Liberdade e inspiração

Fim de tarde de atividades culturais com espetáculos de dança, teatro e música encerram semana de acolhimento do semestre na UFPEL com o grupo Circo Andino e BatuCantada

Éverson da Matha e Carlos Dominguez / Em Pauta

Grupo Circo Andino apresenta espetáculo Porque Cantamos no campus Anglo da UFPEL – fotos Cadré Dominguez

Duas mulheres e um homem podem mudar a forma como vivenciamos o mundo onde estamos. Com o uso da dança e da música. Gestos, sons, elementos visuais, movimento, rítmo, provocações, ironia e bom humor completam o espetáculo Circo Andino “Porque Cantamos?” Encenado por Zé Martins, Cristal Obelar e Killari Molina a proposta é mais do que uma atividade de entretenimento. A ideia é mudar o pensamento e a relação das pessoas com a natureza e a própria sociedade.

– Mesclar política com o poder da arte e da cultura, o poder da palavra que se espalha.

O circo andino nasce das comunidades campesinas, da Nação Pachamama, é um convite a acordar e resgatar o menino e a menina que éramos e a velocidade nos impede de perceber o instante. Queremos dar voz a quem não tem voz – diz Cristal.

– Parte tudo da inspiração da trupe, um sonho dentro de um sonho. Fazemos arte coletiva, trazendo a memória dos que nos trouxeram até aqui, dos poetas que deram vozes a muitos e a estética – completa Killiari.

As duas são as bailarina que executam a coreografia. Uma arte com inspiração na essência do ser humano e seu contato com a Pachamama, a mãe-terra na cosmologia dos povos andinos. O trupe faz parte do Movimento Nação Pachmama que está presente em diversos pontos do mundo. É um movimento que nasce da força dos que vivem na região da cordilheira dos Andes, dos amautas, avuelos e avuelas que vivem no alto das montanha. Os amautas os filósofos sábios das nações andinas pré-coloniais, chamados hoje de avós e avôs pelo respeito que tem na comunidade por serem os portadores da sabedoria ancestral.

– Nossa força vem de Q’eros, que é um local que está a mais de 5 mil metros de altitude. Historicamente, este povo teve de subir as montanhas por cota da chegada dos conquistadores. E é daí que vem o movimento, uma essência de humanidade a resgatar – explica Cristal, simpática, com entusiasmo e suavidade.

Zé Martins conduz Circo Andino

Um dos objetivo da performace é cumprir a missão de compartilhar a sabedoria antiga e ancestral para uma linguagem urbana, para quem tem outra perspectiva. Em outras palavras, com a arte levar os ensinamentos deste povo ancestral que vive a 5 mil metros de altitude, em casas de pedra, sem luz elétrica mas com uma consciência. A antiga tradição andina de viver em Ayllus, comunidades de cooperação que formam a grande resistência dos campesinos a ação predatória das mineradoras e preservam o ambiente e as fontes de água pura longe da cobiça das grandes empresas e corporações capitalistas na região da província do Peru de Paucartambo.

De acordo com Killiari, outro objetivo é romper as fronteiras que não existem de fato.

– O espetáculo foi criado a muitas mãos. Um vídeo no começo. A Esme Molina fez a trilha e a edição. Usamos poesias de Mário Benedetti com músicas de Teresa Parodi, Vitor Jara e Milton Nascimento. E queremos tocar em um ponto – aquele olhar de crianças, fresco, que pela primeira vez da atenção ao que está ao lado. No meio do bombardeio de informação de todos os lados que nem sabemos o que é ou não verdade, perdemos a experiência. A experiência pela vivencia do corpo. Então o espetáculo é um convite a desacalerar. Parar para olhar e sentir desacelerar o tempo e conectar com a inocência – conta Killari.

Quando o trio entra no espaço da apresentação, na UFPEL, na última quinta-feira, dia 16, no campus Anglo, Zé Martins toca um tambor e canta. Killari segue o cortejo, já na performace, seguida de Cristal que carrega o estandarte do Circo Andino, um belo artefato com cores e um lema definitivo: “Inspiracion e libertad: solo para locos”, ao redor da imagem da Chacana Andina em cores azul, amarelo, vermelho, roxo e lilás. Depois da entrada e da primeira canção, as bailarinas encenam atos seguidos, sempre intercalados com músicas. Os movimentos rápidos e em interação direta com o público que está na volta dos espaço, em pé, acompanhando as idas e vindas, danças e passos elaboradas. Elas sobem nos bancos, pulam e correm pelo local. A trupe adapta o espetáculo ao ambiente, usando como cenário tudo que estiver ao alcance de um salto acrobático.

Uso de redes sociais e críticas a cultura de likes foram alvo da trupe

Em um momento marcante, Cristal pede que o público dê “likes” a ela, distribuindo adesivos que são colados em seu corpo pelo público. As duas bailarinas atrizes fazem uma forte crítica a superexposição das redes sociais e a maneira obsessiva que a sociedade usa estas ferramentas digitais. A seguir, o trio encena o ato final, levando o público a fazer um círculo e cantar, aumentando a corrente de contato humano.

Em quechua, língua dos antigos povos andinos ainda falada em muitos locais do Peru e da Bolívia, Q’ero significa vasilha oca que recebe água ou a luz. É o ato de ser receptivo a algo maior da nossa natureza original. E para que este contato aconteça é preciso estar atento e consciente. Com o coração em sintonia com La Madre Tierra, com o chão que pisamos e com o ar que respiramos.

Cristal e Killari vivem em uma comunidade na Cascata, distrito da área rural de Pelotas.

– O espetáculo é como uma corda bamba, não é linear, não é linha reta. A performace tem um fio condutor mas se adapta ao lugar e responde as reações – afirma Killlari.

Para Zé Martins, a atividade no espetáculo “Porque Cantamos” é uma necessidade.

– Catamos porque tem indígena sendo assassinado, mulheres violentadas, meninos e meninas nos semáforos, porque tem pessoas derrubando árvores. Tem muitas razões para cantar, para buscar uma América una, uma pátria nossa, irmanada. Agradecendo ao ar e a água que recebemos, o sol e tudo que é natural harmônicos com o processo natural – explica o músico que é membro do grupo musical Unamérica há 40 anos.

Ele explica que nos processos artísticos muito antigo, como a ópera popular, os integrantes eram músicos, bailarinos, atores e cantores.

– Depois foi especificando… mas nossa performace resgata isso. Buscamos ter a arte como ferramenta a motivar as pessoas e falar das mazelas a nossa volta. Mas sempre apresentar propostas possíveis de mudança e condições melhore de vida para todos nós.

Killiari agradece ao final do espetáculo, com o canal de São Gonçalo ao fundo

A atividade foi mais uma etapa da acolhida semestral da UFPEL. Além do grupo Circo Andino, com a apresentação Por Que Cantamos? a seguir foi a vez do coletivo feminino de percussão BatuCantada, animaram o público. O grupo formado apenas por mulheres, animou o final de tarde com músicas de carnaval. O projeto existe desde Maio e 2022, mas a iniciativa segundo a estudante de Música, Vanessa Ramos, é trazer mais mulheres para o cenário da percussão em Pelotas.

Vanessa, mestra de bateria, conduz grupo BatuCantada

– Encontramos mulheres no cenário musical, mas sempre nas áreas que reafirmam a “feminilidade” da mulher, então a ideia e o propósito é mostrar que a mulher pode sim tocar um instrumento de percussão, tocar um tambor, e não só instrumentos como violino, piano ou canto que já é nós imposto desde que o mundo é mundo – ressalta Vanessa.

Quando os sons dos mais de 20 tambores, tamborins e agogôs retumbaram a ancestralidade sonora da cultura afro-brasileira se apresentou. Com um repertório escolhido entre grandes clássicos da MPB e samba e muito axé, em versões de muita identidade e força percussiva, acompanhados por uma dupla de voz e violão. Foi um momento de êxtase. Vanessa que também é Mestra de Bateria regia a orquestra de percussão.

– O propósito é transmitir os saberes musicais, e incentivar as mulheres a ocuparem os espaços onde há a percussão popular, sendo em escola de samba, grupos de pagodes, clube de choro, etc. Sobre o perfil das participantes não há perfil de mulheres, até porque o grupo abrange todas as mulheres, o coletivo oferece bolsas para mulheres negras, indígenas, periféricas e da comunidade LGBTQIA+.- completa Vanessa dizendo que a BatuCantada é um lugar onde nós mulheres podemos nos conectar umas com as outras e com a música percussiva.

Novos sons, novas ideias. Um ano promissor para a vivência da universidade com a sociedade, alicerçando uma convivência saudável que possibilite gerar novos pensamentos para combater antigos problemas do nosso passado colonial de 500 anos de exploração que até hoje insiste em assombrar o presente. Por isso precisamos de loucura, liberdade e inspiração. Inspiracion e libertad: solo para locos!

Comentários

comments

Você pode gostar...