fará essa troca com alguém que conheça as mesmas línguas. Então, se essa pessoa interagir com um falante de português e espanhol, a interação será apenas em português, já que eles não compartilham o outro idioma que conhecem.

Além disso, é importante saber que o code-switching, além de ser uma estratégia para auxiliar a comunicação, pode ser motivado por diferentes razões: a falta de um vocabulário específico, a necessidade de expressar uma emoção ou de marcar uma identidade, a vontade de mudar de assunto etc. Logo, podemos alternar entre idiomas tanto para comunicar uma ideia quanto para expressar a nossa identidade. Para exemplificar isso, pode-se observar situações que ocorreram nas Olimpíadas de Paris (2024). Durante os jogos, alguns brasileiros criaram cartazes comparando comidas tradicionais do Brasil e dos países rivais. Comidas típicas brasileiras foram escritas em português e o restante da frase em inglês. Essa foi uma forma de usar o code-switching para marcar a identidade brasileira e, ao mesmo tempo, provocar o time rival.

Fonte: https://midianinja.org/mais-sushi-e-menos-coxinha-entenda-o-humor-do-brasil-ser-fregues-do-japao-nas-olimpiadas/
Fonte: https://www.uol.com.br/esporte/olimpiadas/ultimas-noticias/2024/08/08/brasileiros-provocam-eua-no-volei-em-paris-coxinha-e-melhor-que-hot-dog.htm

Portanto, podemos alternar entre línguas quando apenas um idioma não é o suficiente para comunicar tudo o que queremos dizer.

Referências
DABÈNE, Loiuse; MOORE, Danièle. Bilingual speech of migrant people. In: MILROY, Lesley; MUYSKEN, Peter. (org). One speaker, two languages: cross-disciplinary perspectives on code-switching. Cambridge: Cambridge University Press, 1995. p. 17-44.MOZZILLO, Isabella. O code-switching: fenômeno inerente ao falante. Papia, v. 19, p. 185-200, 2009.

Autora: Aline Mackedanz dos Santos. Graduada em Licenciatura em Letras – Português e Inglês pela Universidade Federal de Pelotas. Atualmente, é mestranda na linha de Aquisição, Variação e Ensino na mesma universidade.

 

Eu uso estrangeirismos. E você?

Fonte: https://pt.slideshare.net/LuanaNobre15/variao-lingusticapptx

O uso de palavras de outros idiomas, isto é, de estrangeirismos no português, é um tópico presente nas redes sociais ou rodas de conversa. Visto como uma ameaça à existência da língua, ou apontado como um tipo de submissão à cultura “estrangeira”, suscita opiniões acaloradas em defesa do idioma nacional. No entanto, o debate, frequentemente, fica no campo das crenças em torno do que é certo e errado na língua, o que acaba validando preconceitos em relação aos falantes.

Para o sociolinguista e professor da Universidade de Brasília, Marcos Bagno, os empréstimos entre as línguas sempre existiram e não são privilégio de um idioma ou outro. O inglês, por exemplo, possui vários termos emprestados do português. Segundo o autor, os estrangeirismos, com o tempo, adaptam-se aos sons, à ortografia e aos sentidos da língua. Quem já não se sentiu jururu (do tupi yuru-ru) e precisou tomar um café (do árabe, qahwa) com açúcar (do sânscrito, sarkara) sob à luz de um abajur (do francês, abat-jour)?

Outro equívoco apontado por Marcos Bagno nas falas de quem se opõe aos estrangeirismos, é concluir que seu uso exclui as pessoas mais simples da comunicação, já que não entenderiam o que é dito. Avaliar os usos que os falantes fazem da língua, levando em conta prestígio social, escolarização e classe econômica não é nada mais do que puro preconceito linguístico, garante o sociolinguista.

Para concluir

A troca entre as línguas é natural: a gente pega emprestado, mas também empresta. Os estrangeirismos resultam dessa troca. Por si só, não ameaçam as línguas e não excluem os falantes da interação com o mundo, muito pelo contrário. Usá-los não faz um povo mais servil ou “colonizado”. As conversas sobre a(s) língua(s) são saudáveis, importantes e necessárias, porém precisam considerar o que dizem as ciências da linguagem para desconstruir crenças e preconceitos.

Referências
BAGNO, Marcos. Cassandra, Fênix e outros mitos. In: FARACO, Carlos Alberto. Estrangeirismos. São Paulo: Parábola, 2001. p. 49-83.

Autora: Andréa Ualt. Licenciada em Letras – Espanhol e Literaturas de Língua Espanhola, mestre em Educação e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPel. Professora de Espanhol do IFSul-Campus CaVG.

Você não precisa se preocupar em falar como um nativo!

Uma das metas mais comuns entre pessoas que começam a estudar uma língua estrangeira é, um dia, serem capazes de falarem como um falante nativo do idioma que estão aprendendo. De fato, muitos alunos acreditam que só podem se considerar fluentes quando não tiverem mais nenhum traço de sotaque das suas línguas maternas. Mas será que isso – perder o sotaque e falar uma língua estrangeira que nem um nativo – é mesmo possível? Para responder essa pergunta, devemos primeiro entender o que significa aprender uma língua estrangeira.

De acordo com a teoria do professor e pesquisador Larry Selinker (1972), todos nós possuímos uma estrutura linguística latente no cérebro. Conforme temos contato com uma língua, essa estrutura se atualiza, assumindo as formas da língua à qual estamos expostos. Em outras palavras, essa estrutura latente é um dispositivo que, quando ativado, permite que aprendamos outros idiomas. E, quando nos expressamos em outra língua, o que produzimos não é idêntico ao que um nativo produziria, mas sim algo intermediário, situado entre a língua materna e a estrangeira: uma interlíngua.

Podemos enxergar a interlíngua como um continuum com duas extremidades: numa delas, temos a língua materna do aluno; na outra, o falante nativo da língua que o aluno está aprendendo. O aluno, por sua vez, se encontra entre esses dois pontos. Conforme vai estudando as regras e formas da língua estrangeira, ele vai se afastando cada vez mais do ponto inicial e se aproximando do ponto final. Todos aqueles que estiverem em algum ponto desse continuum são considerados bilíngues.

Segundo a professora Isabella Mozzillo (2003), na interlíngua, existem elementos da língua materna do aluno, de quaisquer outras línguas que esse aluno conheça e da língua-alvo. Em outras palavras, a interlíngua é um produto do contato de todas as línguas do sujeito. Novamente de acordo com Larry Selinker (1972), todo falante de uma interlíngua passa por alguns processos, dentre os quais temos: as transferências linguísticas, a supergeneralização e a fossilização.

Transferências linguísticas: quando o sujeito utiliza uma regra que existe na sua língua materna, mas não na língua estrangeira. Exemplo: J’ai acheté un voiture. No exemplo , um aprendiz brasileiro de francês fala “un voiture” porque, em português, fala-se “um carro”. Contudo, em francês, voiture (carro) é um substantivo feminino, e, por isso, a forma correta seria “une voiture”.

Supergeneralização: quando o sujeito aprende uma regra da língua estrangeira e a emprega mesmo quando não é necessária. Exemplo: I goed to the beach yesterday. Nesse exemplo, um aprendiz de inglês, após aprender que deve-se acrescentar um -ed ao final de verbos regulares para conjugá-los no passado, aplica essa regra ao verbo “go”, cuja forma no passado é “went”.

Fossilização: quando o sujeito conserva na sua interlíngua formas de pronúncia ou construção de frases que vêm da sua língua materna e que não consegue deixar de utilizar, independentemente da quantidade de instrução que receba.

O fato é que a imensa maioria daqueles que decidem estudar uma língua estrangeira falarão uma interlíngua. Esse fato, contudo, não deve ser motivo para decepção. Se você fala uma interlíngua, isso significa, antes de mais nada, que você é uma pessoa bilíngue (ou multilíngue). Significa que há um esforço, da sua parte, para entender e se fazer entender pelo outro. A meta de falar da mesma forma que um falante nativo, além de ser irreal, pode, por vezes, levar à frustração. Conservar o sotaque da sua língua materna deve ser motivo não de vergonha, mas de orgulho.

Referências
MOZZILLO, Isabella. A interlíngua construída em ambiente autônomo de aprendizado de línguas estrangeiras. In: NICOLAIDES, Cristine et al. O desenvolvimento da autonomia no ambiente de aprendizagem de línguas estrangeiras. 2003. p.  247-273.
SELINKER, Larry. Interlanguage. IRAL. Boston, MA, v. 10, n. 3, 1972, p. 209-231.

Autor: Leonardo Ribeiro, graduado em Licenciatura em Letras – Português e Inglês pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Atualmente, é aluno do mestrado em Aquisição, Variação e Ensino, com pesquisas em multilinguismo e translinguagem.

Cognatos, cognates, Kognaten, cognados, cognats

Em algumas situações, quando estamos lendo algum texto em uma língua estrangeira, reconhecemos palavras com certas semelhanças com outras línguas. As palavras “emoção”, em português, “Emotion”, em alemão, e “emotion”, em inglês, são alguns exemplos de palavras cognatas entre diferentes línguas.

Os cognatos são definidos como palavras de línguas diferentes que apresentam semelhanças por terem algum vínculo em relação à origem. O pesquisador alemão Ronald Möller (2011) descreve que essa relação é analisada com base no processo evolutivo das línguas, para que comparações possam ser realizadas. 

Os pesquisadores Rena Helms-Park e Vedran Dronjić (2012) afirmam que a relação de significados entre as palavras pode ser direta, por terem a mesma origem, ou indireta, no caso dos empréstimos. Essas palavras semelhantes de línguas diferentes com sentidos diferentes são definidas como falsos cognatos. Por exemplo, Trikot em alemão se refere à camisa de time de futebol. Porém, quando lemos essa palavra ou ouvimos uma transmissão de futebol da TV alemã, possivelmente, o primeiro sentido em que pensamos é numa roupa de lã pesada.

Para fins de pesquisa, busca-se compreender a relação de palavras cognatas, para assim, desvendar os possíveis vínculos entre duas línguas na mente e suas transformações ao longo do tempo.

Referências
MÖLLER, Robert. Wann sind Kognaten erkennbar? Ähnlichkeit und synchrone Transparenz von Kognatenbeziehungen in der germanischen Interkomprehension. Linguistik online, v. 46, n. 2, p. 79–101, 2011. http://dx.doi.org/10.13092/lo.46.373
HELMS-PARK, Rena; DRONJIC, Vedran. Cognates. In: The Encyclopedia of Applied Linguistics. Oxford, UK: Blackwell Publishing, 2012. p. 1–7. https://doi.org/10.1002/9781405198431.wbeal0143

 

Autor: Lisandro Miritz Völz. Graduando em Letras Português e Alemão pela Universidade Federal de Pelotas e  integrante do Laboratório de Psicolinguística, Línguas Minoritárias e Multilinguismo.

Mostre-me como você fala, que eu direi quem é você! É sério?

Com certeza, você já se pegou fazendo comentários sobre como os atendentes de telemarketing usam a língua portuguesa ou como falam os seus vizinhos. Além disso, deve ter opiniões sobre os sotaques do feirante da banca das verduras e do vendedor ambulante, de quem você quer comprar a linda rede nordestina para colocar na varanda. Entretanto, você já parou para pensar por que faz, ou melhor, por que fazemos isso? Por que reagimos e “julgamos” a pronúncia, o sotaque, as formas como as pessoas falam?

Fonte: Arquivo pessoal de Andrea Ualt

Para a pesquisadora brasileira Raquel Freitag, isso se deve a nossa consciência sociolinguística, isto é, a um conjunto de crenças, sentimentos, conhecimentos e experiências com a(s) língua(s), que levamos nas nossas memórias. Essa consciência nos faz reagir, avaliar, classificar, manipular e entender modos de falar diferentes dos usados por nós, toda vez que os ouvimos.

Algumas das reações que temos sobre a(s) língua(s) não são conscientes: escutamos um determinado sotaque e automaticamente projetamos nossos sentimentos em relação a ele. Outras reações são mais reflexivas, falamos sobre elas: quando como opinamos sobre a “a língua ideal para conseguir um bom emprego”; ou “o melhor português do Brasil”, por exemplo.

Entretanto, a pesquisadora da Universidade de Ohio, Anna Babel, assegura que essas percepções (sejam elas mais ou menos conscientes) sobre modos de falar, sotaques e pronúncias das pessoas estão fortemente ligados à forma como as classificamos, levando em consideração requisitos que não são linguísticos, tais como raça, classe social, escolarização ou mesmo o lugar onde vivem. Para a autora, projetamos nossos preconceitos sociais na língua. Assim sendo, qualquer julgamento que façamos sobre a existência de uma “língua certa” ou um jeito bonito de falar, com certeza não corresponde à realidade dos fatos.

Nesse sentido, a consciência sociolinguística dos falantes é como um tesouro linguístico que, quando decifrado, revela uma série de informações importantes para os linguistas: os modos que entendemos as línguas e as pessoas; quais conhecimentos, crenças e sentimentos as comunidades compartilham sobre os falares uns dos outros; os preconceitos que algumas línguas e dialetos sofrem. A consciência sociolinguística torna possível entender a diferença linguística e cultural não como um problema que precisa ser resolvido ou eliminado, mas como um direito e recurso que melhora nossas relações com as outras pessoas e com o lugar em que vivemos.

Referências
FREITAG, Raquel M. K. O desenvolvimento da consciência sociolinguística e o sucesso no desempenho em leitura. ALFA: Revista de Linguística, São Paulo, v. 65, p. 1-27, 2021.

Vídeo
BABEL, Anna. Como classificamos falantes duma língua? TED Ideas Worth spreading, 2020, 10min47s. Disponível em: www.ted.com/anna_babel. Acesso em: 23 de agosto de 2022, 14h44min.

Autora: Andréa Ualt
Licenciada em Letras – Espanhol e Literaturas de Língua Espanhola, mestre em Educação e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPel. Professora de Espanhol do IFSul-Campus CaVG.