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HYPOSKILLIA: UM NOME ESTRANHO PARA UMA SITUAÇÃO MAIS FREQUENTE DO QUE IMAGINAMOS

Por Ana Lucia Coradazzi:

Há alguns dias chegou às minhas mãos o artigo do Dr. Herbert L. Fred, intitulado Hyposkillia publicado pelo Texas Heart Institute Journal. Pensei comigo: “Que síndrome estranha… nunca ouvi falar disso!” E comecei a ler o texto, por pura curiosidade. Logo no primeiro parágrafo percebi que já ouvi falar da tal hyposkillia, e não foram poucas vezes. Trata-se de uma séria “deficiência em habilidades clínicas”, que o Dr. Fred definiu como a incapacidade do médico em oferecer uma boa assistência aos seus pacientes. São profissionais que, embora tenham cumprido normalmente a extensa carga horária da graduação em Medicina e quase sempre também a dos anos de residência médica, não são capazes de extrair adequadamente a história clínica dos seus pacientes, executar um bom exame físico, associar seus achados a diagnósticos pertinentes e propor uma estratégia terapêutica coerente. Sua habilidade em se comunicar com pacientes e familiares, em geral, é mínima, e sua prática clínica costuma se restringir a solicitar exames (dezenas deles) e oferecer procedimentos e medicações para corrigir os resultados encontrados. É precisamente exercendo sua profissão dessa forma que eles perdem a chance valiosa de aprender algo sobre a história natural das doenças e, mais importante ainda, sobre as pessoas que estão sob seus cuidados.

Ainda nos meus anos de faculdade, ouvi muitas vezes de meus professores a máxima “A clínica é soberana”. Eles insistiam (muito) para que desenhássemos todo um raciocínio clínico antes de solicitar um mísero hemograma. E perguntavam: “Você pediu esse hemograma esperando responder que pergunta?”. O acesso a quaisquer exames diagnósticos, está certo, era mais difícil. Tomografias computadorizadas eram solicitadas somente com autorização do docente, pois eram caras e demoradas. Ainda não dispúnhamos de ressonância magnética, muito menos de PET-scan, e a variedade de exames laboratoriais disponíveis era incrivelmente menor. A clínica era soberana não apenas porque era, mas porque precisava ser. Quando a tecnologia começou a ficar acessível através de um simples pedido, passamos a viver a ilusão de que a clínica – aquela, que dava trabalho, lembra? – talvez não fosse assim tão necessária. Para que examinar o abdome de alguém, se a tomografia nos mostra cada órgão detalhadamente em poucos minutos? Para que perder tempo pensando em cada exame laboratorial a ser solicitado, se temos pedidos-padrão para cada queixa clínica? Foi assim, ano após ano, que fomos perdendo nossa capacidade de extrair dos pacientes as informações que nos fariam compreender o que está acontecendo com eles, e raciocinar de forma individual sobre que estratégia poderá ajudá-los. Deixamos de conversar com eles, de tocá-los, de estabelecer com eles a parceria que nos torna únicos em suas vidas. Nós migramos da medicina high-touchpara a medicina high-tech, sem perceber o quanto perdemos pelo caminho.

Durante meu último ano na faculdade, a tal hyposkillia ficou óbvia bem diante dos meus olhos. Orientada pelo Professor Doutor Mário Rubens Guimarães Montenegro, um desses mestres em Medicina que não vemos mais por aí, desenvolvi um trabalho no qual comparávamos os achados clínicos (história e exame físico) descritos nos prontuários dos pacientes com os achados de suas autopsias. As discrepâncias eram impressionantes em vários casos, mas lembro bem da nossa surpresa quando decidimos comparar a acurácia no diagnóstico de quadros neurológicos agudos, em geral acidentes vasculares ou tumores cerebrais. Nós avaliamos a capacidade dos médicos em levantar corretamente as hipóteses diagnósticas feitas à admissão dos pacientes, verificando à autópsia se estavam corretas. Fizemos isso com pacientes de dois períodos diferentes: 1975 a 1982, e 1992 a 1996. No segundo período, quando já dispúnhamos de tomografia computadorizada, os diagnósticos clínicos dos eventos cerebrais eram bem menos acurados que no primeiro! Em geral, víamos como hipótese diagnóstica algo como “hemiplegia direita a esclarecer” ou “convulsões”.

Sim, a tecnologia nos deixou mais preguiçosos. Assim como a invenção do controle remoto. No entanto, não seria nem minimamente razoável imaginar que ter a tecnologia à disposição foi o que nos tornou médicos piores. O que nos fez menos capazes fomos nós mesmos. Foi nossa inabilidade em associar nosso raciocínio clínico, com toda sua complexidade e beleza, ao poder da tecnologia moderna. Fomos nós que substituímos o primeiro pela segunda, em vez de fazê-los caminhar de mãos dadas. A boa notícia é que cabe também a nós dar alguns passos numa nova direção. Todos nós, mesmo os que não foram treinados à luz da bendita “A clínica é soberana”, temos a inteligência e a capacidade necessárias para praticar a medicina em sua forma mais soberba: aquela que é feita pelo paciente e para o paciente. Bem ao estilo Slow Medicine.

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Fonte: https://www.slowmedicine.com.br/hyposkillia-um-nome-estranho-para-uma-situacao-mais-frequente-do-que-imaginamos/

Ana Lúcia Coradazzi: Sou médica, graduada pela Faculdade de Medicina de Botucatu – UNESP. Concluí a residência médica em Hematologia e Hemoterapia na UNESP e, posteriormente, a residência em Cancerologia Clínica no Hospital Amaral Carvalho, em Jaú/SP. Foram o imenso desconforto e a sensação de impotência ao lidar com pacientes em sua fase final de vida que me levaram a cursar uma pós-graduação em Medicina Paliativa pelo Instituto Pallium, em Buenos Aires, o que mudou de forma irreversível os rumos da minha vida. Criei a Unidade de Controle da Dor e Cuidados Paliativos do Hospital Amaral Carvalho, onde permaneci como coordenadora até outubro de 2015. Atualmente sou responsável pela equipe de Oncologia Clínica da Faculdade de Medicina da UNESP, em Botucatu, e sou médica do Centro Avançado em Terapias de Suporte e Medicina Integrativa (CATSMI) do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo.
Sou autora do livro No Final do Corredor e do blog homônimo, nos quais escrevo sobre o quanto nosso envolvimento nas histórias de vida dos pacientes pode ser transformadora, principalmente para nós mesmos.
Moro em Jaú, no interior de São Paulo, com meu marido Fábio e as duas luzes da minha vida, Mariana e Lorena, além da minha coelha de estimação, Julieika. Junto deles, busco o equilíbrio de que tantos dos meus pacientes falam, encontrando na corrida e na prática do yoga a paz que preciso para manter a mente saudável.

Publicado em 07/02/2019, na categoria Notícias.