Novos ventos no Oriente Médio? A China e o restabelecimento de relações entre Arábia Saudita e Irã by Mateus Santos

O tema da vez no Oriente Médio é o restabelecimento de relações diplomáticas entre Riad e Teerã. Sob a mediação chinesa, antigos adversários regionais deram um relevante passo no intuito de uma possível estabilização do Golfo Pérsico, sendo possível aspirar consequências que atravessam as fronteiras dessa estratégica região petrolífera.

No documento assinado pelas representações dos três países, soberania e não-ingerência deram o tom de um episódio que tende a representar uma importante vitória diplomática da China diante de uma região historicamente moldada pelos interesses estadunidenses nas últimas décadas. No mesmo sentido, a costura efetivada por Pequim sinaliza sua capacidade de influência e seu papel dentro de um processo de diversificação das relações exteriores de atores historicamente vinculados aos interesses Ocidentais na região, como o caso da Arábia Saudita.

Para refletir acerca da importância desse processo em nível regional e global, este texto analisa a dimensão histórica dessa movimentação diplomática, apontando-a como um fenômeno que representa, ao mesmo tempo, a consolidação de constrangimentos sistêmicos que estruturam as relações internacionais do Oriente Médio nas últimas duas ou três décadas e, ao mesmo tempo, a possibilidade de estarmos diante de uma nova e talvez inédita página capaz de reorganizar todo um subsistema regional.

Uma página virada? Sauditas e Iranianos na Geopolítica do Oriente Médio

Uma das primeiras faces da dimensão histórica de tal acordo é constituir um possível ponto de encontro no interior de uma trajetória de significativos desencontros nas últimas quatro décadas. Desde a Revolução Islâmica de 1979, o Irã constituiu uma das principais ameaças ao conceito de segurança regional da Arábia Saudita. Tornando-se um referencial Estado Xiita em Nível Regional, o regime dos Aiatolás materializaria uma perspectiva institucional alternativa do islã político frente ao tradicional papel cumprido pela monarquia Wahabita no Pós-Guerra.

As diferenças doutrinárias e ideológicas foram acompanhadas por disputas no campo da Geopolítica, opondo os dois Estados em diferentes cenários de guerra civil ou conflitos interestatais contemporâneos, a exemplo das Guerras entre Irã e Iraque nos anos 1980 e conflitos mais recentes como na Síria e no Iêmen. Assumindo as respectivas condições de potência regional árabe e potência regional no Oriente Médio, Arábia Saudita e Irã constituem dois dos Estados mais importantes no desafio de estabilização das relações em nível regional. Para além das diferenças registradas em nível bilateral, os efeitos da Primavera Árabe diante de Estados que historicamente influenciaram os movimentos de constituição de um sistema regional (Síria e Egito) atribuíram às monarquias do Golfo, incluindo os sauditas, um maior peso na concertação das principais questões que ultrapassam as dimensões nacionais. Nesse sentido, questões como os controversos relacionamentos com Israel, as explícitas divergências com relação ao Irã e os desafios sistêmicos diante de processos como a rivalidade China e EUA impõem a tais Estados um papel relevante dentro da reorganização regional.

O Dragão Chinês entre os Falcões Verdes e o Gigante Persa

No interior de uma região influenciada diretamente pelos EUA desde pelo menos os anos 1970, a movimentação chinesa expõe uma tendência importante na Geopolítica do Oriente Médio. Apesar de não ter perdido completamente a capacidade de incisão sobre alguns dos principais atores, a exemplo de Israel e da própria Arábia Saudita, a presença estadunidense na região parece sofrer de um declínio, acompanhando a tendência sistêmica de corrosão da sua hegemonia global. Além de episódios recentes como o fracasso da estratégia Ocidental na Síria, a sobrevivência iraniana em meio às crescentes sanções econômicas e a retirada das tropas no Afeganistão, o acordo entre Arábia Saudita e Irã expõe o aprofundamento de uma tendência de diversificação das relações externas dos mais fiéis aliados de Washington na região.

Esse movimento se iniciou ainda na primeira década deste século. Entre os árabes, países como o Egito já evidenciavam o interesse de estabelecer novas perspectivas quanto à sua inserção internacional desde os últimos anos do Governo Mubarak, ensaiando uma aproximação com diversos atores emergentes, inclusive Brasil e China. Tal tendência sobreviveu aos tortuosos ventos da Revolução e da Contrarrevolução no Egito, inspirando novos componentes complexos no relacionamento externo daquele que foi uma das principais conquistas da política estadunidense para a Região. No caso saudita, tal processo também remonta ao menos duas décadas atrás. Assumindo a condição de um dos potenciais atores capazes de liderar um processo de reconstrução da região após o fim da hegemonia do Egito nos anos 1960, Riad transitou entre a manutenção de seus laços com os EUA numa perspectiva securitária e alguns ensaios de aproximação com outros atores, sobretudo os países em desenvolvimento. Em relação a China, as relações contemporâneas remontam ao menos o final dos anos 1990, num movimento de crescente aproximação a partir de interesses comerciais, como o fornecimento de petróleo saudita para Pequim.

A presença chinesa em meio a dois antigos rivais expõe as dificuldades estadunidenses em reforçar sua presença regional. No contexto da Guerra da Ucrânia, os esforços do governo Biden em afastar a Rússia da Região se mostraram frustrados, inclusive na Arábia Saudita e também no Egito. Longe de afirmar que isso representa uma guinada dos principais Estados da Região na direção de uma aliança estratégica com Pequim e Moscou, superando a influência dos EUA, os últimos eventos evidenciam as complexidades envolvendo o xadrez geopolítico do Oriente Médio, em sintonia com um quadro de transformação no sistema mundial.

Um Novo Sistema Oriente Médio?

Em língua portuguesa, estudos como o de Silvia Ferabolli em Relações Internacionais do Mundo Árabe chamam atenção para os esforços estadunidenses ao longo dos anos 1990 em construir um subsistema regional que, diante do fracasso dos projetos de integração e estabilização do mundo árabe, incluíssem outros atores à margem de tal fronteira cultural, a exemplo de Israel. Ainda que tal projeto não tenha possuído êxito, as suscetíveis pressões sistêmicas evidenciaram o fracasso dos atores regionais em construir um projeto de inserção coletiva autônoma, em que pese o relativo êxito de determinados movimentos de diversificação individual.

Diante da iniciativa chinesa na costura de uma aproximação entre Sauditas e Iranianos, uma ambiciosa questão a ser colocada é se estamos diante de uma ação que se pode direcionar para a formação de um novo sistema regional? Como toda análise contemporânea a um determinado fato, ainda não é possível dimensionar com precisão o alcance e a efetividade de tal acordo. Contudo, a vitória chinesa no Golfo Pérsico salienta a capacidade de sua diplomacia em incidir sobre um conturbado relacionamento, apresentando uma perspectiva distinta daquela que predominou sob a liderança estadunidense na região. No velho bordão, é preciso aguardar as cenas dos próximos capítulos. Capítulos esses de uma narrativa que parece estar longe de um ponto final sólido.

Mateus Santos é pesquisador do LabGRIMA e doutorando em História/UFPEL

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