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Informe Nº 10

O décimo informe pretende apresentar um relato a respeito dos debates dos dois últimos eventos do Ciclo de Palestras organizado pelo Observatório.

 

O primeiro foi referente à importância da Extensão Rural e da Assistência Técnica, em um contexto de incertezas, e contou com a participação de Alisson Vicente Zarnott (Docente da Universidade Federal de Santa Maria) Fernando Horn (Engenheiro Agrônomo e Extensionista da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural – Emater/RS) e Roni Bonow (Coordenador do Centro de Apoio e Promoção da Agroecologia – CAPA Pelotas).

 

O segundo evento, aqui relatado, tratou da temática do Desenvolvimento Territorial, Sociobiodiversidade e Agricultura familiar, e contou com a participação dos seguintes convidados: Marcos Flávio Silva Borba (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – Embrapa Pecuária Sul) e Gabriela Peixoto Coelho de Souza (Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS).

 

A Importância da Extensão Rural e da Assistência Técnica em um Contexto de Incertezas
No primeiro evento os palestrantes destacaram diversas questões atinentes às dificuldades e potencialidades da extensão rural no contexto atual.

Alisson Vicente Zarnott - UFSM
Alisson Vicente Zarnott destacou a necessidade de incorporarmos, em nossas análises, o componente da incerteza. Mais do que um fator a ser combatido, as incertezas crescentes, as quais a humanidade – e o rural – estão expostos, necessitam estar presentes no planejamento e nas ações de intervenção. A pandemia da Covid-19, nesse sentido, expôs, de modo imediato, esse contexto em diversos planos (climático, sanitário, comportamental, econômico, etc.).
Na contramão da realidade de incertezas, o professor Alisson destacou as certezas que a comunidade científica tem sobre o cenário atual. Em primeiro lugar, há uma disputa entre visões de mundo e de perspectivas que se estende para a agricultura e ao papel desempenhado pelo Estado. Para ele, os efeitos trazidos pela pandemia solaparam as bases da perspectiva neoliberal de diminuição da presença do Estado, expondo a importância desse ente na regulação da vida social em todos os setores (saúde pública; emprego; salário; agricultura). Em segundo lugar, destacou a resiliência da dimensão territorial e local como alternativa aos impérios alimentares e a uma agricultura financeirizada e globalizada. Como terceiro aspecto, destacou a alternativa proposta de mitigação da crise climática via adoção da agenda dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) como instrumento adequado de planejamento de políticas públicas e, por fim, a necessidade de adoção de práticas menos predatórias de produção agropecuária que tenham na relocalização e nas perspectivas da economia ecológica, solidária e ambiental suas bases.
Essas certezas, contudo, não têm sido evidenciadas no Brasil. Segundo o professor, o país ainda tem priorizado um modelo de desenvolvimento predatório que tem avançado sobre as populações e os modos de vida tradicionais e sido pautado pelo enfraquecimento da presença do Estado. Isso tem resultado em uma extensão rural nada promissora, que é deficitária em relação a sua cobertura (atende menos de 50% das famílias rurais do RS) e calcada em uma visão difusionista, que reproduz o modelo de desenvolvimento citado. Assim, reivindica-se um novo modelo de extensão rural que tenha uma definição política e ideológica, que privilegie os povos tradicionais, adote o paradigma crítico popular (pesquisa-ação) e que inclua, do ponto de vista global, os debates dos ODS e da alimentação. Na dimensão local, incentive políticas territoriais sustentáveis que rompam com o modelo de extensão rural baseado apenas em uma visão setorial.
Fernando Horn - EMATER
Por sua vez, o extensionista Fernando Horn da Emater/RS destacou que nos últimos anos a assistência técnica tem crescido em todos os municípios do Território Zona Sul. Porém, observa-se que assistência técnica é diferente de extensão rural: enquanto a primeira tem como foco as atividades e o atendimento individualizado, geralmente executado por instituições privadas, a segunda possui caráter público, baseada na ação coletiva e visão sistêmica. Nesse sentido, destaca-se a dificuldade da ATER pública dar conta de um universo que se apresenta com tamanha diversidade. Como exemplo, ele salientou o fato de que o território da Zona Sul do RS conta com cerca de 22 munícipios, nos quais existem cerca de 45 mil Declarações de Aptidão ao PRONAF (DAP). Desse total de DAP, a Emater local é responsável por apenas 12 a 15 mil..
Apesar dessas dificuldades e limites, o extensionista destaca o papel desempenhado pela Emater/RS com a emergência da pandemia, evidenciando a importância da ATER pública como mecanismo de desenvolvimento.
Segundo ele, diversas ações foram sendo realizadas desde o início da pandemia. Prioritariamente, a Emater/RS agiu para garantir o funcionamento das feiras e mercados locais (PNAE e PAA), de forma a evitar desabastecimento e desperdício de alimentos. Organizou e criou sistemas de entrega domiciliar de alimentos (telefones, Whatsapp, Facebook, e-mail dos agricultores), além das “feiras virtuais”. Destacou ainda a atuação na elaboração de cards e informes técnicos mais aprofundados para orientar as equipes municipais nas suas interações com os agricultores. Além disso, citou a definição de protocolos de ação dos técnicos com os agricultores (agendamento prévio; distanciamento; higienização; documentos para registros das atividades; encerramento). Relatou que foram mantidas as perícias de PROAGRO, para atender os prazos legais e, finalmente, que a Emater/RS auxiliou no processo de adaptação de uma agroindústria local, que passou a produzir álcool gel 70%, para destinar à população.
Roni Bonow - CAPA
No último bloco, o coordenador do Centro de Apoio e Promoção da Agroecologia – CAPA Pelotas, Roni Bonow, iniciou sua fala questionando o que queremos para o meio rural, destacando que essa população também possui direito a uma vida digna. Dessa forma, a função da extensão rural é atuar para que isso se concretize, sendo o papel do CAPA empoderar os agricultores para que eles possam acessar espaços de discussão e ter voz nas suas demandas.
Nesse sentido, Roni destacou que recentemente o CAPA completou 22 anos de atuação, constituindo-se em uma Fundação, que atua nos três estados da região Sul do Brasil. O trabalho é coletivo e feito com grupos organizados de agricultores, e não de modo individualizado. A extensão rural desenvolvida vai além da propriedade, da assessoria à produção, sendo que o CAPA atende também a estruturação de processos de comercialização, mercados e feiras, cooperativas e acesso ao PNAE, assim como ao PAA. Roni destacou que o CAPA foi o primeiro executor do PAA no país, no ano de 2013. Dessa forma, o CAPA pauta-se por uma visão de desenvolvimento territorial sustentável que busca envolver os agricultores através da participação, tendo como papel central da ação extensionista os processos organizativos do tecido social.
Como exemplos de respostas coletivas à pandemia, Roni apresentou algumas ações que o CAPA vem desenvolvendo, tais como realização de uma chamada pública para diversificação de áreas produtoras de tabaco; implantação de 2 feiras agroecológicas em Pelotas; construção de planos de contingência para manutenção das feiras que já existem; ações com quilombolas para acesso aos recursos (via programa Estratégia da Saúde Quilombola) a essas populações para ações humanitárias; acompanhamento das cooperativas para acesso ao PNAE.
Por fim, ele destacou que a ATER é um processo coletivo, que avança conforme as ações públicas (do Estado) são desenvolvidas para apoiar projetos e processos da agricultura familiar. Tais processos, ponderou, caminham mais rápido quando existem recursos e políticas públicas disponíveis, e é esta uma das principais diferenças da ATER pública em relação a assistência técnica privada, que é menos dependente do Estado.
Desenvolvimento Territorial, Sociobiodiversidade e Agricultura Familiar
No segundo evento, ocorrido em 30/09/2020, abordou-se a temática do Desenvolvimento Territorial, Sociobiodiversidade e Agricultura familiar.

Marcos Flávio Silva Borba - EMBRAPA
O pesquisador Marcos Flávio Silva Borba iniciou sua fala destacando a visão crítica da temática do desenvolvimento, que se acelerou com o contexto da pandemia. Ele relatou que a pandemia não criou nenhuma nova condição, mas estimulou uma série de ideias que estavam em elaboração há algum tempo.
O pesquisador também observou questões relacionadas com o crescimento da economia e o declínio dos recursos naturais. Além disso, destacou que a economia é uma dimensão que se posiciona entre natureza e sociedade, e que nossos modos de vida irão depender da apropriação da natureza.
Com relação ao desenvolvimento territorial e sociobiodiversidade, observou que as ações podem ser construídas sob outras perspectivas, por exemplo, no Bioma Pampa, a partir do que já é tradicional na região, construindo novas possibilidades, com alternativas de transformação da realidade, contempladas sob uma lógica de desenvolvimento.
A região apresenta um forte componente cultural, com espaços socialmente construídos e conservação da sociobiodiversidade a partir das tradições. Não se fala da dimensão meramente geográfica, mas de um espaço que se configura e se transforma ao longo do tempo, porque seus limites mudam pela natureza e influência das organizações sociais.
Os espaços são dotados de identidade, como elemento fundamental que permite aos territórios estabelecer estratégias de diferenciação de outros espaços, através de um processo de transformação social, econômica e intencional.. Observou ainda que, quando não é reconhecida a identidade nos territórios, isso, significa fazer a mesma coisa em qualquer lugar.
Nesse sentido, entende-se que o território deve ser um promotor de diferenças e não de homogeneidades. O palestrante citou a região do bioma Pampa como a mais conservada do Rio Grande do Sul, com uma produção ecológica por contingência e se apresenta como provedora de serviços ecossistêmicos, mas que ainda há elementos fundantes para evoluir na produção pecuária.
Ao voltar ao debate acerca do desenvolvimento, ressaltou que não é algo aplicável ou que se possa construir, mas é parte da realidade para a construção de um modelo, e não o inverso, como temos experimentado até hoje. Dentro dessa perspectiva, finaliza considerando que muitas vezes o local é desqualificado, associado com incapacidades, inferioridade e pobreza, enquanto o mundo ideal seria o global. Essa organização em rede para a qualificação do local tem que ser assumida coletivamente, com estratégias para diferenciar os produtos, observando que “os produtos são únicos porque o lugar é único”.
Gabriela Peixoto Coelho de Souza - UFRGS
Já a segunda palestrante, Gabriela Peixoto Coelho de Souza, fez uma abordagem mais relacionada à sociobiodiversidade e aos projetos que vem trabalhando nesse âmbito. Um deles é o Círculo de Referência em Agroecologia, Sociobiodiversidade, Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional – ASSSAN Círculo, projeto criado em 2019, que trabalha com dinâmicas agroecológicas e de proteção da biodiversidade, em parceria com outros centros de referência alimentar.
Durante a pandemia, foram realizadas ações com atividades de Webseries, uma delas relacionada aos saberes e fazeres da sociobiodiversidade, com enfoque na temática da segurança alimentar no contexto da pandemia. A palestrante citou a desnutrição, a obesidade e as mudanças climáticas como as três grandes pandemias combinadas que acometem o mundo. E ainda, ressaltou dois grandes modelos de desenvolvimento dos sistemas alimentares – um relacionado à concentração de capital e outro à soberania, com características diferenciadas.
A palestrante elencou alguns trabalhos realizados nos territórios rurais, observando que no Brasil há 243 territórios rurais, 18 no Rio Grande do Sul, e que o Núcleo de Extensão e Desenvolvimento Territorial (NEDET), do qual faz parte, trabalha com dois territórios – Campos de Cima da Serra e Litoral. A equipe de trabalho faz ações voltadas à agroecologia e manejo da sociobiodiversidade, dando ênfase aos produtos nativos produzidos nas regiões de estudo.
Com relação à conservação e preservação da sociobiodiversidade, ressaltou a necessidade de um plano de ação nacional de conservação, com reposição florestal obrigatória, destacando que as questões de conservação e uso sustentável deveriam estar no cerne no processo de desenvolvimento do país. As redes nacionais e internacionais já tentam se articular para isso, dentre elas: Rede Glocal de Sustentabilidade Alimentar e Diálogo de Saberes para a América Latina e Caribe; Nutri SSAN – plataforma tecnológica de comunicação, interação virtual e cooperação em rede e se incorpora às estratégias de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (SSAN) e Aliança pela alimentação adequada e saudável; e Redelassan – Rede Latino-Americana de ensino, pesquisa e extensão em soberania e segurança alimentar e nutricional (Rede Latino-Americana de SSAN).
Um dos questionamentos, ao final do Ciclo de palestras, realizado por um dos participantes, foi o seguinte: qual(is) seria(m) nossa(s) estratégia(s) e nosso poder de intervenção positiva no que tange às instituições (ensino, pesquisa, extensão) atualmente? A situação é extremamente crítica (pobreza aumentando; recursos públicos diminuindo; etc.) e os cenários não são nada bons. Que saídas teríamos?
O palestrante Marcos Borba respondeu que é necessária a construção de alternativas a partir das possibilidades, que são ricas. A partir da realidade, não do acesso a modelos prontos. A ideia é conectar indivíduos em redes, ou seja, a partir do local, construir redes que se relacionem de maneira própria com o global.
Gabriela citou a valorização da gastronomia, que acaba por valorizar a sociobiodiversidade, através de uma conexão a partir do consumo dessa sociobiodiversidade. Também observou a importância do papel das instituições de mediação, como as universidades, Embrapa, Emater e demais instituições públicas na construção de alternativas sustentáveis ao cenário crítico pelo qual estamos passando.
Em Conclusão
Ao final dos debates, restou, aos organizadores do Ciclo de Palestras promovido pelo Observatório da Problemática da Seca e da Covid-19 na Agricultura Familiar da Região Sul do Rio Grande do Sul, o sentimento de que existem antigos desafios a enfrentar, agora somados aos novos, decorrentes da pandemia e das condições climáticas agravadas pela seca. O ambiente de pandemia não pode desmobilizar as instituições, mas, ao contrário, deve estimular a busca conjunta de alternativas para o trabalho com as populações rurais, em especial aquelas que ocupam territórios em estágio mais defasado de desenvolvimento.
O atual modelo de atuação das instituições públicas deve ser repensado e, cada vez mais, suas estruturas públicas de ensino, pesquisa, assistência e extensão devem estar posicionadas ao lado das populações, em frequente debate, resignificando-se, para resistir às propostas de sucateamento ou de descomprometimento do Estado.

 

Você pode acessar e baixar o Informe Nº 10 em PDF .

(Em Breve) Acesse também em  podcast  no Anchor  ou no Spotify

Pelotas, 16 de outubro de 2020

Observatório da Problemática da Seca e da Covid-19 na Agricultura Familiar da Região Sul do Rio Grande do Sul – Grupo de Professores do Departamento de Ciências Sociais Agrárias (DCSA) da Faculdade de Agronomia Eliseu Maciel (FAEM) da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), estudantes e convidados externos.

Abel Cassol (UFPel); Alberi Noronha (Embrapa Clima Temperado); Alessandra Bandeira da Rosa (UFPel); Alice Pereira Lourenson (UFPel); Fernanda Dias de Avila (UFPel); Fernando Luiz Horn (Emater/RS-Ascar/Pelotas); Gabrielito Rauter Menezes (UFPel); Henrique Andrade Furtado de Mendonça (UFPel); Juliana Cristina Franz (UFPel); Letícia Paludo Vargas (UFPel); Lúcio André de Oliveira Fernandes (UFPel); Marcelo Dias (UFPel); Maria Laura Victória Marques (UFPel); Mário Conill Gomes (UFPel); Mário Duarte Canever (UFPel); Patrícia Martins da Silva – Universidade Federal de Pelotas (UFPel); Raul Celso Grehs (Embrapa Clima Temperado); Tatiana Porto de Souza (UFPel).