O oitavo informe pretende apresentar o debate realizado em um dos eventos do Ciclo de palestras organizado pelo Observatório. Realiza-se uma breve análise das discussões que ocorreram no decorrer das palestras relacionadas à Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional em tempos de pandemia, realizada no dia 05/08/20.
Palestrantes e tema do evento
A ideia central foi tratar do acesso, da oferta e da disponibilidade de alimentos com qualidade para a população frente aos problemas que estamos enfrentando. Para isso, foram convidadas as seguintes palestrantes: Cristine Jaques Ribeiro (Docente no Pós-graduação em Política Social e Direitos Humanos e no Curso de Graduação de Serviço Social UCPel e integrante do Fórum em Defesa da Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional de Pelotas e do Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável (COMSEA), Eliana Gomes Bender (Nutricionista. Professora de saúde pública da UFPel e também integrante do COMSEA-Pelotas) e Rosiéli Cristiane Ludtke (camponesa, militante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e mestre em Agroecologia e Desenvolvimento Rural Sustentável pela UFFS).
Cristine Ribeiro
Fórum em Defesa da Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional de Pelotas
A primeira fala foi realizada pela Professora Cristine Ribeiro, que iniciou reiterando a importância do Fórum em Defesa da Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional da região, que, especialmente nesse momento de dificuldades por conta da pandemia da Covid-19, tem atuado diretamente na garantia do acesso alimentar das famílias em situação de vulnerabilidade social por meio da distribuição de produtos da agricultura familiar.
Efeitos da Revolução Verde
A palestrante fez uma abordagem a respeito da importância da construção do conceito de soberania e segurança alimentar sob o ponto de vista da defesa do planeta. A partir da problemática advinda da Revolução verde e das tecnologias utilizadas no campo, o saber científico foi utilizado como mecanismo para destruição da vida, fortalecendo a construção da luta em defesa da soberania alimentar. Os pacotes tecnológicos intensificaram a perda da biodiversidade, dilacerando os conhecimentos da floresta e desconsiderando os saberes locais.
Segurança Alimentar, Agroecologia e Populações Tradicionais
Contrariamente, a professora destacou que as populações tradicionais (indígenas, quilombolas, camponeses, pescadores artesanais e outros), com seus diferentes modos de existência continuam trabalhando com a prática do cuidado com a vida e com a natureza. Esses diferentes modos articulam-se em torno da Agroecologia, que produz outras relações entre os seres e representa o principal vínculo dos agricultores com a soberania alimentar. A palestrante reiterou que é possível ter uma soberania criada a partir da luta desses povos.
Com relação ao conceito de soberania alimentar, ela destacou seu surgimento a partir do conceito de segurança alimentar, elaborado pela Organização das Nações Unidas (ONU) na década de 1970. No ano de 1996, a Via Campesina, na segunda Conferência Mundial de segurança alimentar sugere pautar o conceito de soberania alimentar vinculado ao de soberania popular, através do controle da distribuição dos alimentos. A ideia central foi defender os saberes locais da produção de alimentos, sem agrotóxicos, sem transgenia.
Alguns dos princípios da soberania alimentar difundidos pela Via Campesina foram destacados: diversificação produtiva, defesa dos saberes tradicionais, utilização do sistema de produção agroecológico, defesa das pequenas unidades de produção, incentivo à agroindústria, acesso à educação para todos, novas relações de trabalho, controle das sementes e denúncia da desigualdade.
Alimentos de qualidade: um direito de todos
Por fim, a Professora Cristine Ribeiro observou que a periferia tem direito a alimentos saudáveis, mas que isso só é possível com soberania alimentar. Para isso, são necessárias políticas públicas locais e melhores condições de trabalho para que a agricultura familiar distribua seus alimentos. Por fim, ela destacou que o combate à pandemia só é possível com uma imunidade adequada, e isso é viável apenas com produção agroecológica.
Eliana Bender
O Modelo produtivo brasileiro
Já a Professora Eliana Bender também observou os problemas do modelo de produção utilizado no Brasil. O desenvolvimento rural, segundo ela, é marcado basicamente por duas formas de produção agrícola, que evocam diferentes modelos de desenvolvimento: um agroexportador assentado em grandes estabelecimentos produtores de commodities; e outro baseado na agricultura familiar, estruturado em pequenas propriedades, diversificada e voltada ao mercado interno.
Soberania e Segurança Alimentar: avanços e desafios
No Brasil, com relação à soberania e segurança alimentar, ela reiterou as conquistas alcançadas, especialmente que o debate ocorreu a partir da iniciativa de organizações sociais, da academia e de outros atores vinculados ao meio rural. Por isso, foram incluídos objetivos estratégicos e permanentes, nas ações e políticas públicas para esse setor. Nos outros países não há este enfoque de uma maneira tão clara, já que a abordagem é mais do ponto de vista da inocuidade dos alimentos. Além disso, o termo nutricional foi acrescentado na formulação do conceito brasileiro para interligar dois enfoques: socioeconômico e de saúde e nutrição.
Além disso, ela destacou duas dimensões relevantes relacionados ao tema: uma referente ao modelo de produção, e outra às questões de qualidade alimentar predominantes, destacando que o direito humano à alimentação adequada e saudável necessita combater a fome, a desnutrição e garantir o acesso a alimentos saudáveis.
As incertezas e o futuro
A professora destacou a volta do Brasil ao mapa da fome, apesar das políticas e programas voltados à soberania e segurança alimentar vigentes até recentemente. Um exemplo é o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que atua na perspectiva de produção e distribuição de alimentos.
Com relação à pandemia da Covid-19, a partir da paralisação das atividades escolares, a distribuição da merenda escolar foi afetada em diversas regiões do país, interrompendo circuitos de comercialização e prejudicando o acesso a Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) dos escolares. Por isso, no atual momento, não há como pensar SAN sem pensar em estratégias de produção e consumo. Por isso, a professora destacou que um dos desafios do COMSEA/Pelotas é garantir esse direito, tanto do ponto de vista das famílias das crianças, quanto dos pequenos produtores. Uma alternativa viável seria a parceria entre governo e sociedade civil.
Rosiéli Ludtke
Por último, a fala da representante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Rosiéli Ludtke, foi centrada na descrição do movimento, que organiza os pequenos agricultores em dezenove estados do Brasil, e no Rio Grande do Sul, está presente em mais de duzentos municípios. A fala abordou a produção de alimentos saudáveis e as formas de produção no campo.
Saúde e a alimentação
Ela destacou que a pandemia da Covid-19 apenas aumentou a desregulação do modelo de produção vigente, altamente dependente de insumos químicos, exacerbando problemas de saúde coletiva, como o aumento de casos de câncer, suicídio e depressão no campo.
Diferentemente, Rosiéle destacou que o movimento tem como preocupação a produção de alimentos saudáveis, que tenha como destino a mesa dos brasileiros, especialmente as classes populares. Além disso, ela destacou a importância de produzir de acordo com as necessidades alimentares das famílias, mantendo os modos de vida e as tradições culturais das comunidades rurais. Ao salientar a importância fundamental dos camponeses, que produzem mais de 70% dos alimentos consumidos no país, Rosiéle fez questão de reafirmar a importância de manter o corpo sadio, com alimentos de qualidade, especialmente nesse período de pandemia.
O Plano Camponês
Nesse sentido, a camponesa apresentou O Plano Camponês, documento elaborado pela MPA para embasar sua pauta de reivindicações. Esse Plano é centrado em cinco pontos principais: 1) Produção: sistemas camponeses de produção (antagônico às cadeias produtivas), agroindústrias (beneficiamento da produção) e desenhos organizativos (cooperativas, associações, grupos); 2) Educação/formação: escolas e universidades (contextualizadas com a realidade do campo) e educação informal; 3) Vida de qualidade: moradia, esporte, cultura, lazer e saúde popular; 4) Comunidade camponesa: elos unificadores, fator de resistência; e 5) Soberania: alimentar, energética, genética, hídrica e territorial.
Assim, ela destacou a capacidade do Plano em produzir e ofertar alimentos saudáveis e nutracêuticos, que curam e nutrem, gerando benefícios para a saúde e bem-estar dos indivíduos, além de alto valor biológico e sem produtos químicos.
Comercialização e Políticas Públicas
Por fim, Rosiéle destacou a necessidade de organização dos processos de comercialização, que podem ajudar a enfrentar os problemas gerados pela pandemia. Conforme ela, muitos agricultores do movimento que dependiam da produção de fumo, não possuíam capacidade de atuar nos mercados. Porém, a partir do trabalho do movimento e de processos coletivos de aprendizagem das famílias, foram organizados grupos e feiras em várias regiões, suprindo a demanda por alimentos saudáveis. Essa demanda, segundo ela, tem aumentado com a pandemia, colocando como desafio garantir o acesso dos agricultores aos mercados e o funcionamento seguro dos mesmos.
Finalmente, a representante relatou as perdas decorrentes da suspensão das compras do PNAE e a falta de auxílio dado pelo Estado, algo extremamente necessário para que os camponeses se mantenham no campo após a pandemia. Por último, ela destacou que o movimento tem como prioridade uma relação positiva entre sociedade e natureza.
Comentários finais
O que se percebe em comum na fala das palestrantes, é a necessidade de uma alimentação saudável para manter a imunidade dos indivíduos, especialmente em tempos de pandemia. Ao mesmo tempo, nota-se a necessidade da continuidade das políticas públicas e a formulação de novas proposições, com o objetivo de incentivar a produção de alimentos saudáveis no campo, e ressaltar a importância da comercialização dos referidos produtos ao público urbano.
Em síntese, as apresentações e debates possibilitados por essa edição do ciclo de palestras evidenciaram, a partir de diferentes perspectivas, as interfaces e evoluções na trajetória histórica e social da construção dos conceitos de segurança alimentar e soberania alimentar, o que ficou expresso, como exemplo, a partir da apresentação do plano camponês – um exercício instrumental de proposição da defesa do direito dos povos na definição dos seus modos de produção e reprodução da vida. A nós, como observatório, cabe além do diálogo e pluralidade de expressão, o acolhimento a estas e outras reflexões, tão necessárias e potencialmente transformadoras da realidade que estamos vivenciando.
Até o próximo ciclo.
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Pelotas, 17 de agosto de 2020
Observatório da Problemática da Seca e da Covid-19 na Agricultura Familiar da Região Sul do Rio Grande do Sul – Grupo de Professores do Departamento de Ciências Sociais Agrárias (DCSA) da Faculdade de Agronomia Eliseu Maciel (FAEM) da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), estudantes e convidados externos.
Abel Cassol (UFPel); Alberi Noronha (Embrapa Clima Temperado); Alessandra Bandeira da Rosa (UFPel); Alice Pereira Lourenson (UFPel); Fernanda Dias de Avila (UFPel); Fernando Luiz Horn (Emater/RS-Ascar/Pelotas); Gabrielito Rauter Menezes (UFPel); Henrique Andrade Furtado de Mendonça (UFPel); Juliana Cristina Franz (UFPel); Letícia Paludo Vargas (UFPel); Lúcio André de Oliveira Fernandes (UFPel); Marcelo Dias (UFPel); Maria Laura Victória Marques (UFPel); Mário Conill Gomes (UFPel); Mário Duarte Canever (UFPel); Patrícia Martins da Silva – Universidade Federal de Pelotas (UFPel); Raul Celso Grehs (Embrapa Clima Temperado); Tatiana Porto de Souza (UFPel).