Quais os sentidos geopolíticos e geoeconômicos da mais recente viagem do presidente Lula ao continente asiático no fim de março?
Em compromissos pelo exterior, o presidente Luís Inácio Lula da Silva visitou o Japão e o Vietnã. No primeiro caso, em comemoração aos 130 anos de relações diplomáticas entre brasileiros e japoneses, a comitiva nacional, liderada pelo presidente e acompanhada por ministros de Estado, além de representante de outros poderes, buscou a ampliação de condições para o estreitamento de uma parceria considerada como estratégica, visando um maior acesso brasileiro aos mercados japoneses e estabelecendo acordos em diferentes arenas como ciência, tecnologia e energia.
No Vietnã, perspectivas comerciais se juntaram a outras questões de relevância, tais como as expectativas sobre a ampliação na cooperação política, avanço nas parcerias envolvendo tecnologia, comércio e agricultura, além do horizonte de atração de novos investimentos. A primeira visita de Lula ao país ocorreu em 2008, tornando-se o primeiro Chefe de Estado Brasileiro a viajar a Hanói. Mais de uma década depois, em seu terceiro mandato, o estreitamento das relações bilaterais se manteve com a visita do primeiro-ministro vietnamita, Phạm Minh Chính, ao Brasil em 2023. Como forma de reciprocidade dos laços diplomáticos e comerciais, neste ano, o presidente brasileiro visitou novamente o país com o compromisso de dar continuidade à parceria entre as nações.
Vale destacar que um dos principais horizontes projetados pelo governo brasileiro é aumentar o comércio entre Brasil e Vietnã para 15 bilhões de dólares até 2030, duas vezes mais do que o registrado em 2024. Nesse mesmo ano, os vietnamitas foram responsáveis por 34% das importações brasileiras em relação aos países do Sudeste Asiático, além de ocuparem o quarto lugar entre os Estados da ASEAN no tocante às exportações. Algodão, milho, soja, trigo e café correspondem a 70% da pauta comercial do país para o Vietnã (Brasil, 2025).
Com a viagem de Lula, o agronegócio brasileiro conquistou um avanço significativo: a reabertura do mercado vietnamita para a carne bovina brasileira. As exportações estavam suspensas desde 2017, em decorrência da Operação Carne Fraca – investigação da Polícia Federal sobre a comercialização de carnes adulteradas do Brasil no mercado interno e externo. Durante sua visita, Lula destacou que essa reabertura pode atrair investimentos de frigoríficos brasileiros no Vietnã, transformando o país em uma “plataforma de exportação para o Sudeste Asiático”. Atualmente, o Vietnã consome cerca de 300 mil toneladas de carne bovina por ano e pode se consolidar como um hub para a distribuição do produto em outros mercados asiáticos (Figueiredo; Villarino; Walendorff, 2025). Além disso, o avanço dessas negociações pode facilitar a entrada da carne brasileira em países como Japão, Coreia do Sul e Turquia, que ainda impõem restrições à proteína nacional.
A viagem a Hanoi também tem como plano de fundo estreitar relações com um ator estratégico dentro do debate sobre as mudanças nas políticas do comércio exterior dos EUA. Inserido em grandes cadeias globais de valor que ultrapassam a Ásia-Pacífico, o Vietnã possui um superávit comercial considerável em relação aos estadunidenses, registrando índices superiores a 100 bilhões de dólares em 2024, o que fez do país do Sudeste Asiático alvo da política tarifária de Donald Trump. O recente pacote anunciado pelo presidente, justificado pela necessidade de reduzir déficits comerciais do país, impôs tarifas de 46% sobre produtos vietnamitas. A medida foi sustentada pelo argumento de que o Vietnã aplica tarifas de até 90% sobre bens americanos, gerando tensões comerciais entre os dois países (Bolzani, 2025).
Apesar do interesse em encontrar uma saída negociada junto a Washington, admitindo favorecer medidas que reduzam tal déficit para os estadunidenses, o governo vietnamita também se pauta pela defesa do multilateralismo e do livre-comércio, ampliando as vozes que, em maior ou menor medida, temem os impactos das medidas americanas. Existem fatores geopolíticos que também influenciam na busca por uma saída menos turbulenta frente aos interesses dos Estados Unidos. As tensões com Pequim, especialmente devido às reivindicações da superpotência asiática no Mar do Sul da China, exigem que Hanói preserve sua parceria estratégica com os EUA, garantindo uma balança de poder na Ásia-Pacífico que garanta sua segurança e soberania.
É nesse contexto de desafios e oportunidades para o comércio internacional que a recente viagem de Lula reforça o histórico de aproximação entre Brasil e Vietnã. Durante o encontro, o presidente brasileiro convidou o primeiro-ministro Phạm Minh Chính para visitar o Brasil em 2025, por ocasião da Cúpula do BRICS no Rio de Janeiro. De olho no processo de expansão da iniciativa multilateral que conta com a Indonésia como membro formal e efetivo, além da Malásia e Tailândia nas condições de países parceiros, o estreitamento de relações com o Vietnã também parece um novo e consciente passo dos países emergentes em ampliar sua presença numa zona estratégica do globo.
Mais do que considerações específicas sobre essa viagem, esse comentário também propõe refletir sobre um vetor importante da política externa do terceiro governo Lula. Essa é a quinta passagem de Lula pelo continente asiático desde que tomou posse como presidente (Alencar; Maia, 2025). Além de China e Japão, países como o próprio Vietnã se somam a Emirados Árabes Unidos, Qatar, Índia e Arábia Saudita estiveram no roteiro do presidente em tais ações intercontinentais.
A Ásia configura mais de 40% do total das exportações brasileiras, sendo um dos vetores mais potenciais da política externa do atual governo Lula (Alegretti, 2025). Entre os principais compromissos de campanha do atual presidente, a perspectiva de reinserção do Brasil na defesa de uma ordem multipolar a partir de uma perspectiva revisionista e recuperação do protagonismo do país em diferentes agendas multilaterais, tais como meio ambiente, democracia e direitos humanos, estimularam o desenvolvimento de uma proposta de inserção externa de caráter universalista e autonomista (Tribunal Superior Eleitoral, 2022). Somado a isso, desafios conjunturais envolvendo as oscilações vividas pela economia brasileira, a instabilidade política em nível doméstico e os reflexos de quase dez anos de retrocesso na inserção internacional do país estiveram entre os vetores domésticos mobilizados em favor de um sentido de mudança na política externa, tomando como base a experiência do próprio presidente Lula durante seus dois primeiros mandatos no início do século XXI (Santos, 2023).
O fato é que, em meio a um cenário internacional muito instável, além de outros fatores como as divergências no seio do próprio governo quanto às estratégias de atuação externa, a prioridade atribuída a agendas no plano doméstico, bem como a situação político-institucional do país elevaram os desafios para o desenvolvimento de uma política externa mais sólida. Se, em grande medida, o Brasil conseguiu se livrar de uma condição de quase pária no sistema global, aspecto vivido anos atrás, o atual governo encontra certa dificuldade em recuperar esse protagonismo almejado. Isso é muito evidente no continente africano, em que, diante dos sentidos de uma competição estratégica envolvendo atores de diferentes estaturas, o governo Lula continua a correr atrás do tempo perdido.
No caso do continente asiático, o que se verifica é uma tentativa de se aproximar dos chamados novos emergentes. Países com elevado crescimento econômico, participação ativa em grandes processos decisórios regionais e globais, interessados pela diversificação de parcerias políticas e econômicas, mercados potenciais a serem ainda mais explorados pelo Brasil e atores capazes de projetar investimentos em nosso território. Essas são algumas características que, em maior ou menor medida, fazem dos périplos de Lula e de seus ministros pela Ásia nos últimos anos um importante movimento da nossa política externa. Ressalta-se ainda que, a diversificação de parcerias em um contexto de confrontação geoeconômica entre China e Estados Unidos torna-se uma hábil estratégia brasileira para evitar alinhamentos de caráter geopolítico, ampliando condições para a maximização de ganhos.
Esse é um processo que assume sentidos de continuidade e descontinuidade em relação à última década. Se observarmos mais detidamente, a Ásia continuou a figurar como um vetor nos governos Temer e no governo Bolsonaro. No primeiro caso, tendo como referencial o famoso documento da Ponte para o Futuro, a ideia de valorização da diplomacia econômica, sob bases nitidamente direcionadas ao aprofundamento do neoliberalismo, tinham na perspectiva de elevação do comércio e inserção do Brasil nas grandes cadeias globais de valor fatores que pudessem manter certo interesse na China e no Leste Asiático. No governo Bolsonaro, tal perspectiva coexistiu com fortes tensões ideológicas. Contudo, no Oeste Asiático, o Brasil cultivou certa aproximação com os Estados do Golfo, alimentando expectativas sobre a atração dos poderosos Fundos de Investimento saudita e emiradense no país, crescimento das relações comerciais e certa colaboração política em agendas controversas.
O que se verifica no governo Lula, dado o caráter heterogêneo da sua base política, é a recuperação de uma dimensão geopolítica para tais relações. Isso é nítido no caso do Golfo. Tomando como exemplo a Arábia Saudita, perspectivas de crescimento das relações comerciais em até 20 bilhões de dólares nos próximos anos são acompanhadas de anúncio de investimentos em áreas como mineração e energia, cooperação em segurança e defesa, acordos para a facilitação na obtenção de vistos e estreitamento no diálogo sobre grandes temas globais, incluindo o convite feito para a participação de Riad no BRICS. No caso dos Emirados Árabes Unidos, principal origem dos investimentos externos diretos do Oriente Médio no Brasil, as parcerias se estendem a áreas diversas, incluindo formação de diplomatas, possibilidade de cooperação conjunta no continente africano, ampliação na participação de empresas brasileiras no mais dinâmico dos mercados do Mundo Árabe e avanço no desenvolvimento de instrumentos vinculados à paradiplomacia.
Os dois casos ilustram a importância estratégica da Ásia dentro dos objetivos de inserção externa do Brasil em curto, médio e longo prazo. Conforme diversas perspectivas sobre as relações internacionais contemporâneas, a exemplo das contribuições de Giovanni Arrighi, Immanuel Wallerstein e Robert Cox, o futuro do mundo se encontra cada vez mais direcionado para o eixo Ásia-Pacífico, num poderio econômico que se traduz crescentemente em força geopolítica capaz de liderar ou pelo menos influenciar assertivamente nos principais desafios do atual contexto de crise sistêmica.
Ainda nos anos 2000, Amado Cervo pontuava que “lidar com a Ásia é lidar com a diversidade” (2008, p. 275). Em meio a variedade de experiências de desenvolvimento e inserção internacional, aquele continente se tornou um fator atrativo para a Política Externa Brasileira (PEB), especialmente em contextos de busca por novas parcerias. Se ao longo dessa História, países como China, Índia e Japão se tornaram destinos importantes para a diplomacia brasileira, o desafio de diversificação ainda se apresenta como uma necessidade na contemporaneidade. Nessa perspectiva, acenos na direção do Golfo e do Sudeste Asiático podem ser favoráveis no processo de ampliação das relações entre o Brasil e zonas dinâmicas daquele continente heterogêneo.
As janelas de oportunidade que hoje se apresentam e que são cultivadas pelo governo Lula naquele continente precisam se traduzir em esforços para a superação de diversas dificuldades, tais como a distância geográfica, a necessidade de facilitação de organismos de pagamento e crédito, a logística, o pouco conhecimento entre culturas e mercados distintos, além do envolvimento de atores não necessariamente estatais dentro desses empreendimentos. Usando uma expressão dos tempos do presidente Juscelino Kubitschek, quando o Brasil patinava ao apoiar as potências coloniais e reduzir parte de sua atuação externa a uma postura subordinada aos EUA e as teses mais gerais da Guerra Fria, precisamos buscar uma espécie de constante nova Operação Brasil – Ásia, atravessando o Pacífico na busca de um mundo que, aos olhos da diplomacia brasileira, parece ser objeto de eterna redescoberta.
Mateus Santos é Doutorando em História pela Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Membro-Pesquisador do Laboratório de Geopolítica, Relações Internacionais e Movimentos Antissistêmicos (LabGRIMA), com ênfase em Política Externa Brasileira Contemporânea e Oriente Médio.
Glauco Winkel. Pesquisador do Laboratório de Geopolítica, Relações Internacionais e Movimentos Antissistêmicos (LabGRIMA) da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL).