A Academia Corpo & Dança se apresentou mais uma vez no palco do Theatro Guarany no final de 2023 com coreografias de várias modalidades e faz refletir sobre o lugar desta arte em Pelotas
Por Sarah Oliveira
Há mais de uma década, a Academia Corpo & Dança organiza um espetáculo com todos os seus alunos – crianças, adolescentes e adultos – para comemorar o final de mais um ano de atividades. Com coreografias elaboradas durante o ano inteiro, todos os bailarinos da academia passam meses ensaiando as mais de 10 coreografias planejadas e realizando projetos para arrecadar fundos para a produção.
Assim como de costume, todos os espetáculos da Corpo & Dança possuem um tema específico referente ao ano de apresentação e, desta vez, os diretores da academia Caren Jensen e Horácio Martins decidiram que o foco seriam artistas icônicos da música brasileira. Sendo planejado desde o início do ano, o tema do espetáculo é decidido em conjunto com os professores de cada gênero, a fim de que cada um possa já começar a trabalhar as ideias de coreografias que casem com o tema escolhido.
Bailarinos e pais de alunos também estão envolvidos durante toda a produção. Após formar uma pequena comissão com boa parte dos membros da academia, a produção do espetáculo começa de maneira efetiva. “A melhor parte da produção é quando a gente está superanimado [no início], mas ainda ficamos meio inseguros, né? Daí quando a gente faz a reunião com todos, (…) apresentamos a ideia e o pessoal acha ótimo, é a melhor parte, começamos a trabalhar, a desenvolver mais o tema”, descreve Caren.
Tendo a intenção de sempre apresentar algo novo e fresco para o público, a Corpo & Dança inova não somente no seu tema, mas também em suas coreografias, buscando levar ao palco uma diversidade de movimentos, corpos e formas para a sua composição. “A gente [quer] mostrar coisas novas que não sejam repetitivas e estamos sempre pensando que uma coreografia tem que ser diferente da outra, que não pode ter no palco as mesmas diagonais, a mesma roda, os mesmos desenhos coreográficos ou as mesmas cores de figurino. [Queremos] que seja sempre uma coisa diferente que, quando [as pessoas] assistam, cause aquele impacto da surpresa”, afirma a diretora Caren Jensen. Isso é reforçado pelo relato de Manoella Collares, ex-aluna da academia, ao contar que a sua parte favorita durante o processo de criação das coreografias era saber “se teria algo de diferente e que chamasse mais a atenção do público”.
Belchior, “AmarElo” e Emicida
Uma das coreografias acontece ao som de “AmarElo”, do rapper Emicida. E o professor das turmas de danças urbanas, Taison Furtado, diz que a ideia de usar a música surgiu para a apresentação deste ano, a partir da personalidade escolhida para ser homenageada pelo seu grupo, o cantor e compositor Belchior.
“O processo de criação (…) veio a partir da seleção da personalidade, da voz. E seria o Belchior, então, a partir de Belchior, a gente chega em ‘AmarElo’. É uma música do Emicida que tem um ‘sample’ de Belchior, (…) uma sonoridade urbana. A partir daí, a gente pôde desenvolver toda a nossa movimentação de danças urbanas, para que se conseguisse, de certa forma, criar símbolos em que a gente potencializasse essa existência de Belchior”.
A partir desse ponto, o coreógrafo passou a pensar como tudo que é dito na composição “AmarElo” do rapper paulista, com referência ao cantor cearense, “bate em mim, bate em nós e o quanto a gente consegue criar novos símbolos [na dança] para potencializar tudo isso”.
No processo de criação, Taison procura garantir que o que vai ser mostrado condiga com a letra da música, com os artistas e o sentimento que ela passa. Mas, para que tudo isso possa ser feito, é necessário um trabalho especial com os bailarinos que irão executar a coreografia em questão, pois, para o professor, este é um trabalho que depende “cinquenta por cento do coreógrafo e cinquenta por cento do elenco”, tanto em dedicação, quanto em confiança.
“A gente passa, antes de tudo, pelo processo de desenvolvimento da corporeidade dos alunos, dessas pessoas que vão fazer parte do elenco. Então, primeiro, a gente prepara muito bem no que diz respeito à estrutura de movimento, ao tempo, espaço, expressividade, todas essas questões”, conta Taison sobre os ensaios com o seu grupo.
Após esse trabalho ser concluído com os alunos, o processo de ensaio se instala e se estende até os últimos dias anteriores do espetáculo. Nesse processo, Taison vê o ensaio como a hora de trabalhar a repetição dos movimentos até o momento em que os bailarinos “tenham total segurança de misturar, de transbordar aquilo que eles sentem no momento da apresentação para que eles não se atentem apenas à técnica.”
Mais do que atender à técnica, o coreógrafo espera que, junto a ela, os artistas tragam as suas expressões e a sua naturalidade. “O bailarino vai estar conectado com isso, com este sentimento”. Para a ex-bailarina Manoella Collares, estar no palco conectada com a música e a coreografia era a chave principal para transmitir o sentimento e dedicação que as sequências pediam, mesmo com o nervosismo e o frio na barriga presentes. “No momento em que eu entrava no palco, o nervosismo se acentuava e eu sentia que não lembrava de nada, mas, quando a música iniciava, eu só deixava o corpo fluir conforme a melodia, eu dançava sem nem pensar nos passos. No final, sempre dava certo. Quando terminava, eu sentia que finalmente conseguia respirar, estava com o coração a mil e com muita energia no corpo, dava vontade de voltar e dançar outras várias vezes, só pra viver aquela adrenalina de novo”, recorda.
Além de idealizar a coreografia, o professor Taison também entrou no palco junto de seus alunos e encara o desafio como um grande compromisso – não só por ser mais um dançarino no palco, mas também por ter a oportunidade de contribuir para o crescimento de seus alunos. “Poder dividir o palco com pessoas que estão tendo a sua formação comigo é de uma responsabilidade e, ao mesmo tempo, de uma magia imensa, porque somos tão rápidos e todos são pessoas que vão ter a sua vida transformada pelo restante da sua existência”, reflete. “Então, é muito importante, de uma responsabilidade imensa para mim, um prazer enorme poder participar da vida dos meus alunos. Assim, poder ser esse pontinho na vida deles e entender que eles vão para a cena se divertindo, aproveitando tudo isso”, afirma.
Bailarinos e público unidos pela dança
Após tantos anos de apresentações, a intenção da Academia é a mesma: unir bailarinos e público pela dança. Para Caren Jensen, o fundamental em um espetáculo é que os artistas se sintam confortáveis para dançar e se apresentar diante de uma grande plateia como a do teatro, da mesma forma em que eles se sentem à vontade nas salas de ensaio contribuindo para a montagem de toda a produção – desde o figurino até a coreografia. Em relação ao público, o principal objetivo é demonstrar que a dança é um movimento universal e que inclui a todos que estiverem dispostos a fazer parte da sua arte.
Segundo a diretora, a expectativa em torno da resposta da plateia em relação às coreografias é sempre que “eles sintam vontade de dançar, que se sintam inseridos naquele contexto, que sejam coisas bem próximas da realidade deles, que conheçam as músicas e se envolvam mesmo, para não ficar aquela coisa como se a arte estivesse muito longe”.
Jensen também acredita que a pluralidade de seus alunos também auxilia o público a perceber o quanto a dança é inclusiva e diversa ao ver pessoas de diferentes corpos, etnias e idades em cima do palco. “O legal deles assistirem o espetáculo da academia é verem que é possível eles também dançarem, também participarem como protagonistas da arte”, afirma Caren, ao refletir sobre o impacto que a dança pode ter em quem assiste.
Agora fazendo parte do público, a estudante Manoella conta que, no final de cada espetáculo, se sente “muito orgulhosa e contente de todo esforço e trabalho duro da equipe ser recompensado com todas as pessoas na volta curtindo e elogiando”, toda a produção elaborada ao longo do ano e que se materializou no palco.
Mudanças em Pelotas
Sendo uma cidade rica em cultura, para além do doce, Pelotas também é uma cidade cuja dança é um dos movimentos que sempre esteve presente em sua existência, mas que, ao longo dos anos, sofreu com altos e baixos. Ao relembrar o início da sua carreira como dançarino, o professor Taison Furtado, do grupo juvenil e adulto de danças urbanas da academia, afirma que a cena da dança da cidade já foi completamente diferente do que é hoje: “Pelotas é uma cidade que tem uma veia artística muito bem desenvolvida. A gente tem muitos artistas, coreógrafos, professores, pessoas que são da dança e que hoje (…) estão por aí pelo mundo afora, pelo Brasil afora e que são pessoas importantíssimas para a cena nacional e internacional da dança”, diz.
Taison acredita que Pelotas tem muitos tesouros, “muitas joias que são da área da dança”. Considera que seria muito importante a cidade olhar com um carinho maior para as artes, porque “tem filhos que são muito importantes no mundo”. Ele lembra que viveu em uma época quando existiam várias mostras de danças no decorrer do ano. Isso fazia que muitas pessoas comparecessem aos espetáculos de dança. Apesar da nova realidade do cenário cultural pelotense, a dança está cada vez mais se reinventando dentro da cidade, através de novos movimentos da própria categoria.
Obstáculos enfrentados
Feito para celebrar dançarinos e professores, o espetáculo de fim de ano da academia vem da vontade de continuar trazendo a dança para o calendário cultural da região. Durante todos esses anos, apesar de constar sempre com o seu público fiel, as apresentações de grupos artísticos sofreram, – e ainda sofrem – diversos obstáculos para serem realizados.
Para Caren Jensen, professora e dona da Corpo & Dança, não somente os esforços das escolas e bailarinos da cidade devem ser os responsáveis pela reestruturação da dança na cena local, a Prefeitura também deve contribuir com incentivos para que essa arte continue presente no calendário cultural. E a reabertura do Theatro Sete de Abril seria um bom início para tal feito. Ela aponta para a dificuldade de pagar o aluguel do Theatro Guarany, que é uma empresa particular, com um custo aproximado de 7.500 reais. Além disso, há gastos com cenário, produção, estúdio, edição musical, material de divulgação, com as taxas do ECAD, voltado aos direitos autorais das músicas, Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (SSQN) e gastos com som e luz, que chegam a 5.500 reais. No Theatro Sete de Abril, os espetáculos pagam só uma porcentagem da venda dos ingressos, o que viabiliza escolas e grupos com menor infraestrutura a realizarem seus espetáculos. “Então o que falta é isso… um comprometimento da Prefeitura”, observa. “Não adianta dizer que Pelotas é uma cidade da cultura e não nos dar oportunidades.”
Apesar de ser uma jornada de produção de muito esforço e investimento, o resultado final para todos os envolvidos no momento em que as cortinas se fecham é o mesmo: gratidão. “É muito importante quando a gente pode levar os nossos trabalhos para um palco que tem uma estrutura com a iluminação e sonorização adequadas, onde o nosso público vai se sentar confortavelmente e vai conseguir assistir e fluir de uma forma extremamente tranquila, porque está se sentindo à vontade naquele espaço. Então, é sempre muito importante toda vez que a gente pode levar e apresentar o nosso trabalho em um espaço que realmente valorize ainda mais o que a gente mostre em cena, né? É muito gratificante.”, afirma Taison, ao contar como ele se sente ao levar o seu grupo para o palco do Theatro Guarany.
Mais uma vez, a Academia Corpo & Dança entregou um espetáculo rico em dança, música e cultura para o público pelotense, estendendo esse momento especial para quem assistia dos assentos do Theatro Guarany e deixando a grande expectativa do que será apresentado nos palcos dos teatros de Pelotas em 2024.
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