Desde sua independência em 1956, o Sudão enfrentou sucessivos regimes militares, sendo o mais duradouro o de Omar Al Bashir, que permaneceu no poder por 30 anos.
Durante esse período, Bashir financiou uma força paramilitar conhecida como Janjaweed, composta majoritariamente por homens de origem árabe, com o objetivo de contrabalançar o poder das forças armadas. Nos anos 2000, essa milícia ganhou força ao se envolver no conflito em Darfur, onde lutou em nome de Bashir contra grupos rebeldes. A atuação dos Janjaweed resultou em uma onda de violência em massa, marcada por acusações de limpeza étnica contra comunidades não árabes, levando à denúncia de Bashir pelo Tribunal Penal Internacional (TPI). (BBC, 2024)
Posteriormente, os Janjaweed foram transformados nas Forças de Apoio Rápido (RSF). Em 2019, Bashir foi deposto após intensa mobilização popular, e o país iniciou uma tentativa de transição de um regime militar para um sistema democrático, com protagonismo da sociedade civil e apoio das Nações Unidas. No entanto, o acordo mediado pela ONU exigia que as RSF fossem incorporadas às Forças Armadas Sudanesas (SAF). Essa proposta encontrou resistência, já que as diferenças étnicas e culturais entre os grupos eram profundas, e a RSF não aceitava ficar subordinada à SAF. (Jamestown, 2023)
Em 2021, o Sudão sofreu um golpe de Estado, fruto da aliança entre o líder das SAF, Abdul Fattah El Burhan, e o comandante das RSF, Mohamed Hamdan Daglo (Hemedti). Essa aliança, inicialmente conveniente, transformou-se gradualmente em rivalidade, culminando em novo conflito interno em 2023. A capital, Cartum, tornou-se o epicentro da violência, desencadeando uma crise humanitária de proporções devastadoras.
Em entrevista à BBC, o ex-ministro britânico para o Desenvolvimento da África, Andrew Mitchell, declarou que “os desdobramentos em Darfur – cidade sudanesa dominada pela RSF – possuem todas as marcas de uma limpeza étnica”. Atualmente, o conflito já provocou um dos maiores deslocamentos populacionais do mundo, com quase um quarto da população sudanesa forçada a fugir devido à guerra e à fome generalizada. (Magnólia, 2024)
O Sudão, além de palco de disputas internas, tornou-se alvo de interesses externos estratégicos. O país é rico em petróleo e ouro e ocupa posição geográfica privilegiada, sendo considerado uma “ponte” entre a África e o Oriente Médio. Desde o início do conflito, o grupo mercenário Wagner, financiado pelo Estado russo, forneceu armas a ambos os lados em troca de recursos naturais. Hoje, cerca de 90% da produção aurífera sudanesa é exportada para a Rússia, ampliando sua influência na região. Paralelamente, os Emirados Árabes Unidos (EAU) foram acusados por organizações internacionais, como a ONU e a Anistia Internacional, de vender armas à RSF para expandir sua influência no Chifre da África — acusação negada pelo governo emiradense. O Egito, por sua vez, apoiou o golpe de 2021, alinhando-se às SAF em 2023, por considerar a estabilidade sudanesa crucial para a segurança do Rio Nilo. Contudo, sua dependência econômica dos EAU tem limitado o apoio. Já a Arábia Saudita vem adotando postura diplomática mais neutra, buscando preservar a segurança do Mar Vermelho, rota comercial vital para sua economia. (CNN, 2025)
Assim, a tragédia sudanesa revela-se muito mais do que uma disputa interna: trata-se de um complexo tabuleiro de interesses geopolíticos e econômicos. A abundância de ouro e petróleo, somada à localização estratégica do país, torna-o peça central no cenário internacional. Enquanto a população sudanesa enfrenta uma crise humanitária sem precedentes, potências externas exploram o conflito como oportunidade para expandir poder e riqueza.
Referências:
BBC News. Como ouro virou “maldição” para o Sudão e alimentou confrontos com dezenas de mortos. 18 abr. 2023. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/articles/c1eke89wllno>. Acesso em: 12 nov. 2025.
CNN Brasil. Entenda a influência de países estrangeiros no conflito do Sudão. 09 nov. 2025. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/o-que-se-sabe-sobre-a-influencia-estrangeira-no-conflito-do-sudao/>. Acesso em: 13 nov. 2025.
JAMESTOWN. Gold, Arms, and Islam: Understanding the Conflict in Sudan. 28 abr. 2023. Disponível em: <https://jamestown.org/gold-arms-and-islam-understanding-the-conflict-in-sudan/>. Acesso em: 12 nov. 2025.
CNN Brasil. O que está acontecendo no Sudão? Entenda guerra que devasta o país africano. 31 out. 2025. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/o-que-esta-acontecendo-no-sudao-entenda-guerra-que-devasta-o-pais-africano/>. Acesso em: 12 nov. 2025.
BBC News Brasil. Sudão: por que uma das guerras mais violentas do mundo atrai menos atenção do que outros conflitos? 15 fev. 2024. Disponível em: <https://youtu.be/guh_NYp3SrM?si=SYWTiDAJIlxyJTDc>. Acesso em: 12 nov. 2025.
DIAS, Alexandra Magnólia. Sudão: uma guerra sem fim à vista. Relações Internacionais, n. 84, 2024.
* Maria Eduarda Motta é pesquisadora no LabGRIMA
