A Rota da Seda Digital (Digital Silk Road — DSR) constitui, na prática, um vetor de projeção normativa e infraestrutural cuja eficácia geopolítica depende diretamente da existência de um corpus jurídico nacional que legitime e operacionalize, interna e externamente, a soberania digital chinesa.
Sob essa premissa, a DSR para além de ser um conjunto de projetos físicos — incluindo cabos submarinos de alta capacidade, centros de dados distribuídos e redes 5G de última geração —, converge também como mecanismo de difusão de modelos regulatórios: ao exportar estrutura informacional e tecnológica, Pequim simultaneamente promove padrões administrativos e obrigações legais que se coadunam com a doutrina da “soberania cibernética” — ou seja, a ideia de que Estados detêm competência plena para disciplinar fluxos de dados e operar restrições de segurança dentro de seus territórios.
Essa ténue articulação entre projeto infraestrutural e regulação normativa torna a recente emenda à Lei de Cibersegurança aprovada em 28 de outubro de 2025 particularmente relevante: a introdução de um artigo específico sobre inteligência artificial (IA) — com dispositivos destinados a apoiar pesquisa, criar infraestrutura de dados, disciplinar algoritmos, impor normas éticas e instituir mecanismos de monitoramento e avaliação de riscos — converte o aparato normativo doméstico em instrumento de política externa tecnológica. Outrossim, a emenda operacionaliza competências administrativas (avaliação de impacto algorítmico; auditorias de conformidade; exigências de rastreabilidade de dados sensíveis) e reforça a coerência entre o regime da Lei de Cibersegurança, a Lei de Segurança de Dados e a Lei de Proteção de Informações Pessoais (China.org.cn; SCIO/State Council Information Office, 2025). Destarte, essa estrutura normativa assegura a base jurídica necessária para que contratos, padrões de certificação e regimes de interoperabilidade estabelecidos no âmbito da DSR sejam amparados por obrigações legais exequíveis.
No âmbito regulatório, a legislação funciona como mecanismo de exportação de normas e padrões, ou seja, países que recebem investimentos DSR são convidados a adotar modelos de governança que priorizam territorialidade e controles de transferência de dados, o que cria padrões técnicos-jurídicos compatíveis com o ordenamento chinês e, assim, reduz custos jurídicos e operacionais para fornecedores e operadores. (DINH TON; VU, 2025) No continente africano, particularmente, a DSR materializa‑se através de cooperações bilaterais e multilaterais com Estados como Quênia, Nigéria, Etiópia e Ruanda, voltadas à implementação de redes 5G, centros de dados, cabos submarinos e iniciativas de cidades inteligentes, inserindo‑se em um quadro de soberania tecnológica compatível com os requisitos chineses de regulação digital (Agbebi, 2021). Em consequência, a emenda de 2025 à legislação da Cybersecurity Law of the People’s Republic of China — ao institucionalizar a supervisão estatal sobre sistemas de inteligência artificial (IA) — mitiga as incertezas regulatórias em projetos da Digital Silk Road que envolvem análise massiva de dados, computação em alto desempenho e serviços de nuvem, permitindo que contratos internacionais contemplem cláusulas de conformidade baseadas em mandatos e obrigações previstos pela própria legislação chinesa (NPC, 2025).
No plano da segurança jurídica internacional, a conjugação entre DSR e a nova emenda cria dois efeitos geopolíticos principais: (1) padronização: a China passa a dispor de normas domésticas com efeito regulatório extraterritorial implícito sobre entidades que operem em redes conectadas à sua infraestrutura, o que permite a exportação de regimes de certificação, auditoria e responsabilização coletiva; e (2) fragmentação normativa: o fortalecimento de um modelo sino-soberanista incrementa os custos de interoperabilidade com regimes jurídicos que adotam princípios contrários (por exemplo, fluxos quase-livres de dados ou proteções individuais de tipo GDPR — “Regulamento Geral de Proteção de Dados” da União Europeia), provocando uma reconfiguração da arquitetura legal internacional do ciberespaço e abrindo espaço para blocos normativos concorrentes (NPC, 2025).
Nesse panorama, o bloco BRICS promove um projeto de caráter excepcionalmente ambicioso: a implantação de uma rede própria de cabos de fibra óptica conectando integralmente seus Estados-membros, destinada a reduzir a dependência das infraestruturas de comunicação dominadas por Estados Unidos e aliados, projetando uma resiliência digital estratégica e consolidando autonomia tecnológica em escala global (BRICS Today, 2025). Simultaneamente, a cooperação em 5G, liderada por China e Índia em articulação com empresas russas e brasileiras, busca expandir a cobertura, a confiabilidade e a segurança da rede móvel, sinalizando a possibilidade de definição de padrões tecnológicos independentes e competitivos internacionalmente (DrishtiIAS, 2020). Infere-se, por fim, que a integração dos sistemas de navegação GLONASS e BeiDou — russos e chineses, respectivamente — aliada ao desenvolvimento de centros de dados regionais e serviços de computação em nuvem e satélite, reforça a soberania digital do bloco, diminui a dependência de provedores norte-americanos e projeta os países integrantes do BRICS como protagonistas da infraestrutura digital global do futuro (InfoBRICS, 2025)
REFERÊNCIAS:
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* Victória de Aquino é pesquisadora do LabGRIMA
