Doze Anos de escravidão é filme em absoluto estado de arte e necessário socialmente

Por Alex Sampaio Pires

 

Sem ser didática, saga da escravidão de Solomon Northup alerta futuras gerações sobre período obscuro da história envolvendo a América

O novo filme do cineasta Steve McQueen, “Doze Anos de Escravidão”, poderia ser descrito como a saga de um homem livre em busca da liberdade. Livre porque, legalmente, o negro Solomon Northup não era um escravo. Indivíduo alfabetizado, viajado, com talentos musicais, vivia em uma boa casa com a esposa e os filhos, andava bem vestido e por onde bem desejasse. No entanto, ao ser enganado por dois homens com uma falsa proposta de emprego, viu seus documentos serem confiscados e desceu ao inferno por longos doze anos, onde viveu como escravo e adquiriu o conhecimento da situação verdadeira da maioria dos companheiros de cor que viviam nos Estados Unidos.

A história, narrada em livro pelo próprio Northup após o fim do seu calvário, ficou por muito tempo desconhecida do grande público.  No entanto, através das tintas fortes do diretor britânico, responsável pela transposição da obra literária para o cinema, o mundo finalmente conheceu este pedaço, pequeno, mas tão simbólico e significativo, da escravização que ocorreu na mais importante potência mundial. E talvez, um filme nunca tenha sido tão necessário como este. Em um momento onde a sociedade afirma não haver mais preconceito enquanto muitos de seus membros vivem à sombra da hipocrisia, praticando a sua indiferença baseada em credos e cores, a coragem estilística e narrativa de um dos cineastas mais distintos dos anos 2000 se faz como uma arma importante para alertar a todos nós do quão nojento e repulsivo o ser humano pode ser.

McQueen não economiza nem perdoa nossos olhos. Sem absolutamente nenhum medo, ele se mostra indisposto a qualquer concessão e prefere apostar no realismo e na crueldade para se aproximar da realidade terrível que envolveu todo o processo de escravização na América em uma sociedade obsoleta. As chibatadas daqueles que eram amarrados ao tronco são colocadas em longas sequências ao mesmo tempo que não há o menor pudor no sangue que jorra ou nas costas completamente dilaceradas.

Mais que a jornada de um homem em busca da própria liberdade, “Doze Anos de Escravidão” é o caminho da tomada do conhecimento de homens e mulheres que sofriam sem possuir qualquer culpa, como se o fato da sua cor de pele fosse alguma espécie de crime, e de brancos que se consideravam bons cristãos por darem comida de qualidade a pessoas das quais tiravam o direito de ir e vir. E na medida em que o protagonista sai de sua alienação para conhecer a verdade sobre os fatos, os olhos dos espectadores também vão tomando a mesma consciência através de uma atuação que faz brilhar Chiwetel Ejiofor. Na pele de Solomon, sua busca pela própria sobrevivência é absolutamente comovente e crível sob o aspecto de um ator que compreende a necessidade de evitar floreios em um texto que deseja justamente o contrário. Ejiofor imprime, aos poucos, o desconforto e o cansaço físico que seus doze anos de sofrimento colocam nas costas, modificando a postura corporal e até mesmo a maneira de andar de forma sútil e crível.

Do outro lado está Michael Fassbender, irrepreensível como o senhor de escravos Edwin Epps, em sua terceira parceria com Steve McQueen. Ele é um contraponto perfeito a Willian Ford, vivido com eficiência por Benedict Cumberbatch. Enquanto Willian é o retrato da parcela de indivíduos que prefere se manter na alienação, sabendo que negros são iguais a qualquer outra pessoa e até os tratando bem, mas preferindo viver na ignorância pela preguiça do enfrentamento na busca por igualdade, Edwin é a representação dos homens que possuíam o preconceito entranhando nas veias. Acima de tudo, ele acreditava na sua superioridade perante os escravos, os quais via como propriedade. Vivia na ignorância não por preguiça ou conforto, mas pela crença, por um desconhecimento que fazia parte do seu ser no aspecto mais íntimo e, apesar de um carinho, torto e equivocado, mas bastante verdadeiro dentro das possibilidades, que sentia por uma escrava, jamais conseguiu compreender ou lidar com tal sentimento porque seu entendimento não o abarcava. Carregado de postura rígida e olhar amedrontador, Fassbender é poderoso e enérgico em cena, tornando palpável um personagem que, de tão monstruoso, poderia cair na mera caricatura, não fosse ele tão talentoso.

Mas quem rouba a cena, apesar dos poucos minutos em cena, é Lupita Nyong’o como a escrava Patsey, que apesar das agruras, ainda tenta  evitar a perda da alegria que a dança lhe proporciona, e colhe algodão mais do que qualquer outro homem que trabalhe na fazenda. Uma mulher que nasceu escrava, e nem sabe o porquê disso. Apenas tenta se manter viva em um ambiente hostil de onde talvez nunca consiga sair. Nyong’o é um achado como atriz, e provavelmente, tem um futuro promissor na sétima arte.

Após conhecer esses e outros personagens, como o interpretado por Brad Pitt em participação curta, mas crucial, Solomon Northup jamais seria o mesmo, pois a partir de então, carregaria para sempre na consciência uma ferida que sangraria pelo próximo século em toda a América, e que ainda não cicatrizou. As causas e o ano da morte do homem que, em 12 anos, entendeu o significado da liberdade, são desconhecidas. Mas, felizmente, o cinema ressuscitou a sua história, como um grito de alerta para que as futuras gerações saiam de sua complacência e também possam ter a mesma compreensão do que significa ser livre.

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