Le Monde Diplomatique: A Ucrânia, os direitos humanos e o cinismo Ocidental por Charles Pennaforte

O que mais chama a atenção é a reação desproporcional à invasão russa. Não há dúvida que uma invasão é um fato deplorável e com consequências terríveis para a população. Contudo, vale a pena lembrar que invasões e guerras já foram e são praticadas pelo EUA e seus aliados e em nenhum desses casos a UE ou Washington se dispôs a colocar sua máquina política e econômica para impedir massacre e violações dos direitos humanos de palestinos, por exemplo

De uma hora para a outra os EUA e a União Europeia (UE) foram tomados pelos mais nobres dos sentimentos: a defesa dos diretos humanos. Os mesmos que são negados, por exemplo, à população palestina que desde 1967 sobrevive com a ocupação ilegal israelense em seus territórios e sofre bombardeios contra a população civil na Faixa de Gaza. Como explicar o apoio de Washington a uma das mais sanguinárias ditaduras do Oriente Médio, a Arábia Saudita?  Nada disso mereceu sanções, bloqueios ou repúdio orquestrado pela mídia ocidental contra os dois governos. Pelo contrário: negócios foram e são feitos com Washington e a UE.

A invasão russa ao território ucraniano é uma fase pós-Guerra Fria, que não terminou e que deveria ter terminado com a ruína moral e militar do país como nos anos 1990 sob a liderança de Boris Yeltsin. Com o comando das máfias e a gestação dos oligarcas que fatiaram empresas e setores lucrativos do país, todos oriundos da estrutura de partidária de comando da antiga URSS, o país entrou na “transição para o capitalismo”.  E afundou.

A Rússia mergulhou no caos até a chegada de Vladmir Putin em 1999. “Caos” este que foi perfeito para os interesses ocidentais: apropriação de recursos naturais e empresas por baixo custo. Mas a Rússia é Rússia. Foram 70 anos de regime soviético que, apesar de tudo, criaram noções de nacionalismo e orgulho ao solo pátrio. Antes havia sido um Império Czarista, depois soviético. Para um latino-americano isso não faz muito sentido. Mas deve ser levado em consideração para uma análise mais realista.

Um bom olhar sobre a história russa compreende o desejo de “homens fortes” para comandar o país. E Vladimir Putin ocupou esse lugar. E o mais importante: compreendeu o papel da geopolítica e o que espera o atual grupo que controla o país. Um regime change seria de fundamental importância para ter afastado Putin do comando do Kremlin e permitir a ascensão de liberais e levar a “democracia” ao país. O Ocidente saudaria tal processo.

Contudo, Putin teve a capacidade de entender o momento e obter ganhos políticos ao longo de todo esse tempo. Seus métodos nada democráticos são muito criticados pelo Ocidente, mas com uma breve recapitulação histórica são os mesmos utilizados pelos próprios EUA e seus aliados quando necessário para garantir seus interesses em vários países ao longo do século XX. Mas, apesar do capitalismo ou do que parece ser capitalismo, a Rússia ainda possui uma “tradição” soviética de poder. A despeito das eleições, partidos políticos etc. Controle, monitoramento da oposição dentro de limites aceitáveis para o regime e, quando necessário, “medidas drásticas” contra os que “fogem da linha” ainda são as mesmas da era soviética.

A dinâmica geopolítica do pós-Guerra Fria precisa ser finalizada com a implantação de um governo “amigo” ao Ocidente e/ou ao enfraquecimento estratégico definitivo de Moscou ou, ainda, incentivar o separatismo interno. Não há sentido na existência da Otan até os dias hoje sob o ponto de vista da segurança europeia. A sua criação foi derivada do medo de expansão do bloco soviético para a Europa Ocidental em 1949. Sua existência não se sustentaria sob o senso comum, mas sob a geopolítica sim.  A Rússia continua como uma “herança soviética” e que representa um grande perigo pelo tamanho, capacidade militar e, até mesmo, tecnológica aos EUA e seus aliados. A paranoia comunista continua a habitar as mentes dos estrategistas de Washington para a alegria da indústria bélica ou incentivada por ela.

Isso explica a expansão consistente e permanente da Otan sobre o leste europeu ao longo dos últimos 30 anos. A invasão da Ucrânia não começou em fevereiro de 2022, mas em 2014 com a deposição do aliado russo em Kiev, o presidente Viktor Yanukovych. Ele seguia a cartilha geopolítica do Kremlin, ou seja, contrário ao avanço do Ocidente sobre a periferia geopolítica imediata russa. Notando a movimentação das peças no tabuleiro geopolítico, Vladimir Putin tomou a iniciativa da ofensiva e conseguiu obter de volta a Crimeia, doada aos ucranianos nos anos 1950 pelo então líder soviético Nikita Kruschov e de população majoritariamente de idioma russo.

A movimentação de Putin pegou o Ocidente desprevenido e surpreendido pela pró-atividade em não permitir uma expansão tão rápida e fácil do Ocidente. Há muito Moscou vendo fazendo inúmeras declarações contrárias a essas tentativas. Todas desprezadas solenemente. E chegamos ao atual momento de impasse.

Este ano (seria uma coincidência?) chegamos aos 60 anos da Crise dos Mísseis. Os EUA não queriam ninguém próximo à sua periferia geopolítica imediata com armas convencionais e muitos menos nucleares, como uma base soviética no Caribe e distante poucos minutos do território estadunidense. E Washington pressionou ao máximo Moscou que concordou em retirar as armas para não provocar um conflito de proporções mundiais. Em 2022, os EUA assistem a mesma ênfase russa para proteger sua segurança. Mudou alguma coisa? Certamente as leituras estão corretas à luz da geopolítica e da estratégia por parte da Rússia também.

Outro aspecto importante e que é derivado da “marcha para o leste” da Otan foi a “amizade sino-russa” que se concretizou. Nem durante a Guerra Fria tal união foi possível, pelo contrário. Os dois gigantes dividiram mentes e corações na compreensão de como deveria se construído o Socialismo. No século XXI isso foi construído a partir da postura beligerante de Washington para desespero de alguns analistas estadunidenses mais lúcidos. Beijing e Moscou concordam com um mundo com vários polos de poder. Sendo a China uma expectadora privilegiada do conflito: detecta as reações ocidentais ao expansionismo russo para compreender melhor o que pode vir em relação a Taiwan no futuro.

Ao contrário do que a grande mídia procura ocultar existe realmente uma queda de braço entre Rússia e Otan. E o que mais chama a atenção foi a reação desproporcional à invasão russa. Não há dúvida que uma invasão é um fato deplorável e com consequências terríveis para a população mundial. Contudo, vale a pena lembrar que invasões e guerras já foram e são praticadas pelo EUA e seus aliados, por exemplo. Em nenhum desses casos a UE ou Washington se dispôs a colocar sua máquina política e econômica para impedir massacre e violações dos Direitos Humanos de palestinos, por exemplo.

No âmbito das sanções econômicas, elas jamais surtiram efeitos contra as nações consideradas inimigas pelo Ocidente. Seus danos são irreparáveis à sociedade levando populações ao sofrimento. A declaração patética de Boris Johnson de “varrer a Rússia da economia mundial”, já demonstra o seu conhecimento pequeno da integração econômica global. Os mercados sentirão os efeitos nos próximos meses da “cruzada ocidental” pelos (seletivos) direitos humanos. Vale a pena pagar um preço tão alto para subjugar Putin e a Rússia? Há limite para o cinismo Ocidental?

 

A Ucrânia, os direitos humanos e o cinismo Ocidental (diplomatique.org.br)

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