A reconstrução de um lugar sagrado

 

Bento Freitas, um templo de adoração.

por Michele Corvello; Rafael Lima; Rafael Duval

Quando o Grêmio Esportivo Brasil iniciou suas atividades em 1911, não possuía um local para chamar de casa. Teve algumas sedes e centros de treinamento, mas só em 23 de maio de 1943 foi inaugurado o Estádio Bento Freitas, também conhecido como a “Baixada”. A realização de um amistoso entre Brasil e Força Luz, de Porto Alegre marcou esse momento. O jogo foi considerado um grande acontecimento esportivo.

A torcida Xavante – já numerosa – comemorou emocionada a conquista do novo estádio. Esta nova casa foi erguida com a ajuda e esforço de sua torcida. Desde então a Baixada tem sido palco de partidas memoráveis e grandes triunfos e tudo acompanhado de perto por arquibancadas lotadas e agitadas pela maior, mais alegre e mais fiel torcida do interior gaúcho.

Atualmente o estádio xavante ocupa uma extensão de 29.730m², sendo que 23.254m² é de área construída – incluindo 4 bilheterias, 7 portões de acesso, 6 lanchonetes, 17 banheiros e 13 cabines de imprensa. Para os atletas profissionais são 3 vestiários, sala de musculação, sala do Departamento Médico, refeitório e alojamento com 10 dormitórios, além da sala de áudio, vídeo e de lazer. O Bento Freitas tem capacidade calculada para acomodar até 18.000 pessoas. Mas o recorde de público no estádio, registrado na épica campanha Xavante no Campeonato Brasileiro de 1985, ultrapassou (e muito) esse número.

Registro da construção do Estádio Bento Freitas (imagem: site GE Brasil)

Registro da construção do Estádio Bento Freitas (imagem: site GE Brasil)

O clássico rubro-negro

O dia era 18 de julho. Era a segunda fase da competição e o adversário era o Flamengo/RJ. O time carioca treinado por Zagallo tinha no elenco jogadores como Andrade, Bebeto e Zico. Havia vencido o Brasil uma semana antes, no Maracanã, pelo placar de 1 a 0, e estava em Pelotas para mais um duelo rubro-negro. O jogo causou um alvoroço na cidade e as bilheterias estiveram lotadas durante todo o dia. Às 18h foram abertos os portões e as filas para entrar na Baixada se estendiam por várias quadras. Devido à lotação garantida, por volta das 20h a Rede Globo anunciou, no Jornal Nacional, a transmissão da partida ao vivo para todo o país, inclusive para Pelotas. Foi um espetáculo. O Brasil venceu o jogo por 2 a 0 – gols de Bira e Júnior Brasília -, e encaminhou a classificação às semifinais. A vitória foi assistida por nada menos que 22 mil torcedores. Pagantes foram 16.498, o que resultou em uma renda de 126 milhões de Cruzeiros (Cr$ 126.470.000,00).

Além disso, a casa do Brasil também abriga todas as dependências dos setores administrativos e executivos do clube e a sede do Departamento Amador rubro-negro que possui secretaria e vestiários independentes, mais uma cancha de areia e um salão de festas. Sob o pavilhão social, o estádio ainda acomoda o ‘Salão de Honra’, um espaço decorado com as conquistas Xavantes e que é utilizado para as reuniões do Conselho Deliberativo e para realização de eventos institucionais.

Mas quem foi Bento Freitas?

Bento Mendes de Freitas foi um dos presidentes mais importantes do Grêmio Esportivo Brasil. À frente do clube entre 1939 e 1941, o dirigente deixou o legado imortalizado no rubro-negro por ser o idealizador da Baixada. Na época, o empreendimento proposto por Bento Freitas era considerado muito arrojado e pouca gente acreditava que a chamada ‘Praça de Esportes’ sairia do papel. Porém com muita dedicação, lutas intensas e até contrariedades naturais pelo risco do empreendimento, Bento Freitas teve a perseverança de levar o projeto adiante e transformar o sonho em realidade dando início às obras do estádio. Graças a esse desprendimento em dar ao rubro-negro um palco condizente com o passado e com as glórias do clube, o dirigente recebeu do GE Brasil, em um preito de admiração e de reconhecimento, um título honorífico e ainda uma eterna homenagem no batismo do local.

A queda

Em um jogo válido pela Copa do Brasil contra o time do Flamengo, no dia 25 de fevereiro de 2015, ocorre um incidente onde duas crianças saem feridas porque a arquibancada cedeu e então a Baixada é interditada. Busca-se uma solução para que o time volte a jogar na sua casa e a mais viável encontrada seria a demolição de mais de cem metros de arquibancada, com capacidade aproximada de 6 mil torcedores, para que fosse colocada ali uma estrutura móvel com capacidade em torno de 3,8 mil torcedores. Isso reduziria a capacidade real para uma média de 7 mil torcedores, metade da capacidade atual. A estrutura móvel seria provisória para que o time pudesse disputar jogos em casa até o final do ano quando seria construída uma arquibancada fixa.

Então, dia 17 de abril de 2015, o Bento vem ao chão. Começa a demolição e muito mais que cem metros de arquibancada, muita história guardada naquele local, muitas emoções vividas caem, o que causa na torcida um misto de sentimentos e cada um tenta guardar um pouquinho daquilo. A torcida começa a levar para casa pedaços de tijolos e concreto da velha arquibancada como uma forma de lembrança do que ali foi vivido. O sócio torcedor Rogério Santos se emociona ao segurar um pedaço do estádio em suas mãos.

– É um momento triste ver aquilo tudo indo ao chão. A gente sabe que será reconstruído e que se precisar esta torcida levanta um estádio com as próprias mãos, mas dói ver tanta história indo ao chão, impossível contar tantas vezes que vim ao estádio com meu pai, depois com meu filho e por último com meu neto. É uma coisa que se passa de geração em geração e a gente sempre ficava bem no meio da arquibancada que foi derrubada, muita coisa vivemos ali – afirma Rogério, emocionado.

Bento Freitas durante a reforma neste ano (imagem: Carlos Insaurriaga/GE Brasil/Divulgação)

Bento Freitas durante a reforma neste ano (imagem: Carlos Insaurriaga/GE Brasil/Divulgação)

Quando a torcida ergueu o estádio em 1943, jamais poderia imaginar a real dimensão que teria para o clube. Nunca imaginaria o que seria vivido ali por cada pai, cada filho, cada torcedor ou torcedora que colocasse os pés naquele local. Não é simplesmente a casa da torcida xavante é considerado um templo de adoração para a “A maior e mais fiel” – esse é um tipo de slogan da torcida Xavante. A frase resume a certeza de que os rubro-negros formam a maior torcida do interior do Rio Grande do Sul e que estes apaixonados pelo Brasil são os torcedores mais leais do estado gaúcho, colocando a equipe local sempre à frente de qualquer outra preferência clubística. Isso já caracteriza uma grande torcida, mas só esse slogan não é o suficiente para explicar o sentimento desse torcedor. Pois é simplesmente impressionante a paixão de cada rubro-negro pelo clube da Baixada e o espetáculo que ele proporciona a cada jogo. Sempre em massa, os Xavantes se fundem em uma torcida alegre, contagiante e que pula o tempo todo estremecendo as arquibancadas, os adversários e eletrizando o time do coração. Em dia de jogo na Baixada, a torcida do Brasil transforma o estádio no famoso ‘caldeirão Xavante’. É de arrepiar.

A paixão xavante

Com lágrima nos olhos o sócio torcedor Vinicius Saraiva, lembra das palavras de seu pai Antônio Silva Saraiva.

– Nunca vou esquecer as palavras do meu pai quando ele ficou doente e acamado e eu quis trazer ele aqui pela última vez para se despedir. Ele me disse: “Eu nunca vou me despedir deste estádio, nunca porque despedida é adeus e eu não quero guardar uma imagem de adeus, quero lembrar de lá todos os momentos e emoções que vivi” – conta Vinicius.

Herdeiro de uma família de Xavantes, o torcedor conta como começou essa paixão.

– Vou ao estádio desde os 4 ou 5 anos de idade. Ia com meu avô e depois com meu pai e isso aqui, esta paixão, é algo hereditário. Se Deus me permitir, passarei esta paixão para o meu filho. Este local aqui treme em dia de jogo, treme tanto que parecem as batidas do coração da gente.

A casa do Brasil de Pelotas (imagem: divulgação Diário da Manhã)

Os escombros retratam as batalhas e lutas travadas. Dentro do Bento Freitas só se tem duas opções: ou se é Brasil ou se é Brasil. O estádio respira, transpira e emociona. A reconstrução não é só da arquibancada, mas sim de todo o clube. Depois do trágico episódio do acidente com o ônibus da delegação, onde perdeu três membros da equipe e logo em seguida foi rebaixado e passou por momentos muito difíceis, o clube mostra que consegue dar a volta por cima, voltar à elite do futebol gaúcho e viver uma grande fase nos últimos semestres. A arquibancada é mais um passo de reestruturação do clube.

Se o futebol é mesmo uma forma de religião, como muitos falam, aqui o altar é o “Bento” que recebe o avô, o pai, o filho, os enamorados, homens e mulheres vestidos de vermelho e preto, cores sagradas neste local.

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