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Torre de Babel – história baseada em fatos reais (só que ao contrário)

O mito da Torre de Babel conta por que existem tantas línguas no mundo. Nele, uma população unida e monolíngue decide construir uma torre que alcance o céu. Deus, irritado com a prepotência das pessoas, confunde a língua delas para que não se entendam mais e espalha as línguas pelo mundo.

Mito linguístico por trás dessa história: falar uma língua é o ideal. Falar muitas línguas é ruim, pois confunde e separa.

A narrativa de Babel talvez seja uma alegoria do que realmente pode ter ocorrido com as línguas humanas, só que os autores entenderam errado: não foram as muitas línguas que causaram a separação das pessoas, mas a separação é que deu origem a muitas línguas.

Quanto mais falantes uma língua houver e mais espalhados geograficamente estiverem, mais distantes se tornarão seus jeitos de se comunicar. Grupos separados e em contextos diferentes acabam adaptando a língua às suas realidades particulares e, com o tempo, a diferença entre seus dialetos se torna tão grande que um grupo já não compreende mais o outro. Temos, então, duas novas línguas. Foi mais ou menos assim que o latim se tornou português, espanhol, francês, italiano e outras vinte e poucas línguas. O processo é acelerado quando falantes de línguas diferentes entram em contato, pois elas incorporam elementos umas das outras, e daí às vezes nascem novas línguas. A língua crioula haitiana surgiu mais ou menos assim.

De volta ao mito, é importante esclarecer que, ainda que todas as línguas do mundo venham de uma só língua (não a de Babel, claro), isso ocorreu muito antes do surgimento de qualquer sociedade organizada. E é muito provável que tenham sido diversas “línguas-originais”, já que por mais de 2 milhões de anos (95,5% da existência dos humanos), fomos apenas vários bandos pequenos de caçadores-coletores nômades e desencontrados. A escrita só surgiu há 5 mil anos. Se a história da humanidade fosse uma pessoa completando 70 anos hoje, é como se ela só tivesse aprendido a ler e escrever um mês e meio antes desse aniversário.

Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Torre_de_Babel#/media/Ficheiro:Pieter_Bruegel_the_Elder_-_The_Tower_of_Babel_(Vienna)_-_Google_Art_Project_-_edited.jpg

A crença por trás de “uma língua = ordem; mais de uma língua = desordem” tem a ver com poder e dominação. É mais fácil controlar os subjugados se todos falam uma só língua – melhor ainda se for a do dominador. Essa crença alimenta outro mito: o de uma nação, uma língua. Embora a maior parte do mundo seja bilíngue e praticamente todos os países tenham mais de uma língua, a ideia que querem que compremos é a de que cada país fala uma língua: no Reino Unido é o inglês, na Itália é o italiano e no Brasil é o português. Deixemos essas fake news de lado e prestemos atenção aos fatos: no Reino Unido se fala inglês e outras 15 línguas, na Itália se fala italiano e outras 34 línguas e no Brasil se fala português, pomerano, talian, kaingang e outras 214 línguas. Sim, mais de duzentas!

Agora, compartilhem este post e vamos contar para todos que a diversidade linguística e o multilinguismo estão entre as melhores e mais preciosas qualidades da humanidade.

Ah! Só mais uma coisinha: no mito de Babel, Deus não amaldiçoou as pessoas ao lhes dar muitas línguas. Ele as salvou do tirano monolíngue que queria que construíssem uma torre para chegar a lugar nenhum.

Autor: Renan C. Ferreira
Graduado em Letras – Licenciatura em Língua Inglesa e Literatura (2010) e Mestre em Letras – Estudos da Linguagem (2018) pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Atualmente desenvolve sua pesquisa de Doutorado sobre Relativismo Linguístico e a Cognição Bilíngue na mesma instituição. Faz parte do grupo de pesquisa Línguas em Contato e atua como professor de língua inglesa há 13 anos.

Três mitos acerca do bilinguismo infantil

De atrasos aflitivos à grande inteligência: afinal, o que se pode afirmar sobre ser uma criança bilíngue?

Falar mais de um idioma em casa causará atrasos no desenvolvimento do meu filho? Devo perguntar ao meu filho se ele quer falar a minha língua? Será que dominar mais de uma língua sempre é sinal de muito esforço, dedicação ou ainda superdotação? Vamos ver alguns mitos que inquietam famílias e até profissionais da educação.

1. A criança que fala duas línguas demora mais a falar e fala pior que as outras
Essa ideia de “atraso” da criança bilíngue está ligada ao fato de que ela precisa processar uma quantidade maior de informações do que aquela que só tem contato com uma língua. Entretanto, não costuma durar mais do que alguns meses, já que as crianças são capazes, desde bem pequenas, de reconhecer e separar os ambientes e as pessoas com quem usar uma ou outra língua.

2. Deve-se sempre consultar os filhos sobre se querem ou não aprender a língua da gente
Os pais que creem nessa perspectiva, em geral, são os que falam uma língua diferente do que a maioria das pessoas em determinado local. Porém, nem em contextos onde só há uma língua, essa “consulta” sugerida seria plausível; é usar e ponto! Cabe apenas aos pais a decisão de usar a língua da família, como o pomerano, o japonês, o kaingang, com os filhos, dando-lhes a possibilidade de manter as tradições ligadas a esses idiomas.

3. Falar mais de uma língua desde a infância é sinal de ser inteligente
Adquirir duas ou mais línguas quando se é criança não requer nenhum esforço adicional. Basta a família usar regularmente um dos idiomas e exigir que os pequenos respondam nele, como uma ordem qualquer. “Tira o dedo da tomada! Desce do sofá! Fala (inserir aqui a língua) comigo!”. E, claro, lembrar que a língua faz parte de quem somos, pois é a partir dela que construímos nossos afetos e interagimos socialmente. Então, quando os pais decidem qual língua falar com a criança, não se recomenda trocar mais tarde.

Texto de referência:
MOZZILLO, I. Algumas considerações sobre o bilinguismo infantil. Veredas on-line, v. 19, n. 1, p. 147-157, 2015.

Autor: Vinicius Borges de Almeida
Graduado em Letras – Português e Francês pela Universidade Federal de Pelotas (2018). Atualmente, é mestrando em Letras pela mesma instituição e integrante do Grupo de Pesquisa Línguas em Contato. Atua como professor de francês em curso livre há dois anos.

 

 

Uma língua também pode morrer

Em 18 de janeiro de 1858, desembarcou em São Lourenço do Sul a primeira leva de imigrantes pomeranos oriundos da então Pomerânia. Apesar de todas as dificuldades, eles foram se estabelecendo nas terras do município, prosperando e abrindo o caminho para futuras levas. Além da cultura e das tradições, o grande tesouro que trouxeram para as terras brasileiras foi a língua, que hoje inclusive é dada como quase extinta no local onde se originou.

Lamentavelmente, o uso do pomerano tem diminuído também em terras brasileiras. A modernização e certas crenças parecem ser algumas justificativas para isso. Os mitos que envolvem a escolha da língua na qual uma criança deve ser criada podem ser os verdadeiros culpados da diminuição do uso desta língua tão única. Conforme a pesquisadora Isabella Mozzillo (2015), muitos pais acabam se convencendo que criar e educar uma criança em duas línguas simultaneamente pode ser prejudicial para o desenvolvimento da criança, quando na verdade pode ser prejudicial não incentivar o uso das duas línguas.

A escolha do convite de enterro para chamar atenção dos falantes pomeranos ocorre pelo grande e inquestionável respeito que os pomeranos têm pela morte, como estudado por Gislaine Maltzahn (2012). Além do mais, esse tipo de texto é muito conhecido na comunidade pomerana. A intenção é buscar a reflexão, já que, se continuarem acreditando nos mitos sobre a ensino de duas ou mais línguas para as crianças, os seus descendentes diretos já não serão mais herdeiros dessa língua e talvez nem da cultura pomerana. Também poderia trazer questionamentos sobre as mudanças necessárias para que a língua pomerana permaneça prestigiada e valorizada na sua própria comunidade. Afinal, o uso da língua pomerana não é importante apenas para a manutenção dela mesma. A língua é também a chave para a compreensão de muitos elementos culturais. Existem brincadeiras, receitas, tradições e costumes que só têm sentido completo se forem passados adiante com o uso da língua que identifica todas essas ações.

Por fim um questionamento: Se você recebesse um convite para enterro, de um ente querido, que só aconteceria daqui há alguns anos e entendesse que você poderia salvar esse ente, ou até mesmo prorrogar a sua existência por mais uma geração caso mudasse algumas convicções e não acreditasse em mentiras, o que você faria por este ente querido? Este ente é querido é a língua pomerana! Não podemos deixar que a língua seja extinta, como já ocorreu com outras 12 línguas brasileiras, segundo o Atlas das línguas em perigo, da UNESCO. A mudança necessária para a manutenção do pomerano está ao nosso alcance?

Referências:
MALTZAHN, Gislaine Maria. Família, ritual e ciclos de vida: estudo etnográfico sobre narrativas pomeranas em Pelotas (RS). 2012. 152 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Humanas) – Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2012.
MOZZILLO, Isabella. Algumas considerações sobre o bilinguismo infantil. Veredas – Revista de estudos linguísticos, v. 19, p. 147-157, 2015.

Autora: Gisleia Blank
Graduada em Letras – Português/Alemão pela UNISINOS (2011). Mestranda em Letras pelo PPGL da UFPel, integrante do Laboratório de Psicolinguística, Línguas Minoritárias e Multilinguismo. Atua principalmente como professora particular de Alemão.

“Programa de índio”: literatura indígena, por que não?

Se queremos, de fato, que nossas crianças existam como cidadãos, que escrevam hoje suas próprias histórias, compreendendo o passado e, assim, saibam alinhar o futuro desejado, precisamos criar juntos momentos de troca de conhecimentos, debate e reflexão. A escola é um dos importantes espaços para isso.

Assim, perder a oportunidade de lançar para eles iscas que os levem a explorar temas como identidades e diversidade cultural… é muito mais do que distração. Não lhes apresentar as diferentes visões de mundo através da literatura é tirar deles a chance de se apropriarem de suas memórias.

Instigada por essa ideia, eu, como professora, escolhi o livro Nós – Uma antologia de literatura indígena (Maurício Negro) para o Projeto de Leitura do 4º ano de minha escola. O livro é organizado a partir histórias sobre dez povos indígenas, acompanhadas por lindas imagens de Maurício Negro, seguidas pela história do povo em que elas circulam, por um glossário e pela biografia de seus autores/autoras. A partir do encontro com essas narrativas, inquietações nas crianças pipocaram: “Se há mais de 250 línguas indígenas (IPOL, 2016), por que só se fala português? O que os portugueses têm a ver com isso? Por que indígena e não índio? Por que eles são tão selvagens?”

Fonte: https://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=41243

Uma educação para o reconhecimento do outro, dos diferentes grupos sociais e culturais é o que defende a professora Vera Candou (2008). Queremos, também, uma educação que confirme (àqueles que nem desconfiam) a existência de um outro. Aliás… do OUTRO…com valores, culturas, línguas, visões de mundo, ou seja, com sua história que deve ser conhecida e respeitada.

Pôr em cena temas fundamentais e hoje silenciados, deletados dos planejamentos pedagógicos e camuflados nos livros didáticos, é nosso desafio. Ampliar vozes e visibilidade dos povos indígenas traz – de fato – sentido ao fazer do professor comprometido com a reconstrução de um mundo mais justo e solidário.

Referências
CANDAU, Vera Maria. Direitos humanos, educação e interculturalidade: as tensões entre igualdade e diferença. Revista Brasileira de Educação, v. 13, n. 37, p. 47, 2008.
IPOL. Línguas do Brasil. Disponível em: http://ipol.org.br/tag/linguas-do-brasil/. Acesso: 20 abr. 2021.
MAHER, T. M. Ecos de resistência: políticas linguísticas e línguas minoritárias no Brasil. In: NICOLAIDES, C.; SILVA, K. A.; TÍLIO, R; ROCHA, C. H. (Org.) Política e Políticas Linguísticas. Campinas: Pontes, 2013. p. 117-134.

Links interessantes para estudo e debates em sala de aula:
https://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=41243
https://www.facebook.com/mauricio.negro.5
https://pib.socioambiental.org/pt/P%C3%A1gina_principal https://www.blogdaletrinhas.com.br/conteudos/visualizar/Dos-varios-nos-que-enredam-as-literaturas-indigenas
https://lunetas.com.br/historias-indigenas/
https://www.facebook.com/FilmotecaIndigena/
https://revistapesquisa.fapesp.br/pela-sobrevivencia-das-linguas-indigenas/ed.273

Autora: Thaís de Almeida Rochefort
Graduada em Letras e Psicologia (UCPel), Mestre em Letras (UCPel), doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPel. Docente do Curso de Letras na UCPel, na Escola Mario Quintana (Profª de Português e Redação) e faz parte do Projeto “Remição de pena através da prática de leitura no Presídio Regional de Pelotas”, coordenado pela Profª Luciana Vinhas (UFPel).

Língua: ponte ou barreira? O caso dos imigrantes senegaleses

Você já imaginou ter de deixar de falar a sua língua para ser aceito e compreendido em outro país?

Essa é a situação pela qual muitas pessoas que decidem mudar de país passam. Vários são os fatores para a mudança, alguns buscam condições financeiras melhores; outros buscam refúgio e paz. No Brasil, essa é a realidade de milhares de imigrantes senegaleses. De acordo com dados do Comitê Nacional para Refugiados (Conare), desde 2002, houve 8.555 solicitações de reconhecimento da condição de refugiado por parte dos senegaleses, sendo que poucos foram deferidos. Há 5.995 pedidos de cidadãos do Senegal na fila.

https://www.researchgate.net/figure/Figura-1-Rota-dos-imigrantes-senegaleses-em-direcao-ao-Rio-Grande-do-Sul_fig4_312088597

Essa é a principal rota da presença e da cultura senegalesa. O percurso se inicia no Equador, depois seguem para o Paraguai, Argentina e finalmente Rio Grande, onde vivem mais de 200 senegaleses, mudando a cara do município, por conta da sua cor, costumes e sonoridade linguística.

Na ânsia de uma vida melhor, deixam família, trabalho, amigos e também a língua do cotidiano, a língua materna, a língua de herança. Isso mesmo, língua de herança, ou seja, aquela que os imigrantes deixam de falar quando habitam outros países. No Senegal, o idioma oficial é o francês, o qual é falado por uma minoria, o país é multilíngue, tendo mais de 30 línguas.  Grande parte da população utiliza o Wolof para a comunicação, inclusive, aqui, no Brasil.

Como e por que preservar a língua de herança é uma questão relacionada com o desejo de manter ou não o vínculo com a representação sócio-econômica-histórica de um país.

Jornal Agora (2015)

Com a finalidade de conseguirem se manter e enviarem recursos para sua família, os imigrantes se inserem na sociedade na medida em que vendem suas mercadorias, assim, aprendem o novo idioma, deixando a sua língua de herança para os momentos de lazer com seus compatriotas. Muitos desses ocorrem nos encontros religiosos, os senegaleses são muçulmanos e mantém o costume de orar.

Jornal Agora (2015)

Cinco anos se passaram da chegada dos primeiros senegaleses na cidade e há ainda muito a fazer no que se refere à inserção destes na comunidade, bem como aos seus direitos como cidadãos. Alguns já trouxeram suas famílias, seus filhos serão bilíngues e irão conviver com as diferentes culturas, permeadas pela língua que, primeiramente, vista como barreira, torna-se ponte.

Referências
FLORES, Cristina. Bilinguismo Infantil. Um legado valioso do fenômeno migratório.  Diacrítica: Revista do centro de estudos Humanísticos, v. 31, n. 3, p. 237-520, 2017.
JORNAL AGORA. Um pedaço do Senegal em Rio Grande. Rio Grande. Julho de 2015. Disponível em: https://pt.calameo.com/books/000337975ebe556b9efdf. Acesso em: 23 de set. 2020.
MOZZILLO, Isabella. Algumas considerações sobre o bilinguismo infantil. Veredas, v. 19, n. 1, 0. 147-157, 2015.  
PEREIRA, Vilmar; LEMOS, Luciane Oliveira. Senegaleses em Rio Grande. Diálogo Intercultural no além mar, v. 4, p. 1-18, 2018. 

Autora: Rita de Nóbrega
Possui Graduação em Letras-Português (2005), pela FURG, e Mestrado em Linguística Aplicada (2014), pela UCPel. Atualmente, é doutoranda do  Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPel. Possui experiência docente na Rede Municipal de Ensino e Ensino Superior.

HQ sinalizada: Séno Mókere Káxe Koixómuneti (Sol: a Pajé surda)

Desenvolver pesquisas na área dos quadrinhos, em especial, das HQs sinalizadas (CEZAR, 2019), trouxe-nos muitos desafios e, ao mesmo tempo, muita satisfação. Criar uma narrativa gráfica tendo como principal objetivo o desenvolvimento de um material bilíngue para surdos (Libras – português escrito) nos fez pensar no plurilinguismo brasileiro das línguas de sinais.

Ao escolhermos retratar a existência da língua terena de sinais, durante o processo histórico da comunidade, optamos por explorar as ilustrações a partir das características da cultura (pintura, ritual, cores) para minimizamos o uso da escrita das línguas majoritárias (português/terena escrito). Junto a isso, exploramos com os recursos tecnológicos (vídeos) a transmissão dos saberes também em Libras. Dessa forma, acreditávamos que conseguiríamos levar o gênero HQ para os surdos urbanos e para as escolas da Terra Indígena Cachoeirinha-MS (surdos e não surdos) com a intenção de despertar e valorizar as línguas de minorias. Cabe destacar que a escrita terena pode apresentar variação como: Sêno Mókere Káxe Koixomoneti, Séno Mókere Koéxoneti, entre outras. A variação aqui utilizada é da aldeia Cachoeirtinhao/MS escrita pela professora de língua terena Maiza Antonio residente nessa aldeia.

Trabalhar com diferentes línguas envolve se debruçar nos conhecimentos históricos (com e sem registros escritos), analisar a estrutura linguística e compreender os artefatos culturais que envolvem, em outras palavras, uma grande entrega à pesquisa. Foi o que fizemos nestes últimos três anos de pesquisa (2018-2020), na Universidade Federal do Paraná (UFPR) em parceria com a Universidade Federal de Grande Dourados (UFGD); o Instituto de pesquisa da Diversidade Intercultural (IPEDI), a Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho (Linbra-UNESP); a Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), o Laboratório de Mídias (UFJF) e a Gibiteca de Curitiba. Formamos uma grande equipe de pesquisadores nas línguas estudadas: terena oral, terena escrito, língua brasileira de sinais, língua de sinais terena, português escrito e língua inglesa.

A HQ foi divulgada primeiramente para os indígenas terena que contribuíram voluntariamente com a pesquisa que foi por eles mostrada nas aldeias terena (Vagner da Aldeia Água Branca, Aquidauana/MS, Kaliny da Aldeia Jaguapiru, Dourados/MS e Maiza da Aldeia Cachoeirinha, Miranda/MS) todos relataram um encantamento com a produção do material. A equipe de pesquisadores também salientou a originalidade de articular os recursos digitais com as ilustrações de Júlia Ponnick que generosamente aceitou não só ilustrar, mas se envolver com os estudos teóricos sobre a comunidade (SILVA, 2013; VILHALVA, 2012; SUMAIO, 2014; SOARES, 2018).

A narrativa criada é um misto de ficção, fatos históricos de registros escritos e registros orais, transmitidos ao longo das gerações na comunidade terena. A história acontece antes do século XV, quando a personagem principal Káxe, a pajé surda, é chamada para o ritual típico de solicitar benção aos ancestrais ao nascer uma criança. Nesse momento, junto à benção, a pajé recebe a visão do futuro do povo terena por meio de imagens. Dessa forma, o desenvolvimento da narrativa perpassa os principais momentos históricos: desde o início do povo terena (Aruak) datado de antes do século XV, percorrendo o caminho geográfico que os terenas realizaram até se fixarem, em sua maior parte, na região do Mato Grosso do Sul.

Além do registro histórico, encontram-se os aspectos culturais bem marcados nas ilustrações como por exemplo as pinturas corporais, o artesanato, as plantações e a espiritualidade. Optamos a explorar as imagens ao invés da escrita em ‘’balões’’ em razão de priorizar a estrutura linguística das línguas de sinais, em outras palavras, visual-espacial.

Partimos da primeira pesquisa que descreve a existência da língua terena de sinais, que foi realizada pela pesquisadora e linguista Priscilla Alyne Sumaio Soares (2014; 2018). No entanto, há relatos e transmissões orais de que sempre existiram surdos (anciãos). Por este motivo, optamos por apresentarmos personagens se comunicando (sinalizando) ao longo da narrativa gráfica.

A narrativa encerra-se com o retorno do plano espiritual da pajé surda no ritual inicial de nascimento com a anciã transmitindo os ensinamentos em língua terena de sinais. A ideia transmitida é relatar o futuro do povo terena destacando sua principal característica de UNIÃO (ilustrado o sinal em língua terena de sinais).

Essa HQ impulsionou a criação de outros materiais que estão sendo realizados pela equipe envolvida, como o “Glossário Virtual Plurilíngue” em vídeos (terena de sinais, Libras) e escrita (terena e português) que tem como intuito refletir sobre a importância da língua de sinais ser a língua de instrução e transmissão dos saberes para surdos (Lei 10436/2002 – Decreto 5626/2005) e divulgar as outras línguas de sinais do Brasil que não dispõe de leis (SILVA; QUADROS, 2019).

A HQ será lançada pela editora Letraria e estará disponível para compra no site. Confira a tradução deste texto para a Libras neste link.

Boa leitura sinalizada!

Principais referências

BRASIL. Decreto-lei nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005. Diário Oficial [da] República Federativa do brasil, Brasília, 23 de dez. 2005. Seção 1, p. 30.
BRASIL. Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, 25 de abril de 2002. Acesso em: 10 mar. 2007.
CEZAR, K. P. L. HQ’s sinalizadas. Projeto de pesquisa institucional. Universidade Federal do Paraná, 2019-2020.
SILVA, D. Estudo lexicográfico da língua terena: proposta de um dicionário terena-português. 2013. 292 f. Tese (doutorado) – Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho, Faculdade de Ciências e Letras (Campus de Araraquara), 2013.
SILVA, D. S.; QUADROS, R.M. Línguas de sinais de comunidades isoladas encontradas no Brasil. Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 5, n. 10, p. 22111-22127 oct. 2019.
SOARES, P. A. S. LÍNGUA TERENA DE SINAIS: análise descritiva inicial da língua de sinais usada pelos terena da Terra Indígena Cachoeirinha. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós Graduação em Linguística e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Doutor em Linguística e Língua Portuguesa. Araraquara – São Paulo, 2018.
SUMAIO, P. A. Sinalizando com os terena: um estudo do uso da LIBRAS e de sinais nativos por indígenas surdos. 2014. 123 f. Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara, 2014.
VILHALVA, S. Mapeamento das Línguas de Sinais Emergentes: um estudo sobre as comunidades linguísticas Indígenas de Mato Grosso do Sul. 2012. 124 f. Thesis (MSc in Linguistics) – Programa de Pós-Graduação em Linguística – Centro de Comunicação e Expressão. Universidade Federal de Santa Catarina, 2009.
VILHALVA, S. Índios surdos: mapeamento das línguas de sinais no Mato Grosso do Sul. Petrópolis: Arara Azul, 2012.

Autores:
Ivan de Souza: Acadêmico do curso de licenciatura em Letras Libras da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Tradutor-intérprete de Libras. Pesquisador da iniciação científica (PIBIS/FA/UFPR). E-mail para contato: hiven89@gmail.com.
Kelly Cezar: Pós-doutora pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). Doutora pelo Programa de Linguística e Língua Portuguesa da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP-FClar/Araraquara). Professora Adjunta da Universidade Federal do Paraná (UFPR), campus de Curitiba. Líder do projeto institucional “HQ’s sinalizadas”. Docente do curso de licenciatura em Letras Libras (UFPR). E-mail para contato: kellyloddo@gmail.com.

O que imigração tem a ver com língua?

A imigração é um processo bastante comum atualmente. Diariamente, centenas de pessoas vão para outros países por inúmeras razões como trabalho, estudos, busca por condições melhores, guerras etc. Os imigrantes levam consigo as línguas que eles falam para os diferentes países no qual passam a residir e, muitas vezes, se deparam com novas línguas que até então não conheciam ou não falavam.

Para se adaptar ao novo país, o imigrante, muitas vezes se vê obrigado a aprender a língua que é falada nesse novo contexto. No entanto, é normal que se opte por também manter a língua materna, já que ela permite que a pessoa preserve vínculos com sua origem, com sua cultura e com sua família no país natal, conforme explica a linguista Camila Lira (2018).

Fonte: https://webstockreview.net/image/immigration-clipart-transparent/2842348.html

Ao formar uma família num país diferente, os pais devem tomar a importante decisão de que língua(s) falarão com os filhos. Pensemos na seguinte situação: uma mulher brasileira conhece um norte-americano  e se muda para os Estados Unidos. Com o nascimento de seu primeiro filho, a mãe precisa decidir se vai falar com ele em português (sua língua materna) ou em inglês (língua materna do pai e língua predominantemente falada no país). Caso a mãe escolha a primeira opção, o português vai se tornar a língua de herança (LH) do seu filho. LH, de acordo com Guadalupe Valdés (2000), é a língua falada em ambiente doméstico que é diferente da língua dominante na sociedade local.

Para a pesquisadora Ana Lucia Lico (2011), o desejo de passar a LH para o filho surge da vontade da mãe e/ou do pai imigrante de transmitir emoções em sua língua materna e de preservar os vínculos com a cultura brasileira (no caso de imigrantes brasileiros). Porém, muitas vezes, manter a LH não é tão simples assim, pois existe uma forte pressão social para que só se fale a língua do local, fazendo com que as crianças não queiram utilizar suas LHs, como aponta o estudo de Ana Souza (2015).

Tal pressão social ocorre porque, de acordo com Isabella Mozzillo (2015), ainda prevalece, em muitas sociedades, a ideia de que cada pessoa deve falar uma única língua e que falar mais de uma pode ser prejudicial. No entanto, a criança é capaz de aprender naturalmente mais de uma língua durante a infância sem ter problemas de desenvolvimento, conforme explica Cristina Flores (2019).

Cabe, então, aos pais imigrantes, resistir à pressão social e manter, a todo custo, a LH viva no seio da família, permitindo que as crianças convivam com essa língua constantemente.  Isso pode ser feito não apenas com o incentivo dos pais de usarem a LH em casa, mas também através do contato com instituições no exterior formadas por brasileiros imigrantes, que proporcionam o convívio com o português e, consequentemente, com a cultura brasileira por meio de recreações, clubes de leitura, comemorações de datas especiais, aulas de português etc. Essas práticas são essenciais para manter viva a língua de herança, que é um bem valioso, pois faz parte da origem e da identidade de seus falantes.

Finalmente, língua tem tudo a ver com imigração, pois os imigrantes frequentemente devem conviver com outras línguas e, ao mesmo tempo, decidir o que farão com a bagagem linguística que levam consigo.

Para saber mais sobre LH, é possível ver o filme Espanglês que retrata uma mãe e uma filha mexicanas que se mudam para os Estados Unidos e mantêm a LH (espanhol) como representante de suas identidades. Há também a autobiografia In Other Words da escritora Jhumpa Lahiri na qual ela conta sobre a relação conflituosa que possui tanto com a sua LH (bengali) quanto com o inglês, sua outra língua materna. E, por último, a entrevista com a autora Ana Lucia Lico explica e tira dúvidas sobre LH.

Referências
FLORES, C. Bilinguismo infantil. Um legado valioso do fenómeno migratório. Diacrítica, v. 31, n. 3, p. 237-250, 2017.
LICO, A. L.C. Ensino do português como língua de herança: prática e fundamentos. Revista SIPLE, v. 1, n. 2, p. 22-33, 2011
LIRA, C. O português como língua de herança em Munique: práticas de desafios. Fólio – Revista de Letras, v. 10, n. 1, 2018.
MOZZILLO, I. Algumas considerações sobre o bilinguismo infantil. Veredas, v. 19, n. 1, p. 147-157, 2015.
SOUZA, A. Motherhood in migration: A focus on family language planning. Women’s Studies International Forum, v. 52, p. 92 – 98, 2015.
VALDÉS, G. Introduction. In: Sandstedt, l. Spanish for Native Speakers: AATSP Professional Development Series Handbook Vol. I. New York: Harcourt College, 2000, p. 1-20.

Autora: Raphaela Palombo Bica de Freitas
Graduada em Letras – Português e Espanhol pela Universidade Federal de Pelotas (2018). Atualmente é mestranda em Letras pela mesma instituição e professora particular de língua espanhola.

 

 

 

O que são línguas minoritárias?

Você já parou para pensar quantas línguas há no Brasil? Com quantas delas você já teve contato ou quantas fala? Provavelmente você já se deparou com alguma língua minoritária. Ao contrário do que muitas vezes pensamos, o português não é a única língua do Brasil. Como Maher (2013) aborda, há uma variedade de línguas em cada estado, que possuem sua cultura e sua história.

Ao acessar o site Ethnologue, podemos ver que  há mais de 100 línguas minoritárias no Brasil, dentre elas, a língua brasileira de sinais (Libras) e línguas indígenas como o kaingang, macuxi, terena, guajajara, guarani, entre outras. Há também línguas que foram trazidas para cá por meio de imigrantes, como o talian, polonês, alemão, ucraniano, pomerano, chinês e hunsriqueano.

Fonte: Criado pela autora no site https://www.mentimeter.com/

O português é a língua oficial do Brasil, usada pelo governo em seus documentos e leis, nas escolas, na televisão e no rádio. Mas há outras línguas que são usadas em diferentes contextos, como no comércio, na rua, em casa, em bares e eventos comunitários. De acordo com Altenhofen (2013), essas línguas são chamadas de minoritárias, pois pertencem a grupos que não são tão prestigiados social, cultural ou politicamente como os grupos de línguas majoritárias (línguas com maior prestígio, como o português no Brasil). Assim, as línguas minoritárias do país possuem status social mais baixo do que o português.

Algumas dessas línguas não são reconhecidas oficialmente, a maioria é falada em pequenos grupos ou em comunidades locais como o pomerano, que é mais presente, por exemplo, em Santa Maria do Jetibá (ES), São Lourenço do Sul, Arroio do Padre e Canguçu (RS). Algumas línguas minoritárias também podem ser incorporadas na escola, como no Mato Grosso, que adicionou o xavante ao seu currículo.

No entanto, por terem um status minorizado, algumas línguas minoritárias correm risco de extinção. Um dos motivos mais comuns é o fato de a maioria delas ser mais presente no contexto familiar e, com o passar das gerações, os filhos e netos vão, aos poucos, deixando de aprender a língua da família. Assim, é importante que haja esforços para a manutenção dessas línguas, por exemplo, por meio de campanhas de conscientização e ações de intervenção nas comunidades. Por isso, também é de grande relevância que haja estudos linguísticos sobre essas línguas, para que também seja possível analisar qual o tipo de ação adequada para a sua manutenção.

Se você deseja conhecer um pouco mais sobre as línguas minoritárias no mundo, poderá acessar os seguintes links: Wikitongues, Endangered Language Alliance, ILoveLanguages!, e Indigenous Tweets.

Referências
ALTENHOFEN, C. V. Bases para uma política linguística das línguas minoritárias no Brasil. In: NICOLAIDES, C.; SILVA, K. A.; TÍLIO, R; ROCHA, C. H. (Org.) Política e Políticas Linguísticas. Campinas: Pontes Editores, 2013. p. 93–116.
MAHER, T. M. Ecos de resistência: políticas linguísticas e línguas minoritárias no Brasil. In: NICOLAIDES, C.; SILVA, K. A.; TÍLIO, R; ROCHA, C. H. (Org.) Política e Políticas Linguísticas. Campinas: Pontes, 2013. p. 117-134.

Autora: Gabriela Wally Griep
Possui graduação em Letras – Português e Inglês pela Universidade Federal de Pelotas (2017). Atualmente é mestranda em Letras pela mesma instituição e integrante do Laboratório de Psicolinguística, Línguas Minoritárias e Multilinguismo (Laplimm). É professora de inglês há mais de dois anos em escola de idiomas.

Afinal, o que é esse tal de bilinguismo?

Bilinguismo. O termo ainda não é muito popular no Brasil. No entanto, circula cada vez mais forte e frequente em discussões importantes sobre a educação bilíngue de surdos e de indígenas, além de estar na base das iniciativas que buscam revitalizar as línguas herdadas dos imigrantes, como o pomerano e o talian. De acordo com o francês François Grosjean, professor emérito da Universidade de Neuchâtel, metade da população mundial é bilíngue.

Afinal, o que significa bilinguismo? A definição é polêmica. Os dicionários, como o Michaelis, o definem como a qualidade “daquele que fala dois idiomas”. As pessoas comuns também. Porém, não só elas. No início do século passado, pesquisadores definiram bilíngues como indivíduos com domínio perfeito em dois ou mais idiomas. No entanto, as pesquisas mais recentes são unânimes em afirmar: bilinguismo não é exatamente isso.

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Bilíngues, ser ou não ser, eis a questão

O que podem ter em comum:
a) a criança que têm pais que falam duas línguas em casa e as aprendeu simultaneamente antes dos três anos de idade?
b) o adolescente brasileiro que participa de jogos virtuais em uma comunidade em que o inglês é a língua de comunicação?
c) o estudante que lê e escreve em espanhol, mas só fala frases básicas?
d) a criança que entende Kaingang, ou pomerano, usado pelos avós, mas não o fala?

Segundo a definição de bilinguismo de François Grosjean, todas as pessoas dos exemplos acima podem ser consideradas bilíngues. De que maneira? O pesquisador baseia seu conceito de bilinguismo na ideia de uso das línguas. Dessa forma, para o linguista, bilíngues são pessoas que usam as duas línguas que adquiriram/aprenderam em situações do seu dia a dia, alternando-as conforme suas necessidades e finalidades específicas: para conversar com os pais na língua materna deles; ler um artigo; participar de um jogo virtual; escutar uma história dos avós que falam uma língua minoritária, por exemplo. Portanto, bilíngues se valem, em menor ou maior grau, do conhecimento linguístico que possuem e das habilidades comunicativas que dominam (ler, ouvir, falar e escrever) nas duas ou mais línguas que fazem parte da sua vida, tanto para interagir com o outro quanto para experimentar o mundo que os cercam.

Referências
Bilinguismo. In: Michaelis, Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 2020. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/bilinguismo/ Acesso em: 27 set. 2020.
FLORES, C. Bilinguismo infantil. Um legado valioso do fenómeno migratório. Diacrítica, v. 31, n. 3, p. 237-250, 2017.
GROSJEAN, F. Bilinguismo Individual. Trad. por Heloísa Augusta Brito de Mello e Dilys Karen Rees. Revista UFG, v. 10, n. 5, p. 163-176, 2017.
LICO, A. L.C. Ensino do português como língua de herança: prática e fundamentos. Revista SIPLE, v. 1, n. 2, p. 22-33, 2011.
LIRA, C. O português como língua de herança em Munique: práticas de desafios. Fólio – Revista de Letras, [S.l.], v. 10, n. 1, 2018.
MEGALE, A. H. Bilinguismo e educação bilíngue – discutindo conceitos. Revista Virtual de Estudos da Linguagem – ReVEL, v. 3, n. 5, p. 01-13, 2005.
MOZZILLO, I. Algumas considerações sobre o bilinguismo infantil. Veredas (on-line), v. 19, n. 1, p. 147-157, 2015.
SOUZA, A. Motherhood in migration: A focus on family language planning. Women’s Studies International Forum, v. 52, p. 92 – 98, 2015.

Autora: Andréa Ualt Fonseca
Licenciada em Letras – Espanhol e Literaturas de Língua Espanhola, mestre em Educação e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPel. Professora de Espanhol do IFSul-Campus CaVG.

 

 

Línguas africanas no Brasil: você já pensou sobre essas línguas?

Na história do Brasil, sabe-se que o povo de origem africana chegou ao país na condição de pessoas escravizadas. Assim, de acordo com a historiadora Sharyse Amaral (2011), estima-se que entre os séculos XVI e XIX milhares de pessoas do continente africano foram trazidas de forma abrupta e violenta. Os africanos que conseguiram resistir às péssimas condições a que foram submetidos nos navios negreiros trouxeram para a nova terra a cultura do seu lugar de origem, como os costumes, a religião e a língua, foco deste texto.

Antes de tudo, é necessário mencionar que o nosso país não tem apenas o português como o único idioma, pois, de acordo com a linguista Terezinha Maher (2013), temos mais de 200 línguas, entre línguas de imigração, indígenas e as de origem africana, as quais são consideradas línguas plenas ou especiais. É possível encontrar as línguas africanas em rituais de religiões de matriz africana e como demarcação social, conforme dado apontado por Margarida Petter em 2017.

Apesar da ausência dessas línguas nas placas de “Bem-vindo”, em entrada de cidades, assim como em placas indicando comunidades quilombolas ou placas turísticas, por exemplo, é possível ver sua influência em nosso vocabulário. Contamos com palavras influenciadas principalmente pelo banto, grupo etnolinguístico localizado principalmente na África subsaariana, como, por exemplo, abadá, caçula, dengo, tanga, banguela, muvuca, entre outras. Confira mais exemplos no texto de Flora Pereira.

http://www.afreaka.com.br/notas/diversidade-linguistica-africana-e-suas-herancas-na-formacao-portugues-brasil/

Considerando que na época do tráfico negreiro a população escravizada era a maior na sociedade da época e, atualmente, a população afrodescendente no Brasil representa mais de 50%, segundo os últimos dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), convém trazer para a nossa discussão a seguinte questão: Por que esse grande número não foi suficiente, em termos quantitativos, para que tivéssemos maior conhecimento, presença e comunidades de fala com as línguas de origem africana?

É necessário lembrar que os africanos, desde sua chegada ao Brasil, já vieram ocupando posições sociais marginalizadas e subjugadas. Isso explica, em partes, porque o povo preto pouco conseguiu manter viva sua língua materna, especialmente pelo fato de os colonizadores promoverem a mistura de diferentes etnias africanas em uma capitania a fim de evitar uma rebelião. Junto disso, sabe-se que o acesso à educação para essas pessoas era totalmente negado pela sociedade da época.

O caso das línguas africanas revela que há relações de poder nas políticas linguísticas. A população africana escravizada, em virtude da sua posição social marginalizada, não tinha poder na sociedade da época para manter sua língua de origem, mesmo que contabilizasse a maioria da população na época.

Por fim, é preciso levantar que o principal problema em torno das línguas africanas e dos dialetos originários dela é a falta de visibilidade dessas línguas, assim demonstrando certo apagamento de parte da cultura de um povo, o preto. Apesar disso, reconhecemos a sobrevivência dessas línguas em rituais religiosos e como demarcação social como um processo de resistência da cultura afro-brasileira.

Referências
AMARAL, Sharyse Piroupo do. História do negro no Brasil. Brasília: Ministério da Educação. Salvador: Centro de Estudos Afro orientais, 2011.
MAHER, T. M. Ecos de resistência: políticas linguísticas e línguas minoritárias no Brasil. In: NICOLAIDES, C.; SILVA, K. A.; TÍLIO, R; ROCHA, C. H. (Org.) Política e Políticas Linguísticas. Campinas: Pontes, 2013. p. 117-134.
PETTER, Margarida. Línguas Africanas no Brasil. África: Revista do Centro de Estudos Africanos. USP, S. Paulo, n. 27-27, p. 63-89, 2007. 

Autora: Nessana Pereira
Graduação em Letras – Português pela Universidade Federal de Pelotas (2018). Atualmente, é mestranda em Letras pela mesma instituição.