No dia 02 de abril de 2025, definido pela Casa Branca como o “Dia da Libertação”, o Presidente dos Estados Unidos (EUA) Donald Trump anunciou os patamares das tarifas recíprocas que serão aplicadas aos parceiros comerciais do país.
A política, editada em Ordem Executiva, recebeu o nome oficial de “Regulating Imports with a Reciprocal Tariff to Rectify Trade Practices that Contribute to Large and Persistent Annual United States Goods Trade Deficits”. Como justificativa, Trump indicou a necessidade de um melhor tratamento dos EUA à medida que o mercado nacional seria bastante aberto [1], e as nações parceiras impõem tarifas e barreiras comerciais. Visa também a quebra das amarras impostas pelo sistema multilateral de comércio representado pela Organização Mundial de Comércio (OMC). Países que já foram atingidos pelas restrições como Canadá e México não entraram nesta nova lista, enquanto nações que já sofrem embargos e sanções também não, como Rússia, Bielo-Rússia, Cuba e Coreia do Norte. Quais as estratégias geopolíticas e geoeconômicas das tarifas?
A imposição de tarifas seguiu um padrão não-linear entre regiões e nações, orientado por sua competição com os EUA, levando em conta zonas de influência e a interpenetração no mercado norte-americano. Portanto, não foram considerados critérios econômicos-comerciais apenas, como parece se propagar no senso comum, mas um arcabouço estrutural de competição geopolítica e de alteração do peso de polos de poder específicos. As regiões mais afetadas foram o Leste Asiático, a Ásia Pacífico e o Indo-Pacífico , com nações posicionadas em três eixos de poder [2]: os países emergentes, China e Índia, as nações desenvolvidas, Japão, e terceiras nações, com menor poder relativo, características periféricas, mas bastante distintas entre si.
Estas terceiras nações, por sua vez, podem ser divididas em categorias adicionais (algumas sobrepostas): pertencentes às zonas de influência chinesa, indiana e japonesa, participantes da Iniciativa do Cinturão e da Rota (BRI), e exportadoras de bens de consumo para os EUA, nas quais existe uma forte atuação de empresas norte-americanas e chinesas tanto no setor de bens de baixo e médio valor agregado (como roupas e acessórios) como no de bens de alto valor agregado ligados à disputa tecnológica com a China. Ainda que de fato possuam tarifas altas para a entrada de produtos norte-americanos como indica Trump, também são nações fortemente exportadoras para os EUA.
Se a Guerra da Ucrânia é uma guerra de procuração contra a Rússia, a China e a Alemanha em certa medida, o tarifaço é uma guerra direta e por procuração contra China, Índia e Japão. A média das tarifas nesta região, com foco nestas nações, encontra-se acima de 25%, atingindo picos de mais de 40% [3]. Outros três elementos que precisam ser considerados neste cenário são: a dependência securitária, e não só econômica, de algumas nações diante dos EUA como Japão e Coreia do Sul e a existência de diversos arranjos multilaterais autóctones na região asiática como a ASEAN (Associação das Nações do Sudeste Asiático), a RCEP (Parceria Econômica Regional Abrangente) e a Parceria Transpacífica (TPP), nenhum dos quais com a participação norte-americana, e a situação de Taiwan.
Na competição tecnológica sino-americana, Taiwan é um pivô estratégico, que mantém fortes laços de cooperação econômica com a China no setor de produção de chips. Mesmo sob o guarda-chuva securitário estadunidense, e pressões tanto de Trump quanto do anterior governo Biden (e provocações políticas à China e ameaças militares), a ilha não rompeu sua parceria com a China. Esta parceria se demonstra essencial tanto para a manutenção do desenvolvimento chinês no setor de ponta das tecnologias como Inteligência Artificial e sua competição com os EUA, como para Taiwan na ampliação de sua influência nos mercados de chips, fortalecimento de sua autonomia e ganhos financeiros.
Há uma extensão destas tarifas a outros espaços geográficos como África e Oriente Médio (e algumas nações europeias não pertencentes à União Europeia), que tem consolidado sua aproximação principalmente com a China (e sua Iniciativa do Cinturão e da Rota), arranjos multilaterais como os BRICS Plus [4] (cuja próxima reunião será em Julho de 2025 no Brasil) e uma política externa de autonomia. A média tarifária mais uma vez aplicada a estas nações ultrapassa os 25%, podendo alcançar mais de 55% em alguns casos.
Cabe mencionar dentre os principais alvos de Trump, a União Europeia (UE), submetida a uma tarifa de 20%, bloco alvo de disputas securitárias com relação à Ucrânia e à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Na última década, a UE tem enfrentado diversas crises internas e fragmentações, ainda produto da crise econômica global de 2008 (cujos efeitos permanecem bastante fortes também nos EUA e se encontram nas raízes da volta de Trump ao poder), e desafios à integração, que levam a um enfraquecimento ainda maior do bloco.
Há, ainda, um descolamento de expectativas entre as burocracias europeias e as demandas populacionais, visível no declínio de padrões de vida e dilapidação do Estado de Bem-Estar. O agravamento destas tendências acelerou-se com o apoio incondicional aos EUA na Guerra da Ucrânia, colocando em xeque estas agendas, e pressionando o modelo econômico de desenvolvimento da Alemanha, que liderava o cenário econômico europeu. Ao trocar o gás russo pela dependência do gás dos EUA (LNG), mais caro e de mais difícil acesso, a UE e a Alemanha, tornaram-se mais vulneráveis. A chegada de Trump e a mudança de posição dos EUA diante do bloco tendem a colocar mais pressões nas lideranças de Estados como a já citada Alemanha, a França, que pode levar a cenários diversos: maior autonomia estratégica, rearmamento e tensionamento intra e extrabloco e a maior instabilidade social e política devido à crise econômica.
Na América Latina, à exceção do caso mexicano já debatido, e de Guiana (38%) e algumas outras exceções, as tarifas apresentadas foram lineares, 10%, estando aí incluído o Brasil. À primeira vista estes números foram vistos como surpreendentes, entretanto é preciso entendê-los: a América Latina é atualmente uma das poucas regiões com a qual os EUA detém superávit comercial, já possui uma economia bastante aberta ao exterior, com poucas barreiras à entrada de produtos norte-americanos, e apresenta uma situação fragmentada devido ao desmonte de organismos regionais como a União das Nações Sul-Americanas (UNASUL), a despolitização do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) e a desindustrialização.
Entretanto, a vulnerabilidade é acompanhada por um quadro geopolítico mais complexo, sustentado pelo Brasil e pela China (e a BRI), e que demonstra a necessidade de uma tática mais sensível do rebalanceamento regional, até por esta ser uma zona de influência imediata dos EUA. Esta complexidade reside nas políticas de autonomia do Brasil em agendas como as dos BRICS Plus, assim como o interesse norte-americano em preservar o acesso ao mercado brasileiro e lidar com setores nacionais competitivos e competidores dos EUA: etanol e setor energético em geral (petróleo, biocombustíveis, energia verde), agronegócio e aço e siderurgia. Igualmente, o Brasil possui reservas significativas de minerais críticos e terras raras, essenciais à dimensão de poder tecnológico e energético, negociando simultaneamente acordos com EUA e China.
Outro fundamento desta complexidade é a dependência latino-americana diante da China, e o aprofundamento de laços políticos e o desenvolvimento em setores de infraestrutura, comércio no âmbito da BRI. Ou seja, uma pressão maior sobre a região pode levar a uma maior perda de influência, à medida que os EUA não seriam capazes de suprir o vácuo chinês, podendo elevar a instabilidade política local com graves crises sociais. O elemento ideológico é relevante, mas não é o único nestas decisões. Trata-se, portanto, de um momento de barganha, e de sinalizações entre os Estados no sentido de alternar mecanismos de engajamento e contenção.
Estariam descartadas sanções ou problemas maiores? Certamente não, até porque as consequências das tarifas impostas as demais regiões, produz maior instabilidade e reduz alternativas para o Brasil e a América Latina. Nem para a região e nem para o mundo, a consolidação da falência da OMC é positiva, mas ela se iniciou em 2017, em Trump 1, sem correção de rumos por Biden, até chegar a Trump 2 em 2025.
A tática de Trump parece ser a de levar ao limite certas situações, inclusive a interna, pois o tarifaço trará pressões inflacionárias se não resolvido no curto prazo, com acomodação mútua. Acomodação que talvez ocorra para que a situação doméstica não se agrave tanto, ainda que estejamos diante de um governo que não buscará a reeleição (a despeito das falas de Trump sobre um terceiro mandato, que é inconstitucional). A contrapartida poderá ser algo que já se observou na pandemia: a quebra de cadeias globais de valor, com a reconfiguração de forças a partir da crise em torno de polos mais estáveis e mais confiáveis (i.e o eixo asiático), podendo acelerar o desacoplamento sino-americano. Porém, estas são apenas reflexões e provocações iniciais, que se beneficiarão da passagem do tempo.
1] A opção pela abertura do mercado dos EUA ao longo do século XX foi econômica e parte da estratégia da Guerra Fria, em uma divisão internacional de trabalho: enquanto aliados como Japão e Europa Ocidental se desenvolviam economicamente, os EUA funcionavam como garantidoras de segurança..
[2] Com base na definição dos eixos de poder, conforme análise de Visentini, Paulo. “Eixos do poder mundial no século XXI: Uma Proposta Analítica”. Austral: Revista Brasileira de Estratégia e Relações Internacionais, v.8, n.15, Jan./Jun. 2019 | p.9-25
[3] Todas as listas de tarifas aqui apresentadas não são exaustivas. Para estas listas e a posição oficial do governo dos EUA, com o detalhamento da Ordem Executiva ver: https://www.whitehouse.gov/presidential-actions/2025/04/regulating-imports-with-a-reciprocal-tariff-to-rectify-trade-practices-that-contribute-to-large-and-persistent-annual-united-states-goods-trade-deficits/ .
[4] BRICS Plus: Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia, Irã, Indonésia. Também são membros parceiros Argélia, Belarus, Bolívia, Cazaquistão, Cuba, Indonésia, Malásia, Nigéria, Tailândia, Turquia, Uganda, Uzbequistão e Vietnã. A Argentina havia sido convidada para entrar nos BRICS e declinou devido à posse de Javier Milei na presidência do país, e a candidatura da Arábia Saudita permanece em stand-by.
Cristina Soreanu Pecequilo
Professora de Relações Internacionais da UNIFESP e dos Programas de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas UNESP/UNICAMP/PUC-SP e em Economia Política Internacional da UFRJ. Pesquisadora do NERINT/UFRGS e do CNPq. E-mail: crispece@gmail.com
Finalizado em 03/04/2025.
Publicado originalmente em https://www.ufrgs.br/nerint/as-estrategias-geopoliticas-e-geoeconomicas-das-tarifas-de-trump/