A Exploração de Marilyn Monroe

Estrelada por Ana de Armas, o filme que reimagina a vida de Marilyn Monroe chegou à Netflix em 28 de setembro e trouxe consigo uma carregada bagagem de polêmicas por trás, dentro e fora das câmeras.

Por Sarah Oliveira

Ana de Armas dá a vida a icônica atriz Marilyn Monroe no filme ‘Blonde’. (Foto: Netflix)

Seguramente não há uma pessoa neste mundo que não conheça o nome Marilyn Monroe e se não conhece, ainda irá conhecê-la. O triste é que esse momento pode ser através do horrendo filme de Andrew Dominik, ‘Blonde’, uma adaptação da obra homônima de Joyce Carol Oates. 

Quem nunca se perguntou como era a vida das atrizes hollywoodianas por trás das câmeras durante os anos dourados da maior indústria do cinema? Indústria essa que era – e ainda é em sua grande maioria – comandada por homens brancos ricos e poderosos, cuja reputação os precedem devido às inúmeras denúncias e relatos de diversos tipos de abusos vindo de suas partes. Apesar de ser um questionamento que vive no imaginário de centenas de milhões de pessoas, colocar ele em prática sem o mínimo de responsabilidade e respeito com a pessoa retratada resulta em uma obra repugnante de se ver do início ao fim – e este é o caso de ‘Blonde’.

A primeira polêmica

Há mais de 10 anos sendo pensado, o filme de Andrew Dominik só entrou de fato em produção em 2019 e desde essa época ele já dava o que falar devido a sua classificação indicativa: este seria o primeiro filme proibido para menores de 18 anos produzido e distribuído pela Netflix.

Classificado como “NC-17”, que nos EUA é tido como o maior nível de classificação indicativa que uma obra pode ter e consequentemente sofrer mais rejeição das salas de cinema para exibi-lo, o diretor e a atriz Ana de Armas, que interpreta Marilyn no filme, ficaram surpresos pelo longa receber uma classificação indicativa tão alta devido ao conteúdo sexual presente nele. Em uma entrevista, Ana diz que não entendeu[…] por que isso aconteceu. Eu posso te contar uma série de programas ou filmes que são muito mais explícitos e com muito mais conteúdo sexual do que Blonde”. Em contrapartida, quando questionado, o diretor disse que “[…] É um filme NC-17 sobre Marilyn Monroe, é meio que o que você quer, certo? Eu quero ir ver a versão NC-17 da história de Marilyn Monroe.”

Mas o que parece é que nenhum dos dois entendeu é que as cenas desse tipo de conteúdo presentes no filme não são “apenas” cenas de sexo, são cenas de violência e abuso físico, verbal e sexual completamente explicitas e gratuitas contra uma mulher cuja a história de abusos é amplamente conhecida, então não, senhor Dominik. Este não é o tipo de filme que quero ver sobre Marilyn, principalmente se esse filme vai violar ainda mais uma mulher altamente explorada durante a sua vida.

Além disso, não é somente doloroso aos olhos ver fictícias cenas de possíveis violências de todos os tipos à Marilyn, ver também encenações de momentos reais em que ela sofreu é ainda mais aterrorizante e desconcertante de se assistir, pois esse se torna mais um lembrete ao espectador de que a crueldade contra Marilyn não tem fim e muito menos limites. 

Para colaborar com esta matéria, conversamos com as jovens Tatiana Pereira e Alana Sousa, que entram de acordo quando perguntadas sobre o que acham do longa e suas recorrentes violências encenadas contra Monroe no longa. “Não consigo imaginar uma intenção real por trás dessas cenas, nem mesmo como uma vaga representação da indústria cinematográfica dos anos 50 serve. É absolutamente repugnante usar a história de vida de Marilyn para reproduzir sandices ficcionais como fatos.”, diz Alana. 

Já Tatiana se refere ao filme comoum grande desrespeito [com] a Marilyn” com “cenas extremamente absurdas que não aconteceram na vida real, [parece que] o diretor pegou as cenas mais pesadas do livro e jogou tudo no filme. São quase 3 horas de violência, estupro, aborto, sofrimento, as cenas não tem contexto nenhum, tem cortes sem nexo […]”. E Sousa finaliza: “Acho que só gastaram dinheiro e tempo num borrão imaginário do que seria o mito de Marilyn.”

Enfim ‘Blonde’

Ana de Armas recriando uma capa de revista estampada por Marilyn. (Foto: Netflix)

Seguindo a história pensada por Oates em seu livro, o filme segue uma perspectiva fantasiosa de como teria sido a vida da estrela nos bastidores e em sua vida pessoal. Dessa maneira, o longa traz a sua visão de como Marilyn seria nesses aspectos e o resultado não poderia ser mais ofensivo.

[…] Ele traz elementos bastante irreais e exagerados sobre a vida de Marilyn Monroe, e muitas pessoas não sabem que esse filme não é uma cinebiografia e acabam achando que a Marilyn viveu desse jeito, por isso eu critico tanto o lançamento desse filme, ele desrespeita a memória da Marilyn de diversas formas.”, afirma Tatiana. Já Alana, além de criticar a obra dizendo que “nos menores dos termos [Blonde] a humilha” também critica a plataforma de streaming: “Este filme vem de um meio acostumado a injetar em Marilyn toda e qualquer situação de pessoa desequilibrada, mas o fato de ser distribuído por uma grande empresa que alcança democraticamente a sociedade está em nível elevado dos outros. A estudante de biblioteconomia e fã de Monroe desde 2017 também lamenta dizendo que a Marilyn retratada no longa como “vulgar, triste e desesperada” é “irreal” e teme “que sua persona real perante o grande público jamais seja de fato restaurada”

Durante a maioria das 2 horas e 47 minutos de filme, Marilyn não passa de um objeto tanto nas mãos dos homens que passaram por ela em cena, quanto nas mãos e lentes de Andrew Dominik – que dessa vez ultrapassa todos os limites da sexualização quase centenária de Monroe através de sua intérprete, a atriz cubana Ana de Armas. Apesar da atriz já ter dito se sentir segura e consciente durante as gravações com o corpo desnudo, em ‘Blonde’ é impossível não se sentir desconfortável com tamanha exposição gratuita do corpo de Ana, especialmente nas cenas em que a falta de roupas não faz o menor sentido, mas mais precisamente  naquelas em que sua personagem está sendo nada mais que uma espécie de boneca nas mãos de todos os homens que encontra em seu caminho.

Também, outro fator que contribui para tanto desconforto em ver De Armas nesses termos, é que esta também é mais uma amostra de como a indústria hollywoodiana abusa de mulheres latinas em seus filmes com a sua fixação em mostrá-las como poços sem fim de sensualidade e sexualidade, e transformá-las em objetos – sim, objetos – sexuais a partir da sexualização exacerbada e nojenta de seus corpos.

Além disso, a visão que Dominik traz de Marilyn é completamente deturpada. Mesmo lidando com os seus problemas pessoais reais, Monroe era sempre lembrada como alguém vibrante, com senso de humor, uma mulher realmente geniosa e inteligente, porém, neste filme, a impressão que temos dela é de alguém sempre á beira da instabilidade, tão assombrada pelos momentos ruins de sua vida que parece estar há um passo de implodir em sua própria loucura.

Neste filme nem os lugares por qual viveu foram poupados. A produção utilizou as casas onde a estrela morou quando mais nova e a casa onde veio á óbito como cenários de gravação, mostrando mais uma vez que nem os ambientes que ela frequentou foram minimamente preservados, tornando-os “a cereja do bolo” que desrespeita o legado e a memória de Monroe.

Dominik e De Armas no set. (Foto: Netflix/Matt Kennedy)

Em meio a tantas coisas horríveis, há duas coisas boas de se destacar na produção: o figurino e a atuação de Ana de Armas. 

Diferentemente da fotografia que intercala entre o colorido e o preto e branco exalando uma energia de ‘Oscar Bait’ – termo usado para designar filmes parecem ter sido feitos exclusivamente com o intuito de concorrer à premiação do Oscar – irritante e enjoativa, o figurino é de longe a melhor parte da produção técnica da obra.

Em entrevista à Vogue, a figurinista Jennifer Johnson diz que sentiu uma enorme responsabilidade em recriar e não imitar os looks usados por Monroe originalmente para o filme, devido a qualidade e o design inteligentes que as peças possuíam. Além disso, Johnson também tomou a liberdade de dar uma “atualizada” em algumas peças – como o clássico sutiã com formato pontudo dos anos 50 – para parecem mais naturais e menos caricatos e isso, de fato, trouxe um toque interessante e moderno para o figurino, pois o aproximava dos tempos atuais sem deixar de manter a essência vintage dos modelos.

Croqui conceitual de uma dos figurinos para Ana. (Foto: Vogue/Cortesia Netflix)

Com um papel que certamente é um grande marco em sua carreira, a atuação da cubana Ana de Armas é definitivamente o ponto alto do filme, não pelo o que está sendo retratado, mas pela maneira que ela executa as emoções e as atitudes de sua personagem – que se pertencesse a uma história original, não baseada nas vivências de uma pessoa real que está sendo explorada pela milésima vez, com certeza seria passível de uma exaltação excepcional, porém, infelizmente, este não é o caso. Contudo, ainda sim, a interpretação dedicada da atriz cubana é um dos únicos pontos que geram um mínimo de interesse do espectador em continuar a assistir o longa, porém até a recepção deste fator é discutível. Enquanto Tatiana diz que De Armas estava “[…] impecável em sua performance” e que “[…] conseguia ver a Marilyn nela em algumas cenas que replicaram os filmes dela [Monroe]”, Alana responde que não “diria que ela [de Armas] se parece com Marilyn, mas para um roteiro que a vitimiza, a explora e a esvazia de si mesma, ela fez um ótimo trabalho.” Na fala das duas jovens vemos uma dualidade que também se instaurou no grande público que, da mesma maneira há quem diga que De Armas foi a única pessoa que trouxe algo bom de Monroe para o longa, há outros que digam que ela não fez nada além do que o seu trabalho normalmente, que já é de extrema qualidade, mas sem grandes enaltecimentos.

Os ataques de Dominik

Além de realizar uma obra grotesca e vulgar, que Tatiana define como um filme que “não tem história, é só Marilyn sofrendo”, Andrew Dominik também entrega um show de misoginia ao falar de Monroe, seu legado e do filme em entrevistas.

Andrew Dominik dirigindo Ana de Armas durante as replicações das cenas de Monroe em um de seus clássicos. (Foto: Netflix/Matt Kennedy)

Durante o período de divulgação do longa, o diretor neozelandês despejou inúmeras falas repulsivas e machistas quando falava de Marilyn – a verdadeira, não a que ele inventou e insiste em dizer que é a “real” – e de sua contribuição para o cinema. 

Em entrevista para o site do British Film Institute (BF1), uma das falas de Andrew Dominik sobre a atriz chamou a atenção. Quando questionado sobre o que seu filme iria tratar, ele diz que o longa não iria olhar para seu legado, mas sim para o fato de que “ela tinha tudo que a sociedade diz que é desejável […] ela tinha tudo. E se matou.” e que para ele, isso era o mais importante de tudo e não o “resto” – vulgo seu trabalho -, pois não são momento de força”. Ele até emenda dizendo que “ok, ela arrancou o controle dos homens no estúdios, porque [você sabe] as mulheres são tão poderosas quanto os homens”, mas que olhar através dessa lente não era interessante.

Simplesmente não tenho palavras para explicar o quão homem – com o menor dos “H’s” – você tem que ser para achar fantasias e teorias descabidas a respeito de uma mulher sejam mais interessantes que do seu trabalho e tantos outros grandes e impactantes feitos realizados em vida.

Quando divulgou a entrevista em suas redes, a jornalista Christina Newland, também postou um trecho – que foi retirado da publicação final – de sua entrevista com o diretor, onde ele primeiramente diz que Marilyn se tornou um “item cultural e está em um monte de filmes que ninguém vê […]” e no final questiona: “Alguém assiste os filme da Marilyn Monroe?”. Em resposta, Newland disse que ela e suas amigas assistem aos filmes e que o longa ‘Os Homens Preferem As Loiras’ era um que elas sempre assistiam. Quando perguntada por Dominik sobre o que este filme era sobre, a jornalista dá a sua visão dizendo que é “sobre uma visão de mundo, […] um tanto quanto cínica, sobre homens e gênero e como isso se relaciona com o que as jovens mulheres gostam […]”. Em contrapartida, o diretor rebate dizendo que o filme é “cínico sobre as mulheres também” e Newland até concorda com a colocação, porém completa dizendo que o longa também é “uma fantasia, é glamuroso”. Dominik retruca a fala sobre o longa ser glamuroso, questionando a jornalista mais uma vez: “Por quê? Por que elas estão bem vestidas?”, Christina concorda, e por fim, o neozelandês faz a sua última fala: “Elas são vadias bem vestidas. Não sei”, mostrando claramente um posicionamento contrário ao da entrevistadora.

Todas essas declarações são mais do que suficientes para perceber que, em nenhum momento, Andrew Dominik possui qualquer mínimo de respeito por Marilyn Monroe. São só mais provas, além de seu horrendo filme, de que ele, assim como vários outros homens, apenas quis lucrar usando a imagem de Marilyn – e dessa vez com mentiras e fantasias desrespeitosas como respaldo para explorar ainda mais a atriz, seu trabalho e sua vida.

Marilyn por fim

Marilyn em uma sessão de fotos em 1957. (Foto:Getty Images/Shaw Family Archive)

Como dito pela entrevistada Alana, a obra de Andrew Dominik não passa de nada além de uma “clara intenção de destruir e desumanizar” a imagem de Marilyn através de um trabalho em que “[…] representá-la não passa de uma exploração grotesca que reflete mais em quem ele [Dominik] é do que em quem Monroe foi.” 

Em suma, ‘Blonde’ é a mais nova forma de exploração de Marilyn Monroe. De sua imagem, de sua pessoa, de sua vida, de seu sofrimento, de sua morte. Uma exploração que começou enquanto ela estava começando o seu caminho na indústria, que se intensificou de maneira absurda quando ela se consolidou como o rosto de Hollywood e que agora foi para níveis estratosféricos graças a visão nojenta de um diretor que, assim como vários outros, apenas fez uso de sua imagem por lucro, sem se importar com a sua pessoa.

Esse é mais um exemplo de que Marilyn Monroe não possui um minuto de paz – nem mesmo em seu descanso.

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