A importância do resgate das formas de escrita ancestrais da África

Você sabia que a África possui formas de escritas ancestrais? Atualmente, os avanços nos estudos em linguística histórica e comparada sobre a língua faraônica (língua egípcia) e outras línguas africanas (kandianas) têm revelado dados muito interessantes. 

Pesquisadores como Cheikh Anta Diop e Jean-Claude Mboli têm estudado a conexão entre a língua dos faraós e as outras línguas africanas e descobriram que essas línguas pertencem a uma mesma família. Esses estudos incentivam o resgate das formas antigas de escrita que surgiram na África, ajudando a revelar as raízes da sua história.

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De volta às origens

A África, ou Kanda (termo que significa “cidade, reino, país”, nas línguas bantu), foi o berço das línguas africanas e de suas formas de escrita. É importante recuperar essas escritas antigas para re-escrever e compreender as línguas africanas modernas e, assim, combater a ideia de que a África só possui tradição oral. Na verdade, tanto a fala quanto a escrita são partes fundamentais da cultura africana. Os países colonizadores não trouxeram a escrita para o continente africano; ao contrário, foi a África que contribuiu com a civilização mundial. 

A força da fala e da escrita

Compreender como os faraós escreviam sua língua com a escrita que inventaram (os hieróglifos) possibilita aplicar esses conhecimentos às línguas africanas modernas. Essa compreensão inclui a da fonologia dos glifos (sons dos símbolos) e dos símbolos propriamente ditos. Podemos, por meio de um exercício comparativo, hieroglifizar os idiomas modernos, criando uma escrita que reflete melhor a cultura e identidade africanas. Vejamos abaixo alguns exemplos de como os hieróglifos podem ser usados para representar palavras e ideias nas línguas africanas modernas.

𓃀 /b/ *[bo] = pé, perna (língua egípcia)

𓃀𓉐 /b/ [bɑ] = lugar (língua sango)

𓃀 /b/, 𓇋𓃀 /j-b/ [ɛ-bɔ] = pé, sola do pé (língua bekwel)

𓃀 /b/, 𓇋𓃀 /j-b/ [e-bo] = sola do pé (língua nzime)

Podemos ver como a palavra “pé” e suas extensões semânticas (perna, sola do pé, lugar, isto é, espaço pisado) se escreve com o glifo (imagem) do (que representa a letra b), e pode conter afixos (prefixos ou sufixos) conforme a língua. Para ser mais específico, como na palavra “lugar” na língua sango, outro símbolo é acrescentado no final (à direita), isto é, um símbolo para “casas” ou “espaços” (chamado determinativo), para enfatizar que se trata de um lugar.

Como alerta o escritor queniano Ngũgĩ  wa Thiong’o, o processo de hieroglifização das línguas africanas modernas é um exercício que os linguistas do continente devem começar a fazer para a promoção e consolidação de sistemas de escritas originários. Isso não só fortalece a identidade linguística e cultural dos povos africanos, mas também combate os preconceitos históricos que marginalizaram suas línguas.  

Referências
BILOLO, Mubabinge. Vers un dictionnaire cikam-copte-lubaː Bantuïté du vocabulaire égyptien-copte dans les essais de Homburger et d’Obenga. Munich, Freising, Kinshasa: African University Studies, 2011.
DIOP. C. A. The African origin of civilization: myth or reality. New York: L. Hill, 1974.
DIOP, C. A. Parenté génétique de l’égyptien pharaonique et des langues négro-africaines. Dakar-Abidjan: IFAN/NEA, 1977.
IMHOTEP, Asar. Towards a Comparative Dictionary of Cikam and Modern African Languages. Houston, TX: Madu-Ndela Press, 2020.
MBOLI, Jean-Claude. Origines des langues africaines: essai d’application de la méthode comparative aux langues africaines anciennes et modernes. Paris: L’Harmattan, 2010.
MBOLI, Jean-Claude. Épopée bantu: des Grands Lacs à la Méditerranée. [s.l.]: ESIBLA, 2024.
OBENGA, T. Origine commune de l’égyptien ancien, du copte et des langues négro-africaines: introduction à la linguistique historique africaine. Paris: L’Harmattan, 1993.
SY, Jacques H. (ed.). L’Afrique, berceau de l’écriture et ses manuscrits en péril: des origines de l’écriture aux manuscrits anciens (Égypte pharaonique, Sahara, Sénégal, Ghana, Niger). v.1. Paris: L’Harmattan, 2014.
THIONG’O, Ngũgĩ wa. Decolonising the mind: the politics of language in African literature. London: J. Currey; Portsmouth, N.H. : Heinemann, 1986.

Autor: Peresch Aubham Edouhou
Falante das línguas bekwel e ikota, possui graduação em Letras – Português e Inglês pela Universidade Federal de Pelotas (2019), mestrado em Letras (Estudos da linguagem) pela Universidade Federal do Rio Grande (2022). Atualmente é doutorando em Letras (Literatura) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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