Arquivo mensais:março 2021

HQ sinalizada: Séno Mókere Káxe Koixómuneti (Sol: a Pajé surda)

Desenvolver pesquisas na área dos quadrinhos, em especial, das HQs sinalizadas (CEZAR, 2019), trouxe-nos muitos desafios e, ao mesmo tempo, muita satisfação. Criar uma narrativa gráfica tendo como principal objetivo o desenvolvimento de um material bilíngue para surdos (Libras – português escrito) nos fez pensar no plurilinguismo brasileiro das línguas de sinais.

Ao escolhermos retratar a existência da língua terena de sinais, durante o processo histórico da comunidade, optamos por explorar as ilustrações a partir das características da cultura (pintura, ritual, cores) para minimizamos o uso da escrita das línguas majoritárias (português/terena escrito). Junto a isso, exploramos com os recursos tecnológicos (vídeos) a transmissão dos saberes também em Libras. Dessa forma, acreditávamos que conseguiríamos levar o gênero HQ para os surdos urbanos e para as escolas da Terra Indígena Cachoeirinha-MS (surdos e não surdos) com a intenção de despertar e valorizar as línguas de minorias. Cabe destacar que a escrita terena pode apresentar variação como: Sêno Mókere Káxe Koixomoneti, Séno Mókere Koéxoneti, entre outras. A variação aqui utilizada é da aldeia Cachoeirtinhao/MS escrita pela professora de língua terena Maiza Antonio residente nessa aldeia.

Trabalhar com diferentes línguas envolve se debruçar nos conhecimentos históricos (com e sem registros escritos), analisar a estrutura linguística e compreender os artefatos culturais que envolvem, em outras palavras, uma grande entrega à pesquisa. Foi o que fizemos nestes últimos três anos de pesquisa (2018-2020), na Universidade Federal do Paraná (UFPR) em parceria com a Universidade Federal de Grande Dourados (UFGD); o Instituto de pesquisa da Diversidade Intercultural (IPEDI), a Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho (Linbra-UNESP); a Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), o Laboratório de Mídias (UFJF) e a Gibiteca de Curitiba. Formamos uma grande equipe de pesquisadores nas línguas estudadas: terena oral, terena escrito, língua brasileira de sinais, língua de sinais terena, português escrito e língua inglesa.

A HQ foi divulgada primeiramente para os indígenas terena que contribuíram voluntariamente com a pesquisa que foi por eles mostrada nas aldeias terena (Vagner da Aldeia Água Branca, Aquidauana/MS, Kaliny da Aldeia Jaguapiru, Dourados/MS e Maiza da Aldeia Cachoeirinha, Miranda/MS) todos relataram um encantamento com a produção do material. A equipe de pesquisadores também salientou a originalidade de articular os recursos digitais com as ilustrações de Júlia Ponnick que generosamente aceitou não só ilustrar, mas se envolver com os estudos teóricos sobre a comunidade (SILVA, 2013; VILHALVA, 2012; SUMAIO, 2014; SOARES, 2018).

A narrativa criada é um misto de ficção, fatos históricos de registros escritos e registros orais, transmitidos ao longo das gerações na comunidade terena. A história acontece antes do século XV, quando a personagem principal Káxe, a pajé surda, é chamada para o ritual típico de solicitar benção aos ancestrais ao nascer uma criança. Nesse momento, junto à benção, a pajé recebe a visão do futuro do povo terena por meio de imagens. Dessa forma, o desenvolvimento da narrativa perpassa os principais momentos históricos: desde o início do povo terena (Aruak) datado de antes do século XV, percorrendo o caminho geográfico que os terenas realizaram até se fixarem, em sua maior parte, na região do Mato Grosso do Sul.

Além do registro histórico, encontram-se os aspectos culturais bem marcados nas ilustrações como por exemplo as pinturas corporais, o artesanato, as plantações e a espiritualidade. Optamos a explorar as imagens ao invés da escrita em ‘’balões’’ em razão de priorizar a estrutura linguística das línguas de sinais, em outras palavras, visual-espacial.

Partimos da primeira pesquisa que descreve a existência da língua terena de sinais, que foi realizada pela pesquisadora e linguista Priscilla Alyne Sumaio Soares (2014; 2018). No entanto, há relatos e transmissões orais de que sempre existiram surdos (anciãos). Por este motivo, optamos por apresentarmos personagens se comunicando (sinalizando) ao longo da narrativa gráfica.

A narrativa encerra-se com o retorno do plano espiritual da pajé surda no ritual inicial de nascimento com a anciã transmitindo os ensinamentos em língua terena de sinais. A ideia transmitida é relatar o futuro do povo terena destacando sua principal característica de UNIÃO (ilustrado o sinal em língua terena de sinais).

Essa HQ impulsionou a criação de outros materiais que estão sendo realizados pela equipe envolvida, como o “Glossário Virtual Plurilíngue” em vídeos (terena de sinais, Libras) e escrita (terena e português) que tem como intuito refletir sobre a importância da língua de sinais ser a língua de instrução e transmissão dos saberes para surdos (Lei 10436/2002 – Decreto 5626/2005) e divulgar as outras línguas de sinais do Brasil que não dispõe de leis (SILVA; QUADROS, 2019).

A HQ será lançada pela editora Letraria e estará disponível para compra no site. Confira a tradução deste texto para a Libras neste link.

Boa leitura sinalizada!

Principais referências

BRASIL. Decreto-lei nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005. Diário Oficial [da] República Federativa do brasil, Brasília, 23 de dez. 2005. Seção 1, p. 30.
BRASIL. Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, 25 de abril de 2002. Acesso em: 10 mar. 2007.
CEZAR, K. P. L. HQ’s sinalizadas. Projeto de pesquisa institucional. Universidade Federal do Paraná, 2019-2020.
SILVA, D. Estudo lexicográfico da língua terena: proposta de um dicionário terena-português. 2013. 292 f. Tese (doutorado) – Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho, Faculdade de Ciências e Letras (Campus de Araraquara), 2013.
SILVA, D. S.; QUADROS, R.M. Línguas de sinais de comunidades isoladas encontradas no Brasil. Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 5, n. 10, p. 22111-22127 oct. 2019.
SOARES, P. A. S. LÍNGUA TERENA DE SINAIS: análise descritiva inicial da língua de sinais usada pelos terena da Terra Indígena Cachoeirinha. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós Graduação em Linguística e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Doutor em Linguística e Língua Portuguesa. Araraquara – São Paulo, 2018.
SUMAIO, P. A. Sinalizando com os terena: um estudo do uso da LIBRAS e de sinais nativos por indígenas surdos. 2014. 123 f. Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara, 2014.
VILHALVA, S. Mapeamento das Línguas de Sinais Emergentes: um estudo sobre as comunidades linguísticas Indígenas de Mato Grosso do Sul. 2012. 124 f. Thesis (MSc in Linguistics) – Programa de Pós-Graduação em Linguística – Centro de Comunicação e Expressão. Universidade Federal de Santa Catarina, 2009.
VILHALVA, S. Índios surdos: mapeamento das línguas de sinais no Mato Grosso do Sul. Petrópolis: Arara Azul, 2012.

Autores:
Ivan de Souza: Acadêmico do curso de licenciatura em Letras Libras da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Tradutor-intérprete de Libras. Pesquisador da iniciação científica (PIBIS/FA/UFPR). E-mail para contato: hiven89@gmail.com.
Kelly Cezar: Pós-doutora pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). Doutora pelo Programa de Linguística e Língua Portuguesa da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP-FClar/Araraquara). Professora Adjunta da Universidade Federal do Paraná (UFPR), campus de Curitiba. Líder do projeto institucional “HQ’s sinalizadas”. Docente do curso de licenciatura em Letras Libras (UFPR). E-mail para contato: kellyloddo@gmail.com.

O que imigração tem a ver com língua?

A imigração é um processo bastante comum atualmente. Diariamente, centenas de pessoas vão para outros países por inúmeras razões como trabalho, estudos, busca por condições melhores, guerras etc. Os imigrantes levam consigo as línguas que eles falam para os diferentes países no qual passam a residir e, muitas vezes, se deparam com novas línguas que até então não conheciam ou não falavam.

Para se adaptar ao novo país, o imigrante, muitas vezes se vê obrigado a aprender a língua que é falada nesse novo contexto. No entanto, é normal que se opte por também manter a língua materna, já que ela permite que a pessoa preserve vínculos com sua origem, com sua cultura e com sua família no país natal, conforme explica a linguista Camila Lira (2018).

Fonte: https://webstockreview.net/image/immigration-clipart-transparent/2842348.html

Ao formar uma família num país diferente, os pais devem tomar a importante decisão de que língua(s) falarão com os filhos. Pensemos na seguinte situação: uma mulher brasileira conhece um norte-americano  e se muda para os Estados Unidos. Com o nascimento de seu primeiro filho, a mãe precisa decidir se vai falar com ele em português (sua língua materna) ou em inglês (língua materna do pai e língua predominantemente falada no país). Caso a mãe escolha a primeira opção, o português vai se tornar a língua de herança (LH) do seu filho. LH, de acordo com Guadalupe Valdés (2000), é a língua falada em ambiente doméstico que é diferente da língua dominante na sociedade local.

Para a pesquisadora Ana Lucia Lico (2011), o desejo de passar a LH para o filho surge da vontade da mãe e/ou do pai imigrante de transmitir emoções em sua língua materna e de preservar os vínculos com a cultura brasileira (no caso de imigrantes brasileiros). Porém, muitas vezes, manter a LH não é tão simples assim, pois existe uma forte pressão social para que só se fale a língua do local, fazendo com que as crianças não queiram utilizar suas LHs, como aponta o estudo de Ana Souza (2015).

Tal pressão social ocorre porque, de acordo com Isabella Mozzillo (2015), ainda prevalece, em muitas sociedades, a ideia de que cada pessoa deve falar uma única língua e que falar mais de uma pode ser prejudicial. No entanto, a criança é capaz de aprender naturalmente mais de uma língua durante a infância sem ter problemas de desenvolvimento, conforme explica Cristina Flores (2019).

Cabe, então, aos pais imigrantes, resistir à pressão social e manter, a todo custo, a LH viva no seio da família, permitindo que as crianças convivam com essa língua constantemente.  Isso pode ser feito não apenas com o incentivo dos pais de usarem a LH em casa, mas também através do contato com instituições no exterior formadas por brasileiros imigrantes, que proporcionam o convívio com o português e, consequentemente, com a cultura brasileira por meio de recreações, clubes de leitura, comemorações de datas especiais, aulas de português etc. Essas práticas são essenciais para manter viva a língua de herança, que é um bem valioso, pois faz parte da origem e da identidade de seus falantes.

Finalmente, língua tem tudo a ver com imigração, pois os imigrantes frequentemente devem conviver com outras línguas e, ao mesmo tempo, decidir o que farão com a bagagem linguística que levam consigo.

Para saber mais sobre LH, é possível ver o filme Espanglês que retrata uma mãe e uma filha mexicanas que se mudam para os Estados Unidos e mantêm a LH (espanhol) como representante de suas identidades. Há também a autobiografia In Other Words da escritora Jhumpa Lahiri na qual ela conta sobre a relação conflituosa que possui tanto com a sua LH (bengali) quanto com o inglês, sua outra língua materna. E, por último, a entrevista com a autora Ana Lucia Lico explica e tira dúvidas sobre LH.

Referências
FLORES, C. Bilinguismo infantil. Um legado valioso do fenómeno migratório. Diacrítica, v. 31, n. 3, p. 237-250, 2017.
LICO, A. L.C. Ensino do português como língua de herança: prática e fundamentos. Revista SIPLE, v. 1, n. 2, p. 22-33, 2011
LIRA, C. O português como língua de herança em Munique: práticas de desafios. Fólio – Revista de Letras, v. 10, n. 1, 2018.
MOZZILLO, I. Algumas considerações sobre o bilinguismo infantil. Veredas, v. 19, n. 1, p. 147-157, 2015.
SOUZA, A. Motherhood in migration: A focus on family language planning. Women’s Studies International Forum, v. 52, p. 92 – 98, 2015.
VALDÉS, G. Introduction. In: Sandstedt, l. Spanish for Native Speakers: AATSP Professional Development Series Handbook Vol. I. New York: Harcourt College, 2000, p. 1-20.

Autora: Raphaela Palombo Bica de Freitas
Graduada em Letras – Português e Espanhol pela Universidade Federal de Pelotas (2018). Atualmente é mestranda em Letras pela mesma instituição e professora particular de língua espanhola.