“O Mal Que Nos Habita”: o bom terror não é o hollywoodiano

O Mal Que Nos Habita” (no original, “Cuando Acecha la Maldad”) é um filme argentino de terror, do diretor Demián Rugna, que alcançou atenção mundial quando foi disponibilizado no Shudder, streaming estadunidense, sob o título “When Evil Lurks”. O filme de possessão demoníaca traz um diferencial ao tratar o demônio como um vírus.

Por Jaime Lucas Mattos / Em Pauta

Pôster nacional destaca a legenda “rezar não servirá para nada” / Imagem: Divulgação/Paris Filmes

 

Após encontrarem um corpo mutilado em meio a árvores nas proximidades de sua propriedade rural, os irmãos Pedro (Ezequiel Rodríguez) e Jaime (Demián Salomón) se dirigem a outra propriedade da região e descobrem outro homem, debilitado e acamado, que está possuído por uma figura demoníaca. Após um pedido de ajuda recusado pela polícia local, os protagonistas, junto a um morador de outra propriedade, Ruiz (Luis Ziembrowski), decidem resolver o problema sozinhos e levar o possuído para longe da área em que vivem. Um problema encontrado no meio da estrada, no entanto, resulta na fuga do possuído, causando a propagação da possessão pela região rural e urbana da pequena cidade.

Filmes de possessão demoníaca não são uma novidade, a exemplo das franquias “O Exorcista” e “A Morte do Demônio”, que seguem lançando filmes até hoje. O diferencial de “Cuando Acecha la Maldad” (2023) está na maneira como o demônio possui os corpos. Ele se alastra como um vírus, com rápido contágio, que usa os corpos das pessoas como hospedeiros, para que se conclua o objetivo principal do demônio.

O universo fictício da trama já está bem estabelecido quando o filme inicia, porém vamos descobrindo partes desse universo ao desenrolar do enredo, já que o texto do filme não é tão expositivo como em filmes americanos. Os personagens já sabem do contexto do universo, então os diálogos não servem para convencer uns aos outros da natureza do ocorrido. Consequentemente, eles também não servem para que o público obtenha uma explicação minuciosa do que está acontecendo.

A possessão demoníaca não é uma completa novidade para os personagens, tendo em vista que ela acontece em grandes cidades com mais frequência, devido à grande concentração de pessoas. Em áreas mais afastadas, como é o caso do cenário do filme, os possuídos não são algo comum; pelo contrário, nenhum dos moradores sequer viu um possuído na vida. A falta de fé toma conta dos personagens no cenário de possessão, que já é uma realidade há décadas, como podemos observar em diálogos que expõem que as igrejas já não existem há muito tempo.

O vilão principal tem uma aparência repulsiva. O demônio possuiu o corpo de um homem e o deixou com aparência enferma, com o corpo todo inchado e com secreções saindo pelos orifícios. A voz da criatura é grave e distorcida, causando medo de se estar perto dele. Essa aparência repulsiva aumenta a sensação de periculosidade das cenas. O filme reforça a repulsa dos personagens em chegar perto dele, sabendo que tocá-lo pode ser contagioso. Isso faz com que o espectador sinta perigo quando os protagonistas da trama decidem mexer com o vilão.

O perigo não está apenas em tocá-lo, mas até em manter contato com objetos e roupas que estiveram perto do possuído. Para fugir, deve-se despir de tudo. Matar o possuído também não é tarefa simples, pois não pode usar arma de fogo: o demônio será libertado do corpo, trazendo o mal à Terra. Só quem pode acabar com um possuído são os “limpadores” – eles servem, no universo, como agentes de algum órgão semelhante à vigilância sanitária –, que têm o conhecimento necessário para matar demônios.

A sequência de cenas com a cabra é uma das melhores do filme / Imagem: Divulgação/Paris Filmes

A tensão se faz sempre presente. Enquanto há o perigo dos possuídos, Pedro e Jaime tentam salvar a vida dos seus familiares – os filhos de Jaime e a mãe dos protagonistas –, levando-os para longe do povoado. Apesar da tentativa, a possessão alcança pessoas próximas em velocidade rápida, causando sequências de cenas violentas e muito tensas. O espectador mal consegue se recuperar dos momentos violentos e já são baqueados por outro acontecimento chocante. Duas cenas que exemplificam muito bem são a sequência do rebanho de cabras, em que uma delas está possuída; e a sequência do ataque canino a um dos personagens.

Na imagem estão os protagonistas Jaime (à esquerda) e Pedro (à direita) / Imagem: Divulgação/Paris Filmes

 

Pedro é um protagonista impulsivo e caótico, não é o padrão de bom mocinho que estamos acostumados a ver em filmes Hollywoodianos. Podemos não nos identificarmos com a personalidade do personagem, mas nos compadecemos com a narrativa e a problemática que ele está vivendo, cujo principal objetivo é salvar a família do ataque demoníaco.

Um ponto a se destacar é a presença de um personagem autista incluído na trama. Trata-se de Jair (Emilio Vodanovich), filho de Pedro, que tem importância para o desenrolar de alguns eventos ao longo do enredo. Sua conexão com o final do filme não é explicada, mas é observada através de desenhos.

Apesar de diversos pontos positivos, o filme resvala em algumas questões. Por ter orçamento limitado, alguns efeitos visuais são mal conduzidos e, por vezes, fica evidente o uso de bonecos para substituir os atores em cenas de ataque. No entanto, a limitação do orçamento também resulta em ótimas cenas com os chamados “efeitos práticos”, como a maquiagem, que evocam mais repulsa a determinadas cenas, seja por conta da aparência do possuído ou do visual das mortes.

Em alguns momentos, principalmente no final, a sucessão de erros dos personagens, que esquecem de regras básicas da mitologia do filme, chegam a incomodar, mas não estragam a experiência total.

Algumas atuações não empolgam muito, a observar Virginia Garófalo (interpreta Sabrina, ex-esposa de Pedro), que exagera demais em suas expressões. Em contraponto, Ezequiel Rodríguez (Pedro) e Silvina Sabater (Mirtha) estão excelentes em seus papéis.

A (des)valorização do cinema “estrangeiro”

Quando observam-se as discussões sobre cinema na internet, pode-se notar duas classificações usadas com certa frequência para filmes, de acordo com suas nacionalidades: cinema nacional, se o filme é feito no Brasil; e cinema estrangeiro, se o filme é feito fora do Brasil e dos Estados Unidos. No entanto, os filmes estadunidenses não são, também, estrangeiros?

O uso desse termo, nas condições citadas, reforça a influência cultural e ideológica de Hollywood, que desde o início do século XX vem moldando o gosto e o imaginário do público mundial, através de filmes que retratam um estilo de vida, uma visão de mundo e uma forma de fazer cinema que nem sempre correspondem à realidade e à diversidade de outros países, como o Brasil.

Apesar de não retratar nossa realidade, o cinema norte-americano tem muito poder de influência, muito por conta da intervenção das campanhas de marketing – com muita injeção de dinheiro – e do monopólio das grandes empresas multinacionais, que “controlam” as salas de cinema, os meios de comunicação e as plataformas de streaming, impondo seus padrões estéticos, narrativos e comerciais.

Outras formas de contar histórias merecem ser vistas. Os filmes “estrangeiros” contam com diversidades narrativas que, vez ou outra, chamam a atenção dos cinéfilos ao redor do mundo, muito por influência de festivais e premiações, como o Oscar e o Festival de Cannes, ou por investimento de alguma empresa estadunidense – como é o caso dos filmes da Netflix.

Cuando Acecha la Maldad” é um desses casos. Com investimento da plataforma de streaming americana Shudder, o filme argentino ganhou os holofotes do mundo, pela maneira particular de contar sua história. A influência dos EUA, no entanto, não para por aí: para o público cinéfilo, o filme é reconhecido por seu nome em inglês: “When Evil Lurks”, perdendo sua identificação original. Mesmo com a atenção dos EUA, a distribuição ao redor do mundo não é eficiente. No Brasil, poucos cinemas receberam o filme, no início de fevereiro, e a maioria das salas já não o têm mais em cartaz.

Observa-se que a cultura cinematográfica global está intimamente conectada pelos interesses estadunidenses do que é, ou não, merecedor de holofotes. Enquanto “Cuando Acecha la Maldad” (Argentina) e “Fale Comigo” (2022; Austrália), por exemplo, trazem contribuições diferentes para o terror, filmes como “M3GAN” (2022) e “A Freira 2” (2023), ambos dos EUA, têm qualidade inferior, mas recebem muito mais atenção e arrecadam muito mais dinheiro, apenas porque estão inseridos em um grande esquema de marketing e de cultura massiva que levam os filmes estadunidenses a altos patamares aos quais os filmes “estrangeiros” não chegam, mas que também deveriam usufruir.

Jair (Emilio Vodanovich) em cena dentro do carro do tio / Imagem: Divulgação/Paris Filmes

 

Mesmo com orçamento limitado e com baixa adesão em cinemas brasileiros, “O Mal Que Nos Habita” se prova como um bom horror, graças à habilidade de conceber cenas repulsivas, gráficas, agonizantes e perturbadoras, sem deixar de contar uma boa e curiosa história. O filme não se limita aos clichês dos filmes de possessão demoníaca e enfrenta de cabeça erguida a mediocridade narrativa de determinados filmes estadunidenses, entregando uma história de qualidade que deveria ser amplamente recebida pelo público.

Brevemente o filme deve estar disponível para aluguel nas lojas digitais.

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