Uma marca da personalidade

Por Vinícius Colares

O homem do século XXI é mais social do que nunca. É possível presenciar o nascimento de uma geração que está interconectada vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana. Rotinas, hobbies e detalhes do cotidiano são compartilhados não só com os “amigos de Facebook”, termo usado pelo sociólogo Zygmunt Bauman para definir esse novo tipo de amizade, mas com o mundo todo. O crescimento das redes sociais é só mais uma evidência desse fato que marca uma das principais características do ser humano pós-moderno. A vida em rede é quase natural para quem nasceu a partir da segunda metade da década de 1990 e a afirmação de uma personalidade, dentro desse meio, beira o essencial.

Como uma maneira eficiente de mostrar características pessoais, imagens surgem instantaneamente nas redes sociais e registram desde eventos e festas particulares até momentos inesperados e aspectos físicos. A busca é sempre pela melhor foto e, é claro, por aquela que mais identifica o perfil do fotógrafo (ou modelo).

No meio de tantas fotografias é possível identificar um traço cada vez mais evidente. Aliás, não apenas um. São vários os traços que formam uma tatuagem.

Engana-se, porém, quem pensa que as tatuagens são um fenômeno moderno. Sequer é possível prever uma data exata dessa prática que é considerada por muitos uma arte. Existem casos de múmias egípcias que já marcavam o corpo. Uma das mais famosas é a de Amunet (foto), que teria vivido entre 2160 e 1994 a.C. e apresentava marcas e pontos inscritos na região do abdômen. No Egito Antigo, esse tipo de tatuagem poderia ter relação com cultos à fertilidade, segundo alguns historiadores que, em sua maioria, concordam com a ideia de que essas marcas eram uma tentativa de preservar a pintura do corpo.

Foto da múmia egípcia Amunet, um dos primeiros registros de marcas no corpo que se tem conhecimento. Foto: Reprodução (http://goo.gl/OybJYp)

Foto da múmia egípcia Amunet, um dos primeiros registros de marcas no corpo que se tem conhecimento. Foto: Reprodução (http://goo.gl/OybJYp)

Em entrevista a revista Mundo Estranho, a professora Célia Maria Antonacci Ramos, da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), autora do livro Teorias da Tatuagem, lembrou que as civilizações antigas costumavam manter-se em movimento sempre. “Um dos objetivos (da tatuagem) seria permitir ao indivíduo registrar sua própria história, carregando-a na pele em seus constantes deslocamentos”, disse Célia que é também artista plástica.

Paulo Barreto, mais conhecido pelo pseudônimo de João do Rio, foi um dos jornalistas que mais acompanhou algumas das características do cidadão carioca do século XX e procurou notícia onde não se imaginava encontrar. Em novembro de 1904, em um texto publicado originalmente na revista Kosmos, com o título “A tatuagem no Rio”, João escreveu sobre a popularização dessa prática pelas ruas cariocas.

É interessante perceber que as tatuagens eram feitas na sua maioria por crianças que ficavam nos pontos onde a procura era maior. João usa uma linguagem popular para descrever quem eram os que mais procuravam as “marcas”. Segundo o jornalista, eram os negros, os “turcos” (de religiões variadas), portugueses e a “classe baixa do Rio – vendedores ambulantes, os operários, os soldados, os criminosos, os rufiões, as meretrizes”. Entre esses últimos, a história mais curiosa é de um marinheiro chamado Joaquim. Ele tatuou um desenho de Jesus Cristo crucificado no peito e uma cruz negra nas costas. O motivo era malandragem e não religiosidade. Joaquim sofria castigos menores na cadeia já que os guardas não tinham coragem de surrá-lo. “Parece que estão dando em Jesus!”, confessou o malandro a João do Rio.

Hoje também há aqueles que optam pelas tattuos por motivos variados desde sempre. O termo, aliás, foi criado pelo navegador inglês James Cook, em seu diário de bordo, após uma expedição à Polinésia, onde homens e mulheres pintavam o corpo e nomeavam a prática como tatau.

 

Schiefley (esq.) é um dos primeiros tatuadores a ter o nome reconhecido. Foto: Reprodução (http://goo.gl/YTUvVw)

Schiefley (esq.) é um dos primeiros tatuadores a ter o nome reconhecido. Foto: Reprodução (http://goo.gl/YTUvVw)

A tatuagem já encontrou explicações para sua arte dentro da universidade, inclusive. O que leva alguém a tatuar-se tem relação com tópicos como a busca de identidade (Le Breton, 2002; Sanders, 1998), a procura de sentido íntimo (D’Allondans, 2001) ou a manifestação de uma vontade incontrolável (Almeida, 2001). Porém, os relatos dos tatuados, fora do ambiente acadêmico, variam. Estilo, arte ou a vontade de homenagear alguém, são alguns dos principais motivos. Esse último, aliás, é o caso do pelotense José Barboza (24), estudante de eletrotécnica e fotógrafo. José já fez três tatuagens e todas elas têm um valor sentimental:

“Uma (das tatuagens) eu fiz pra minha mãe e está no meu peito. Outra é uma clave do sol que simboliza minha paixão pela música. A outra é relacionada ao fato de que só podemos resolver os grandes problemas da vida com experiência e força de vontade.  O desenho é de uma mão de zumbo segurando um cubo mágico”.

Cassandra Bonfante (21) é natural de Passo Fundo, mas estuda engenharia química em Porto Alegre e já fez duas tatuagens. Cassandra voltou recentemente de um intercâmbio na Europa e disse que o brasileiro está à frente de muitas outras culturas em relação à liberdade que as pessoas têm de marcar o próprio corpo. Para ela, a marcação definitiva não é uma questão de estilo apenas:

“Fiz porque acredito que é uma arte imortalizada no corpo e acho essa ideia fantástica. Em uma delas (das tatuagens) aproveitei para homenagear minha família. Acredito que não seja tanto uma questão de estilo, mas sim o que fazer a tatuagem significa para a pessoa”.

As opiniões divergem, mas acabam encontrando um ponto em comum: a ligação do desenho com alguma mensagem específica. Rafael Eidelwein (24) é designer gráfico e mora em São Paulo. As tatuagens, para ele, têm um valor individual muito forte:

“Particularmente, gosto de pensar na tatuagem como uma expressão pessoal. Talvez influenciado pela minha profissão, todas as minhas tatuagens (sete no total) possuem uma forma e uma função. Todas representam algo, um momento da minha vida, alguma crença, uma pessoa ou uma passagem de fase e não ficam na ‘arte pela arte’”.

Rafael disse também que esse valor individual da tatuagem faz com que ele não tenha prazer em explicar a razão dos desenhos que faz na pele. “O que vale é a interpretação de quem tem a tatuagem e o que aquilo significa para ela. Como admirador, gosto da intriga que a tatuagem nos outros me causa. Aqueles ‘riscos’ dizem muito a respeito daquela pessoa indo além do estilo apenas”, conclui o jovem designer.

É possível pensar na tatuagem apenas como um ato individual. Mas, o crescente número de tatuados mostra que essa talvez não seja a única realidade. A tatuagem é também uma prática social através dos tempos. Existe hoje mais liberdade para alguém que mostra as marcas “não naturais” no corpo e essa é uma construção de nossa cultura. Apenas é recente o verbo tatuar, mas sempre fez parte do cotidiano do ser humano marcar o próprio corpo e definir assim sua personalidade.

 

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