Invisíveis: o impacto da redação do ENEM nas mulheres que cuidam

Em 2023 o tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) foi “Desafios para o Enfrentamento da Invisibilidade do Trabalho de Cuidado Realizado pela Mulher no Brasil”, o qual trouxe visibilidade para o trabalho informal que muitas mulheres realizam no Brasil

Foto: Le Monde Diplomatique Brasil

Por Priscila Fagundes / Em Pauta

O último Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) trouxe na redação, uma das etapas mais cruciais da prova, um tema de extrema relevância para a sociedade atual. Mais de 2,7 milhões de pessoas realizaram o exame, e no dia 5 de novembro de 2023 se depararam com o tema: “Desafios para o Enfrentamento da Invisibilidade do Trabalho de Cuidado Realizado pela Mulher no Brasil” , o qual trouxe diversas reflexões aos brasileiros. 

O trabalho de cuidado, que engloba não só o ato de cuidar daqueles que necessitam – como idosos, pessoas com deficiência, entre outros – como também o trabalho doméstico, constitui uma ação de especial relevância na sociedade, foi esse o objetivo de reflexão da redação. 

Contudo, observa-se que a dedicação de mulheres a este ofício é desvalorizada no Brasil. De acordo com o relatório “Tempo de cuidar”, elaborado pela organização Oxfam, cerca de 12,5 bilhões de horas são direcionadas a esse trabalho pelas mulheres diariamente, porém sem uma remuneração apropriada. Desse modo, visando o enfrentamento da invisibilidade das práticas de cuidado realizadas pelas mulheres no país.

Dados divulgados em 2019 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apontam que as mulheres dedicam em média 18,5 horas semanais aos afazeres domésticos e cuidado de pessoas, na comparação com 10,3 horas semanais gastas nessas atividades pelos homens. No Brasil, 85% do trabalho de cuidado é feito pelas mulheres.

Sob esse viés, destaca-se que a não visibilidade das mulheres nos trabalhos de cuidado está associada à construção social dos papéis de gênero. Tal fato ocorre pois cuidar, zelar, assistir e responsabilizar-se são associados, socialmente, ao conjunto de comportamentos considerados femininos. Comprova-se isso a partir de um estudo realizado pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), publicado em 2023, no qual o resultado aponta que o simples fato de ser mulher acarreta aumento de 11 horas semanais de cuidados domésticos e de trabalhos não remunerados. Logo, entende-se que é preciso haver a desconstrução dessa ideia preconcebida acerca dos valores tradicionais de gênero para que se tenha uma efetiva valorização do trabalho feminino.

Com isso, o Ministério da Educação buscou em 2023 chamar a atenção da população através da redação. Rafaela Pinto Müller, de 35 anos, pelotense, advogada e empresária, foi a única pessoa na cidade de Pelotas que gabaritou a redação do ENEM, atingindo a nota máxima de mil pontos. Ela conta que a importância do assunto é justamente a resposta do tema. “Trazer trazer visibilidade de uma atividade realizada diariamente, que não é percebida pela maioria das pessoas. E como esse tempo disponibilizado para o trabalho de cuidado desempenhado pela mulher obriga que ela abdique de uma jornada profissional muitas vezes, prejudica a possibilidade de seu sucesso pessoal, como por exemplo, no mercado de trabalho”, afirma. 

Rafaela diz que o tema veio como uma forma de atentar as pessoas sobre a importância desse trabalho na vida da sociedade em geral, em como ele é fundamental para que as crianças sejam criadas, os idosos cuidados, as roupas lavadas, as pessoas alimentadas, dentre vários outros exemplos. E como o fato de ele não ser percebido, desmerece quem realiza e não valoriza ou remunera de forma correta e justa. Ela também disse que por ser mulher já esteve muitas vezes nessa posição, mas que esse trabalho nunca chegou a prejudicar sua vida. “Embora eu faça essa atividade sozinha em casa, não tenho outras pessoas que dependam de mim, o que diminui a carga de trabalho. Mas sei que foi uma escolha minha ao não ter filhos e ainda ter meus pais com saúde. Mas cedo ou tarde, essa vai ser mais uma atividade que precisarei conciliar com a minha rotina profissional e certamente irá me sobrecarregar, como já acontece com a maioria das mulheres” destaca.

Luna Goulart, de 18 anos, estudante, afirma que achou o tema de grande relevância na vida das mulheres, ela prestou o vestibular em busca de ser aprovada em uma Universidade Federal. “Infelizmente ainda vivemos em uma cultura patriarcal, onde só a mulher lava, passa, seca, limpa e cuida da casa. Muitas delas começam essa trabalho logo na infância, cuidando dos irmãos e da casa enquanto os pais trabalham fora, e como consequência, faltam a escola”, pontua. 

A estudante diz que devido a sua boa condição de vida, durante a sua infância, a mãe proporcionava ajuda doméstica em casa. Mas na falta dela, ela automaticamente, como a única filha mulher, contribuía nos afazeres. “Enquanto meus irmãos homens não se preocupavam tanto com as tarefas de casa, por acharem normal as mulheres darem conta de tudo sempre, eu me sentia no dever de seguir o que minha mãe sempre fazia”, contou. 

Já a também estudante, Amanda Schmechel, também de 18 anos, diz que conhece muitas mulheres que já passaram ou passam por essa situação, mas que ela nunca se enxergou nessa posição, por nunca ter precisado. “Existem milhares de mulheres espalhados pelo mundo que suportam esse tipo de situação, algumas delas até já tentaram expor um pouco de sua rotina de invisibilidade, a fim de melhorar sua qualidade de vida como cidadã, como uma brasileira chamada Carolina de Jesus, que escreveu o livro “Quarto de despejo” como forma de denúncia da histórica alienação da mulher em meio a conjuntura nacional”, relata.

A persistência de estereótipos de gênero e a falta de políticas públicas adequadas são barreiras significativas para a mudança desse cenário. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) ressalta que a desigualdade de gênero no trabalho de cuidado não apenas sobrecarrega as mulheres, mas também impede o progresso social e econômico. 

Débora Borges Treichel, de 43 anos, é casada, mãe de três filhos e ainda concilia a vida pessoal com a carreira de comunicadora e radialista. Ela diz que esse tema traz um assunto de desigualdade entre homens e mulheres. “O serviço de casa não acaba nunca. Realizamos sem nenhuma remuneração ou alguém pra identificar que levamos horas para arrumar uma casa mas ninguém vê, ou quando realizamos trabalhos que não fomos contratadas para executá-lo”, enfatiza. 

Em sua opinião, a maioria das mulheres vive ou convive com essa situação. “A batalha é diária, mas vejo que muita coisa já melhorou e que em muitos lugares hoje em dia se vê a mulher fazendo aquele trabalho que antigamente só homens realizavam”, finaliza. 

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