Até quando é ficção?

Por Estevan Garcia

(Foto: Divulgação)

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Olá! Meu nome é Rafael e hoje vou contar a minha história pra vocês.

Meu pai se chama Jair, mas é mais conhecido aqui no bairro como Jairzão, devido à sua estatura e porte físico.  Trabalha como gari, desde que eu me entendo por gente.  Minha mãe é costureira. Aprendeu a profissão com a mãe dela, que aprendeu com a avó.

Meus pais se conheceram aqui no bairro mesmo. Meu pai jogava futebol com o meu tio, irmão da mãe, em um campinho de terra que tem ali no Obelisco, no bairro Areal. Um dia, após uma partida em que o time do pai e do tio ganhou, os jogadores resolveram comemorar em um bar ali na rua nove. O tio convidou a mãe. Ela foi, meio contrariada. Lá conheceu o zagueiro do time: meu pai. Conversa vai, conversa vem, se apaixonaram. Fruto desse amor, eu nasci. Mas não só eu. Eu e mais três: Jairton, Marcio e Caroline.

Nasci em Pelotas, no Hospital Beneficência Portuguesa, em 2 de janeiro de 2000.  Sempre morei em um chalé pequeno, de dois quartos, no Bairro Dunas, a duas quadras do Jardim das Tradições. Minha infância foi boa. Durante o ensino fundamental, eu estudava no turno da tarde no Presidente Dutra, escola municipal localizada ali no bairro. Durante a manhã, eu jogava bola com os meus irmãos e amigos.  Futebol é uma paixão de família. A gente jogava aqui na rua mesmo. Fazia as traves com os chinelos. Difícil era quando a bola ia por cima do chinelo. Quem tinha marcado dizia que era gol. Quem tinha sofrido o gol dizia que não valia. Sempre dava confusão. O ensino médio, eu fiz em uma escola ali no Bairro Obelisco. A mãe achava que a educação lá era melhor. Desde sempre ela me diz: “Mesmo que eu e o teu pai não tenhamos feito faculdade, tu vais fazer!”. E eu sempre acreditei nisso. No primeiro ano do ensino médio já tinha decidido: queria fazer o curso de direito. Defender os outros. Tirar inocentes da cadeia. Que nem a gente via na novela das oito.

No entanto, depois do que me aconteceu já nem acredito mais nisso. No final de 2015, o apresentador do Jornal Nacional falou algo sobre ter diminuído a maioridade penal. Gente de dezesseis anos agora poderia ir pra cadeia. Eu não dei muita importância, afinal não sou bandido.

Mas a vida nos derruba. Dois meses depois disso, o namorado da minha irmã ganhou uns ingressos pra uma festa. Estavam sorteando em uma rádio e ele foi o ganhador. Pegou uma chuva uns dias antes do evento e ficou doente, não poderia ir. Minha irmã me deu os ingressos dizendo: “Vai, se diverte”. Coloquei minha roupa nova, aquela que eu guardava para sair, calcei meu tênis de marca que ganhei no Natal, passei gel no cabelo, encontrei meus amigos, e fui.

O lugar era muito grande. Tinha muita gente. As luzes piscavam. Eu não conseguia enxergar ninguém. Muito menos ouvir. O tuntz tuntz das caixas de som era alto demais. Mas já que estava lá, resolvi ficar um pouco. Lá pelas duas da manhã que aconteceu tudo: Um rapaz de camisa gola polo, dessas que têm um símbolo de jacaré estampado no lado esquerdo do peito, começou a discutir com um dos meus amigos. Devido à música, eu não consegui entender muito bem do que se tratava. Aproximei-me para ver. O moço estava acusando meu amigo de ter roubado seu celular. O rapaz estava completamente bêbado. Eu sabia que meu amigo não era culpado. Ele é uma das pessoas mais honestas que eu conheço. Então entrei na confusão.

Argumentei dizendo que não era verdade. Esvaziei os bolsos do meu amigo, provando que o celular não estava com ele. Não adiantava. O cara da gola polo continuava insistindo. De repente me ofendeu: “Foram vocês! Seus favelados”. Não me contive. Empurrei-o. Porém não sei medir minha força. Herdei o porte físico do meu pai e, para a minha idade, sou bem grande. O rapaz foi jogado com o empurrão. Bateu com a cabeça em uma mesa, que ficava no canto do salão e ali ficou estirado. Os amigos dele foram para sua volta. Falavam com ele, o sacodiam pelos ombros, mas ele não reagia. Fiquei assustado, mas não fugi. Fiquei ali, vendo todas aquelas pessoas me olharem com cara de nojo, desgosto. De repente chegaram os seguranças da festa. Pegaram-me pelos braços e levaram pra uma salinha separada. Chamaram a polícia. Quando estavam me levando para a delegacia, o salão já estava vazio. Ouvi ambulâncias lá fora. Os familiares do rapaz estavam na volta dele, chorando. Quando me viram, ouvi vários gritos: “Assassino!”. Não entendi. Na delegacia soube da morte. Nos dias seguintes fui a julgamento. Condenaram-me por lesão corporal seguida de morte.  Quando o juiz deu a sentença muitas pessoas aplaudiram. Minha mãe e meus irmãos choravam. Enquanto me levavam do tribunal até o carro, o qual me levaria para o presídio, as pessoas me xingavam: “assassino!”, “delinquente!”. Abaixei a cabeça e segui.

Na prisão eu era o mais novo, um dos poucos com 16 anos. O caçula. Só que esses irmãos não eram iguais aos meus. Lá tinha estupradores, traficantes, assaltantes e assassinos. Tudo que a minha mãe sempre me ensinou a não ser. Tudo que eu nunca quis ser. Colocaram-me em um quarto com mais cinco presos, devido à superlotação do presídio.  Eu sentia muito medo. Medo de ser estuprado. Medo de ser morto. Para evitar sofrer qualquer tipo de violência fiz amizade com uns homens que eram de uma espécie de gangue existente dentro do presídio. Eles eram respeitados. Comandavam o tráfico de drogas na cidade lá de dentro. Ninguém se metia com eles. Ofereceram-me proteção. Aceitei. Na hora me pareceu uma boa ideia. Aprendi muito sobre tráfico, drogas e armas. Lá fora, todos eles eram bem de vida. Tinham casas grandes, muito maiores do que o chalé que eu dividia com cinco pessoas. Possuíam carros, roupas de grife e joias. Depois de um tempo troquei o medo pela raiva. Raiva do lugar. Raiva de ver meus dias passando ali, inúteis.

Alguns anos depois, sai da cadeia. Aqui fora todos que sabiam que eu havia sido preso me olhavam com cara de nojo. Tentei alguns empregos. Não consegui. A sociedade ainda é preconceituosa. Ninguém quer um ex-presidiário trabalhando no seu estabelecimento. Além disso, eu nem tinha terminado o ensino médio quando fui preso.

 Eu tinha que me sustentar. Lembrei-me dos amigos da prisão, os quais me defenderam. Não tive saída. Entrei para o ramo de tráfico de drogas. De futuro advogado a traficante em um empurrão. Obrigado Brasil.

Pelotas, 02 de julho de 2021

Isso é uma ficção. Os nomes são inventados e a história não aconteceu de fato. Pelo menos não até agora. No dia 02 de julho de 2015, um dia após a rejeição da aprovação da PEC 171, que diminuiria de maioridade penal de 18 para 16 anos, o Presidente da Câmara de Deputados, Eduardo Cunha, orquestrou uma manobra que tornou a aprovação possível na casa. Um passo para que muitos Paulos, Rafaels, Marcios, Marias e Anas façam dessa ficção uma história real.

No entanto, ainda há tempo. Para que a PEC 171 seja colocada em prática, precisa passar pelo segundo turno na câmara de deputados e por mais duas votações no senado.

Que essa história fique só na imaginação.

#Reduçãonãoésolução

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