Waters sim

Mão dadas e o apelo de Roger Waters. Sejam humanos! Foto: Marcos Corbari

Por Cadré Dominguez

Choveu! Depois de um dia azul, por volta das 22hs às nuvens alaranjadas ocuparam a circunferência acima do estádio Beira-Rio, em Porto Alegre, no último dia de outubro. Abaixo, um dos espetáculos mais originais do universo do rock fazia sua última apresentação no Brasil, antes de ir para Montevideu, onde o baixista da mítica banda inglesa Pink Floyd, Roger Waters fará seu espetáculo Us+Them, em 3 de novembro, o dia em que eu nasci.

O quarto Roger Waters a gente não esquece. No Beira-Rio, melhor ainda. É muito fácil chegar e sair do estádio da capital gaúcha. Com chuva, a narrativa musical-poética-visual-crítica do Floyd ganha uma moldura épica.

Após o ótimo show de abertura do gaiteiro Renato Borghetti e sua trupe, um jazz fusion poderoso e simpático ao público, o palco começou a ser preparado para duas horas e meia de fortes emoções. Elas começariam pontualmente as 21 horas.

Um pouco antes, o mega-telão foi tomado por uma cena de praia, com direito a barulhos de gaivotas, onde uma mulher de véu, sentado de costas, mirava o horizonte durante 15 minutos. Aos poucos, a excelente banda começou a ocupar o palco e os acordes de Speak to me provocaram os primeiros gritos da plateia de quase 50 mil pessoas. O telão explodiu com imagens do universo mescladas a uma esfera prateada. Era a deixa para Breathe, levada instrumental esfuziante que tradicionalmente abre os shows.

A viagem sonora passou pelos clássicos do álbum The Dark Side of The Moon, One of These Days, seguida de Time e Welcome to the Machine. O que você faria aos 75 anos. O músico inglês cantou com uma voz ainda potente, tocou baixo com suas linhas rítmicas que estabeleceram um padrão Pink Floyd e até guitarra, uma cena rara de se ver. Waters circulou nas laterais do palco, conclamando a plateia que respondia ao compositor e alma criativa da banda criada em 1965. Um sucesso aterrorizante de quase 50 anos que tornou o repertório, a fusão milimétrica de som e imagem, a ácida crítica social conhecida em todo o mundo.

Acompanhando Roger Waters uma banda espetacular. Começando pelo multi-instrumentista John Carin, que consegue a proeza de tocar seus teclados com David Gilmour, guitarrista do Floyd e também com Waters. Falando em Gilmour, os guitarristas Jonathan Wilson e Dave Kilminster dão conta do recado e brilham nos longos solos característicos do Floyd. Kilminster assume os vocais que na banda eram de Gilmour de forma competente. Ele lembra muito o visual do guitarrista símbolo do Floyd. E toca muito.

As duas cantoras Jess Wolfe e Holly Leassig, do grupo indie Lucius brilharam na empolgante Great Gig in the Sky, com uma interpretação impecável das vocalizações da canção sem letra. As duas ainda tocam tambores em Time. Um baterista, um baixista e mais um tecladista completam o time que executa as canções de forma perfeita.

O último trabalho solo do baixista, Is This the Life We Really Want? aparece em três músicas carregadas de crítica social: Déjà Vu e The Last Refugee e a raivosa Picture That, onde Waters troca o baixo pela guitarra. Em The Last Refugee, a imagem do início do show volta com a mulher da praia, uma dançarina que sofre por uma filha ausente e embala bonecas em meio a ruínas. As questões dos conflitos no oriente médio são tema recorrente na carreira do britânico, assim como ao imperialismo britânico, norte-americano, guerras, massacres de populações civis e mega-corporações multinacionais. Logo depois o estádio canta Wish You Were Here. Poucas canções tem um efeito de catarse tão forte quanto está canção entoada em um coro de 50 mil vozes.

O primeiro clímax de um espetáculo milimetricamente elaborado levou a multidão para o sombrio mundo de The Wall. O muro recebeu 12 crianças no palco com capuzes pretos e macacões laranja dos prisioneiros das cadeias dos EUA. Recado forte e certeiro. The Happiest Days of Our Lives, Another Brick in the Wall, Part 2, e Another Brick in the Wall, Part 3 transformaram o gramado e as arquibancadas do Beira-Rio em um congraçamento coletivo. A palavra RESIST tomou o telão e Waters agradeceu a presença das crianças do projeto Ouviravida – Educação Musical Popular, iniciativa do ensino musical de 180 crianças da Vila Pinto, no bairro Bom Jesus, em Porto Alegre. No intervalo o telão continuou a mandar mensagens contra a quem o público deveria resistir, inclusive as inúmeras lideranças neo-fascistas que surgem no mundo todo, inclusive no Brasil, com uma tarja preta. Citados Donald Trump, Binyamin Netanyahu, Mark Zuckerberg.

O céu alaranjado já estava coberto de nuvens e os primeiros raios rasgaram o céu. O show voltou com dogs e pigs. Em meio a sirenes e luze o telão trouxe a conhecida imagem da usina imortalizada na capa do álbum The Animals. Chaminés surgem em um estrondo ensurdecedor de tijolos quebrando e ultrapassam o telão, em uma fantástica junção de cenário com imagens eletrônicas. Tinha até fumaça. As músicas Dogs e Pigs (Three Different Ones) levaram a multidão à loucura, com os balões de porcos. O maior foi lançado à plateia. Os dois guitarristas solavam forte e a chuva se intensifica. Todo o estádio era um espetáculo só. Com a execução de Eclipse uma pirâmide de laser foi projetada no meio da pista em frente ao palco. O prisma era formado e os raios cortavam os céus de Porto Alegre.

O show foi encurtado pela chuva. Waters encaminhou Comfortably Numb, canção do disco The Wall. A plateia cantava junto. A chuva ficava mais forte e as guitarras solavam desvairadas. Eram 23h30min quando o espetáculo se encerrou e a imagem do telão mostrou a mulher enfim encontrando, na praia deserta, a filha que esperava. Roger Waters choveu em Porto Alegre, luz, sons e palavras em doses fortes, harmônicas e provocativas como poucos humanos sabem fazer. E pediu que os humanos cuidassem uns dos outros. Simples, porém sincero. Mão com mão. Hasta siempre!

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