Kim Jiyoung, nascida em 1982: uma vida atravessada pelo patriarcado 

Por Cho Nam-Joo, a obra convida à reflexão e percorre uma vida marcada pelo machismo

 

Capa de “Kim Jiyoung, Nascida em 1982”. Fonte: Reprodução/Amazon/ Em Pauta

 

Martha Cristina Melo / Em Pauta 

 Atravessada por raça, classe socioeconômica e cultura, a pluralidade feminina nos impede de resumir a vivência de uma com base em tantas outras. Entretanto, é possível apontar uma similaridade entre tantas experiências: não há mulher no mundo que não tenha sido afetada, de alguma forma, pelas estruturas patriarcais. Da infância à fase adulta, crenças e estigmas acompanham a vida daquelas que são criadas para cuidar.

Ao narrar a história de Kim Jiyoung, Cho Nam-Joo escancara, em sua obra best-seller, o comportamento machista e suas raízes na sociedade. Traduzido por Alessandra Esteche e publicado no Brasil pela Intrínseca, “Kim Jiyoung, Nascida em 1982” narra a vida de uma sul-coreana comum: casada, Jiyoung vive com marido e filha nos arredores de Seul e, à medida que é engolida pela rotina doméstica, recebe olhares e julgamentos a todo momento.

Parte da contracapa de “Kim Jiyoung, Nascida em 1982”. Fonte: Em Pauta.

 

 

Uma luta em comum

“Jiyoung, como Gregor Samsa, de A metamorfose, se sente tão massacrada pelas expectativas sociais que não há espaço para si mesma dentro do próprio corpo; sua única opção é se tornar alguma outra coisa — ou pessoa.” A citação do The New York Times, presente na contracapa do livro, nos introduz ao início da obra. No outono de 2015, aos 34 anos, Jiyoung passa a apresentar um comportamento estranho: em determinados momentos, a protagonista encarna sua mãe, sua colega de faculdade, ou qualquer outra mulher que tenha passado por sua vida. Após uma consulta com o psiquiatra, o romance remonta a vida da personagem, construindo um histórico que destrincha desde a infância de Jiyoung, até sua fase adulta.

Narrado em terceira pessoa, assim, uma das primeiras lembranças que conhecemos já é permeada pela disparidade de gênero. Quando crianças, Jiyoung e sua irmã mais velha já eram tratadas de maneira diferente em relação ao irmão caçula. Enquanto o menor tinha prioridade em todos os sentidos, as mais velhas comiam por último, dividiam o quarto para que o caçula tivesse o próprio e contribuíam, ainda que muito novas, para a criação do pequeno.

Para além da protagonista, a obra faz um excelente trabalho ao remontar brevemente a experiência da mãe de Jiyoung, Oh Missok. A personagem nascera em uma época em que a Coreia do Sul, ainda que tradicionalmente agrícola, vinha se industrializando rapidamente. Em um contexto onde acreditava-se que era responsabilidade dos filhos homens trazer honra e prosperidade para a família, Oh Misook e sua irmã, ainda muito jovens, já trabalhavam para custear os estudos dos irmãos. Com esperança de que sua vez de estudar, desbravar o mundo e ser reconhecida pela família chegaria, em determinado ponto, Misook é obrigada a encarar a realidade.

 

“(…) o mais velho foi louvado por ser o primogênito responsável que levou honra e amparo à família por meio do próprio sucesso. Oh Misook e sua irmã só então perceberam que a vez delas não chegaria. Sua família amorosa não lhes daria a oportunidade e o apoio para que se realizassem profissionalmente”. 

 

Durante a vida, Jiyoung não presenciou grandes mudanças em relação ao estilo de vida que estava acostumada. Durante a adolescência, os problemas envolviam punições após as estudantes se manifestarem ao serem assediadas. Já no mercado de trabalho, era impossível fugir do “papel da mulher”: ainda que se desdobrasse e assumisse o triplo de responsabilidades do que os funcionários homens, jamais fora considerada para uma promoção, com o pretexto de que, a longo prazo, não valeria a pena contar com alguém que engravidaria e deixaria o emprego.

 

O diagnóstico

Ao final, a obra toma novas direções e, ao revelar o verdadeiro narrador e psiquiatra responsável por avaliar o quadro de Jiyoung, entendemos que o diagnóstico pouco importa, já que o profissional é incapaz de se livrar dos estigmas que já é tão acostumado. Para ele, é natural a ocorrência de trajetórias como a da protagonista.

“Se eu fosse um homem comum de quarenta anos, teria passado a vida inteira sem adquirir essa consciência. (…) Francamente, é natural que os homens sigam sem saber, a menos que se deparam com as circunstância específicas com as quais me deparei, porque homens não são os principais atores no parto ou na criação dos filhos”.

Entende-se, por fim, que a fragmentação de Kim Jiyoung é reflexo de uma vida cheia de sofrimentos, decepções e expectativas frustradas, que ecoam dentro da personagem. Na verdade, Jiyoung é uma dentre tantas outras.

 

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