O rei da música Roberto Carlos contagiou público com sua voz em Gramado

Espetáculo ocorrreu na sua 51ª edição, no Rio Grande do Sul, e será um destaque na programação de fim de ano na Rede Globo amanhã      

Por Francisco Maihub       

 

Apresentação contou com a presença de convidados célebres e  milhares de fãs e turistas   Fotos: Guilherme Simões Lopes

 

O cantor Roberto Carlos, conhecido como o rei da música, fez um show no dia 12 de dezembro, com duas horas de duração, na cidade de Gramado, no Serra Park, o centro de eventos que vem sediando o “Natal Luz”. Um dos momentos mais esperados foi quando o astro, que iniciou sua carreira no tempo da Jovem Guarda, distribuiu rosas ao público. Foi a primeira vez que o Especial Roberto Carlos foi realizado na cidade gaúcha.  A TV Globo transmite a 51ª edição do programa especial de Natal, amanhã, dia 23 de dezembro, após a novela “Três Graças”.

 

A atriz Sophie Charlotte, que tem uma trajetória notável na TV e cinema, fez uma participação especial

 

O show contou com apresentação das músicas “Emoções” e “Esse cara sou eu”, além de duetos com João Gomes, Jorge Ben Jor, Fafá de Belém e Supla. A atriz Sophie Charlotte cantou com o Roberto Carlos a canção “Proposta” , tema de sua personagem em “Três Graças”.

 

Repertório musical de Roberto Carlos abre os festejos natalinos

 

Roberto Carlos teve um acidente durante gravação das cenas de abertura. Ele estava dirigindo um Cadillac do ano de 1960, mas o freio falhou quando passava numa ladeira, fazendo o veículo perder a sustentação e atingir três pessoas e, em seguida, bater numa árvore . Apesar do susto, o cantor e as outras pessoas envolvidas receberam alta hospitalar do Hospital São Miguel Arcanjo.

 

Ingresso e pulseira de identificação são lembranças para guardar para sempre

 

Entre as cerca de quatro mil pessoas, entre fãs e turistas que prestigiaram o evento, esteve Guilherme Simões Lopes, que, além de contar a sua experiência como parte do público, cedeu as suas fotos para a reportagem.  Ele ficou sabendo pelos meios de comunicação sobre o acidente envolvendo o cantor. O Cadillac é o “xodó” da coleção de automóveis do cantor e, apesar de antigo, é todo reformado na parte mecânica moderna. “Mas a entrada do Serra Park é extremamente íngreme e a produção da Globo ficou insistindo para ele ir cada vez mais devagar, até que houve a falha com o freio. Naquela situação de emergência, ele manobrou o Cadillac na descida sem freio para tentar minimizar o estrago”, observou.

 

O cantor João Gomes esteve entre os convidados que abrilhantaram a apresentação

 

Guilheme sonhava em ver um show de Roberto Carlos. Torcia para que ele voltasse a se apresentar em Porto Alegre. Mas aí começaram  os boatos de que o especial seria gravado em Gramado, sem que se soubesse se seria fechado somente para convidados ou aberto ao público. “Até que anunciaram a   venda de ingressos e e eu me programei para comprar no dia da liberação das vendas”, contou. Para aumentar a emoção, houve um atraso de uns dois dias no início da comercialização.

 

Vários cenários, performances do Rei, da orquestra e de convidados, a exemplo de Fafá de Belém, são presentes de Natal na TV

 

Para este fã, a esperança antes era ver o rei Roberto Carlos somente em um  estádio  de futebol com uma proporção muito maior, com um palco gigantesco e muitos efeitos de pirotecnia. Em Gramado houve mais proximidade, com a presença da orquestra liderada pelo maestro Eduardo Lages, mas o palco era menor. Tudo foi mais voltado às filmagens para o especial, com drones sobrevoando e câmeras em todos os lugares. “Eu fui filmado diversas vezes e estava lá o maestro Eduardo Lages que também é muito querido pelos fãs, assim como o Rei Roberto Carlos”, conclui.

PRIMEIRA PÁGINA

COMENTÁRIOS

Voltar

Sua mensagem foi enviada

Aviso
Aviso
Aviso

Atenção.

Museu do Doce cultua identidade de Pelotas

Instituição é espaço de memória, pesquisa e preservação de uma série de saberes e fazeres que vem marcando cotidiano local    

Por Najara Leal e Raissa Iepsen    

 

Espaço de exposição fica na Praça Pedro Osório junto ao Centro Histórico do município  Fotos: Najara Leal e Rafaela Silveira

 

A cidade de Pelotas carrega um dos patrimônios culturais mais reconhecidos do Brasil: sua tradição doceira. Símbolo da identidade local e orgulho da população, essa herança encontra no Museu do Doce um espaço dedicado à memória, à pesquisa e à preservação de tudo aquilo que fez a cidade ser conhecida como a Terra do Doce. Localizado em um dos casarões históricos mais imponentes da Praça Coronel Pedro Osório, o museu combina arquitetura, história e cultura para contar, de forma sensível e acessível, como os doces moldaram Pelotas ao longo dos séculos.

O prédio onde o museu funciona já é, por si só, parte essencial dessa narrativa. Construído em 1878 para a família do conselheiro Francisco Antunes Maciel, o casarão guarda marcas de um período em que Pelotas era uma das cidades mais prósperas do País. Restaurado pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), hoje abriga um acervo que revela as origens e as transformações da tradição doceira, desde os tempos do charque até a consolidação dos doces como símbolo cultural.

Para a bolsista do museu e estudante de Museologia, Isabella Campagnollo, compreender a história da edificação é compreender Pelotas. Ela recorda que o antigo proprietário foi uma personalidade muito influente. A história do museu, das pessoas que moravam neste local e da tradição doceira falam sobre o passado de Pelotas, tanto pelas tradições econômicas, como as do doce e do charque, quanto por sobrenomes famosos como este. “Hoje em dia, há uma galeria comercial na rua Félix da Cunha com o nome de Antunes Maciel. Quase 200 anos depois, ele continua presente. Casarões como este remetem a uma era em que a cidade era extremamente rica”, observa.

O museu oferece aos visitantes uma experiência que vai além da observação de objetos. Tachos de cobre, formas antigas, livros de receitas escritos à mão e utensílios originais compõem um percurso que convida o público a mergulhar nas memórias da produção doceira. Cada peça carrega histórias de quem preparava, criava e reinventava receitas, que hoje fazem parte do patrimônio imaterial da cidade.

 

Há uma série de propostas que visam interagir com diversos públicos e promover o debate e o conhecimento da História

 

Quem comparece ao espaço percebe como a mediação e o cuidado com o público fazem diferença. Isabella explica como as atividades educativas aproximam crianças, jovens e adultos do museu: “As visitas que acontecem no museu são geralmente mediadas. Tu podes marcar um horário para vir com a tua escola ou grupos pelo e-mail do museu [museudodocedaufpel@gmail.com] e também nas redes sociais pelo Facebook  e Instagram. Além disso, a gente tem algumas ações educativas para as crianças que vêm visitar o museu, desde desenhos até jogos de memória ou quebra-cabeças. Há ainda peças táteis e outras brincadeiras. Grande parte dessas peças é disponibilizada pelo curso de Arquitetura da UFPel. Outras são desenvolvidas por outros setores, como o de computação.”

 

Local reúne um acervo que remete a várias atividades que constituíram sistemas econômicos

 

Influências diversas

A origem dos doces de Pelotas, porém, é mais complexa do que muitos imaginam. Longe de ser apenas uma herança europeia, a tradição doceira carrega influências diversas, resultado do encontro entre culturas no período do charque. Isabella conta a história: “Bom, a tradição doceira de Pelotas não começou, realmente, como uma tradição doceira. Começou com essa cidade que tinha essa grande economia baseada em charque [a produção para todo o País de carne salgada, que era a única forma de conservação desse alimento na época]. E, com o tempo, conforme foi se exportando o charque para o Nordeste, alguns outros alimentos voltavam, assim, como uma troca comercial, como, por exemplo, a cana-de-açúcar, o próprio açúcar e o coco. E, por aí, foram se adaptando receitas portuguesas. Mas, ao contrário do que muita gente pensa, as receitas dos doces de Pelotas não são apenas europeias. Há muitas adaptações das receitas originais feitas, principalmente, pelas pessoas que trabalhavam nas casas dessas pessoas ricas que importavam esses alimentos. Então, é justamente pela mão de obra das pessoas negras, né? Justamente aí está a questão de matriz africana dos doces. Então, a gente tem muitas influências de diversos povos, não é só uma cultura europeia, ao contrário do que muita gente pensa”.

 

Ao longo de sua existência Museu serve como cartão postal e referência da cultura pelotense

 

Para muitos visitantes, conhecer o museu representa resgatar memórias afetivas e descobrir novas perspectivas sobre a cidade. Alguns visitaram o museu na infância e voltam quando já estão adultos. O local cumpre com o papel de mostrar a história com os detalhes enfatizados pelas contribuições dos monitores. Através dos objetos, todo um contexto histórico é resgatado.

A tradição doceira também segue viva fora do museu, fortalecida por famílias e empreendedores da cidade. Um dos exemplos é a Fran’s Doceria, cujo proprietário, Cezar Venzke, reforça como a cultura doceira é sustentada pelo afeto e pela união familiar. Ele conta que tudo começou dentro de sua casa: “Começou com a minha cunhada e meu irmão, que já trabalhavam com a fábrica e a marca deles. Depois, eu me reuni com as minhas duas filhas, a minha esposa e o meu filho. Veio todo mundo trabalhar. A gente participou da [Feira Nacional do Doce] (Fenadoce) e aí passamos a trabalhar no Mercado Público de Pelotas. Há 12 anos estamos aqui. Foi a família que se envolveu. E o nome Franz foi por causa das filhas, Francine e Franciele, reunimos o nome das duas.”

Para ele, o cenário doceiro de Pelotas evolui continuamente. “A cultura doceira está cada vez melhor e mais qualificada. Hoje existe uma associação das doceiras, da qual fazemos parte. Tudo é trabalhado para garantir um produto bom, porque Pelotas tem que ser referência. Trabalhamos muito para conquistar o selo de Indicação Geográfica, que foi um processo longo, mas muito importante para a cidade.”

Preservando objetos, saberes e histórias, o Museu do Doce segue como um espaço fundamental para manter viva a memória da cidade. Além de um centro cultural, o museu é um lugar de encontro entre gerações, de educação e de pertencimento, um ambiente onde o passado segue iluminando o presente da Terra do Doce.

PRIMEIRA PÁGINA

COMENTÁRIOS

Voltar

Sua mensagem foi enviada

Aviso
Aviso
Aviso

Atenção.

Preto de Sapato consolida trajetória de mais de 14 anos

Grupo atravessa diferentes fases musicais e afirma, por meio da criação autoral, a memória e a presença negra nos territórios de Pelotas      

Por João Miguel Bueno        

 

Integram o grupo Rogers Lemes, Davi Batuka (produtor e baterista), Eduardo Freda, Êmily Passarinho (vocal) e Mini Ribeiro                  Foto: João Miguel Bueno

 

Há mais de 14 anos em atividade, o projeto musical Preto de Sapato se firmou como um dos coletivos autorais mais consistentes da cidade ao articular música, memória histórica e debate racial. Formado pelo cantor e compositor Eduardo Freda, Davi Batuka (produtor e baterista), Rogers Lemes (guitarra), Êmily Passarinho (vocal) e Mini Ribeiro (baixo), o grupo construiu sua identidade a partir de referências como o samba, o batuque, o carnaval e a música popular latino-americana, combinando esses elementos com uma produção autoral voltada à valorização da ancestralidade negra.

Os integrantes têm trajetórias distintas, mas atravessadas por experiências semelhantes. Criados em bairros periféricos e em contato direto com manifestações culturais populares, eles encontraram na música uma forma de expressão, organização coletiva e atuação social. Para o grupo, a criação autoral sempre foi central, tanto como posicionamento artístico quanto político.

Encontros que deram origem ao projeto

Rogers Lemes, natural de Uruguaiana, fronteira entre Brasil e Uruguai, chegou à cidade para estudar música na Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e passou a se conectar com artistas da cena local envolvidos com produção autoral. Foi nesse contexto que conheceu Eduardo Freda e Davi Batuka, músicos com longa atuação na cidade.

Davi, nascido em Santa Vitória do Palmar, se criou em Pelotas, em meio às rodas de samba e batuques de terreiro no bairro do Porto. Em certo momento de sua vida precisou voltar à cidade em que nasceu e lá, longe de Pelotas, percebeu a importância que o lugar em que cresceu tinha em sua vida, em sua criação musical. Então, regressou. Frequentador das rodas de música, conheceu Eduardo Freda, músico e poeta crescido no bairro Ambrósio Perret, às margens do arroio Pelotas, e atraído por seu talento deram início à parceria.

A afinidade estética e de visão de mundo levou à formação do núcleo que mais tarde se consolidou como Preto de Sapato.

 

             Eduardo Freda canta e compõe, dando o impulso inicial paras os trabalhos do grupo            Foto: Divulgação/Instagram

 

Criação autoral e identidade coletiva

O projeto passou por diferentes fases até chegar à identidade atual. Os primeiros trabalhos foram lançados sob a autoria de Eduardo Freda, com o álbum “Raízes e Coração”, marcado por uma sonoridade mais crua e orgânica. Gravado ao vivo, o disco tem forte presença de percussão, referências ao samba de raiz e numerosas alusões à espiritualidade de matriz africana, com menções diretas a orixás, personagens históricos e narrativas ligadas à memória negra.

Na sequência, o grupo passa a se afirmar mais claramente como coletivo ao adotar o nome Quintal de Sinhá, fase que representa um amadurecimento artístico e a ampliação do diálogo sonoro. As composições mantêm a base rítmica tradicional, mas começam a incorporar novas camadas harmônicas, arranjos mais elaborados e temas que dialogam também com o cotidiano contemporâneo da população negra.

Essa transição se consolida no álbum “Roda do Tempo”, que marca um ponto de inflexão no projeto. O trabalho mantém o vínculo com a ancestralidade, mas passa a incorporar elementos contemporâneos, como experimentações sonoras, uso de recursos de produção mais modernos e uma abordagem mais direta de questões sociais atuais. A partir desse momento, o nome Preto de Sapato passa a representar de forma mais precisa o conceito central do grupo.

Segundo o guitarrista Rogers Lemes, a evolução dos álbuns reflete simbolicamente um percurso histórico da população negra no Brasil. “Se a gente olhar para os discos em sequência, dá pra perceber uma metáfora desse caminho: o preto mais ligado à senzala, à dor e à resistência inicial, passando por uma fase de transição, até chegar ao Preto de Sapato, que representa o negro ocupando espaços, se empoderando da própria voz e da própria história”, explica.

Para os integrantes, a criação autoral sempre foi determinante para garantir autonomia artística e coerência discursiva. “Criar é diferente de reproduzir. A criação gera identidade e fortalece o discurso”, afirmam. A discografia do grupo, nesse sentido, reflete uma construção gradual, em que cada álbum dialoga com o anterior, compondo uma linha evolutiva que articula memória, contemporaneidade e afirmação política.

O significado do nome Preto de Sapato

O nome do projeto carrega um significado histórico direto. Durante o período escravocrata, pessoas negras descalças eram identificadas como escravizadas; o uso de sapatos marcava uma condição diferente. O grupo utiliza essa referência como símbolo de emancipação, enfrentamento ao racismo e afirmação de identidade.

Para os músicos, o sapato também representa deslocamento e presença: a ocupação de espaços historicamente negados à população negra. A proposta do grupo é manter viva a memória coletiva e transmitir esse legado por meio da música.

Políticas públicas e sustentabilidade do trabalho

A trajetória do Preto de Sapato evidencia de forma direta a importância das políticas públicas de incentivo à cultura para a sustentação de projetos autorais. O primeiro álbum do grupo foi viabilizado por meio de um projeto cultural financiado por edital público, que possibilitou a gravação ao vivo, a produção de cópias físicas e a realização do lançamento. Segundo os integrantes, esse apoio foi decisivo para que o trabalho pudesse ser concretizado em um momento em que não havia recursos próprios suficientes nem retorno financeiro garantido.

Ainda assim, o grupo aponta que a manutenção de um projeto autoral de forma contínua segue sendo um dos principais desafios. Nenhum dos músicos atua exclusivamente no Preto de Sapato. Para viabilizar a permanência do trabalho, os integrantes conciliam a atuação no grupo com outras atividades profissionais, como aulas de música, produção fonográfica, participação em eventos, shows em outros projetos e trabalhos paralelos no setor cultural. Parte dos recursos obtidos nessas atividades é reinvestida no próprio projeto autoral.

Na avaliação do grupo, editais públicos, leis de incentivo e programas de circulação cultural são fundamentais para a profissionalização de artistas independentes, sobretudo aqueles oriundos de contextos periféricos. Esses mecanismos permitem não apenas a remuneração do trabalho artístico, mas também a realização de investimentos estruturais, como gravações, produção de material, circulação e qualificação técnica, que dificilmente seriam possíveis apenas com recursos próprios.

Os músicos também chamam atenção para a instabilidade dessas políticas no Brasil, fortemente condicionadas a mudanças de governo e orientação política. Essa descontinuidade, avaliam, compromete o planejamento de longo prazo e coloca projetos autorais em permanente situação de vulnerabilidade. Para o Preto de Sapato, manter-se em atividade implica constante articulação entre criação artística, redes de apoio coletivo e resistência diante das oscilações do cenário cultural.

 

O Preto de Sapato  tem participado em vários eventos na região de Pelotas    Foto: Divulgação/Instagram

 

Performances em espaços históricos da cidade

A circulação do Preto de Sapato por espaços simbólicos da cidade está diretamente ligada às políticas públicas de incentivo à cultura. O primeiro álbum do grupo foi viabilizado por meio de um edital do Outro Sul, ponto de cultura de Pelotas com mais de duas décadas de atuação no fomento a iniciativas artísticas independentes no município. O apoio possibilitou não apenas a gravação do trabalho, mas também a inserção do grupo em uma rede de eventos, festivais e ações culturais voltadas à valorização da cultura negra.

Ao longo dos anos, o coletivo se apresentou em diferentes iniciativas que dialogam com essa proposta, como o Festival dos Tambores Cabobu, o Festival da Igualdade Racial, realizado pela Secretaria Municipal de Igualdade Racial (SMIR), o Simpósio Odara, promovido pela ONG Odara, referência na cidade pela atuação em música e dança afro-brasileira, além do Festival Internacional Sesc de Música de 2024. Foi neste último contexto que ocorreu uma das apresentações mais marcantes da trajetória do grupo: o show na Charqueada São João.

As charqueadas tiveram papel central na formação econômica de Pelotas durante o século XIX, sendo espaços onde pessoas negras escravizadas eram submetidas a trabalho forçado, castigos físicos e condições desumanas. Esses locais permanecem como marcas materiais de um passado de violência estrutural, ainda pouco elaborado coletivamente na cidade. A ocupação artística da Charqueada São João ultrapassou o âmbito do espetáculo e assumiu caráter simbólico e político ao inserir música negra autoral em um espaço historicamente associado à exploração da população negra.

Para o cantor e compositor Eduardo Freda, a apresentação teve um impacto profundo. Ele relata que já havia tocado outras vezes no local, em eventos sociais, mas que a experiência com o Preto de Sapato foi radicalmente diferente. “Estar ali com as músicas do Preto de Sapato foi algo muito intenso. O palco montado naquele lugar, onde os meus antepassados eram chicoteados, muda tudo. A energia era muito carregada, mas também muito forte. A gente estava ali com pessoas que trabalham pela cultura preta em Pelotas, com a nossa equipe, com a nossa história”, afirma.

Segundo Eduardo, a performance funcionou como um gesto de ressignificação coletiva. “Acho que. de certa forma, foi um ebó. Foi como oferecer algo aos nossos antepassados, aos orixás. Uma forma de dizer que a caminhada não acabou, que a gente lembra e que não esqueceu. Contar nossa história pelas nossas próprias palavras”, relata.

Ele acrescenta que a experiência teve impacto pessoal e artístico, reforçando o sentido de pertencimento e responsabilidade histórica do grupo.

Ao ocupar espaços como a Charqueada São João e o entorno do Mercado Público, o Preto de Sapato contribui para tensionar narrativas consolidadas e inserir novas leituras sobre a cidade e sua história. Para os integrantes, essas ações fazem parte de um processo contínuo de afirmação cultural, no qual memória, território e criação artística se articulam como formas de resistência e produção de sentido no presente.

Novos lançamentos

O Preto de Sapato segue em atividade e prepara o lançamento de um novo single previsto para dezembro. O trabalho dá continuidade à proposta autoral do grupo, mantendo o diálogo entre memória, identidade e contemporaneidade.

Com mais de uma década de atuação, o coletivo se mantém como referência na cena musical pelotense, articulando produção artística, reflexão histórica e atuação cultural em um contexto ainda marcado por desafios estruturais para a cultura independente no Brasil.

PRIMEIRA PÁGINA

COMENTÁRIOS

Voltar

Sua mensagem foi enviada

Aviso
Aviso
Aviso

Atenção.

Artesanato revela história

Desde 1985, o projeto Nós do Mar contribui para a cultura local da cidade do Rio Grande com seu trabalho criativo    

Por Erick Borges Lopes    

 

Ana Martta Mota, Carla Ferreira e Isabela Sartori coordenam as atividades atualmente

 

As peças artesanais produzidas pelo projeto Nós do Mar contam a história da cidade de Rio Grande e estimulam a valorização do patrimônio e da cultura local. “É um movimento de valorização, sustentabilidade e pertencimento para Rio Grande”, comenta a presidente, Isabela Sartori. A associação, sem fins lucrativos, conta ainda com a participação da secretária Carla Ferreira e da tesoureira Ana Martta Mota.

Fundado no ano de 2015, o projeto inicialmente se chamava Art’Evidência e possui como a sede oficial a casa da Carla Ferreira. Além deste local, as artesãs contam há três anos com um espaço no Praça Shopping Rio Grande. No começo do grupo, havia 20 participantes, mas persistiram apenas as três artesãs, além de algumas parcerias pontuais. O trio salienta que o trabalho não ficou difícil com a redução dos integrantes, pois foi possível manter uma produtividade mensal tanto para a loja, quanto para eventos.

 

Artesãs foram homenageadas pela Câmara Municipal do Rio Grande em 2024

 

O artesanato da Nós do Mar oferece uma variada série de produtos: necessaires, chaveiros, ecobags, carteiras, bolsas e esculturas de biscuit e de gesso no formato de barcos, leões-marinhos e vagonetas. São todos caracterizados com motivos locais, lembrando as características da cultura local, muito vinculada ao mar, por sua localização e características geográficas, às atividades pesqueiras, etc. Logo, quem visita o espaço no shopping pode levar uma lembrança da cidade. Em dez anos de atividades, um dos destaques foi o trabalho “Já fui rede”, junto ao edital Aldir Blanc, que desenvolveu chaveiros, esfregões e sacos de hortifruti a partir da reciclagem de redes de pesca. Tal material propiciou visitas às ilhas do município para realizar oficinas com as crianças de diversas localidades.

 

Estudantes das escolas públicas das ilhas tiveram a oportunidade de participar de oficinas

 

A associação promove eventos desde o centro da cidade, como na Biblioteca Rio-Grandense e no Shopping Praça Rio Grande, até as ilhas do município. Antes de dispor do espaço no shopping, utilizavam um ponto no Mercado Público. No currículo de suas atividades, o projeto já desenvolveu oficinas de cerâmica, de pintura e de bordado, sarau de poesias, mostras artísticas e exposições fotográficas, reunindo os principais artistas do município e também diversos interessados em cultura.

Com o espaço no shopping, o projeto conseguiu trazer parte do Festival do Mar (Festimar), que é um grande evento cultural, esportivo, gastronômico e turístico rio-grandino, para o centro comercial. Ocorre uma programação paralela com oficinas, exposições e mostras artísticas ao longo dos dez dias de evento. “Participar dos eventos do shopping e do município é uma oportunidade de levar essa história para mais pessoas, fortalecer a economia criativa local e mostrar que o artesanato é um patrimônio vivo, feito com afeto, técnica e respeito ao território”, comenta a presidente.

 

Participantes do grupo de bordado reunidos da Biblioteca Rio-Grandense

 

Deste modo, o projeto envolve bastante cultura, sendo uma referência até mesmo para os turistas que chegam à cidade de navios e cruzeiros. Os interessados são recebidos pelas integrantes com o relato da história da cidade. Inclusive, a sede está no mapa cultural do município. Como a mudança para o nome Nós do Mar ainda é recente, pode-se procurar por  Art’Evidência, nome ao qual ainda está vinculado. O projeto também recebeu homenagem concedida pela Câmara de Vereadores do Rio Grande, no dia 29 de março de 2024.

 

Encontro do projeto “Historiar Ler e Bordar” na Praça Xavier Ferreira, com apoio da Prefeitura e Biblioteca Rio-Grandense

 

Segundo Isabela, o Nós do Mar nasceu para valorizar o que a cidade possui de mais precioso: a identidade cultural, o trabalho das artesãs e a relação profunda que a comunidade mantém com o mar, a sua cultura e sua história. “Cada ação, cada feira e cada exposição é um convite para que o público conheça nosso trabalho e reconheça a força das mulheres que transformam materiais, memórias e saberes em arte”, defende a presidente.

PRIMEIRA PÁGINA

COMENTÁRIOS

Voltar

Sua mensagem foi enviada

Aviso
Aviso
Aviso

Atenção.

A poesia viva de “Perfume da China”

Entre as classificadas da 20ª Reculuta da Canção Nativa, música renova a tradição cancioneira com um tom mais intimista      

Por Bryan Sanches Kern       

 

Juliano Moreno interpreta canção composta também por Rafael Teixeira Chiapetta

 

A canção “Perfume de China”, interpretada por Juliano Moreno e Rafael Teixeira Chiapetta, apresentada na 20ª Reculuta da Canção Crioula, em 2024, constitui uma manifestação relevante da música nativista contemporânea do Rio Grande do Sul. Inserida no contexto dos festivais tradicionalistas, a obra reafirma o compromisso de preservar e atualizar elementos culturais característicos da identidade sul-rio-grandense. Pode ser situada dentro do panorama da música regional gaúcha, considerando sua construção poética, seus aspectos musicais e seu significado cultural.

A Reculuta da Canção Crioula integra um conjunto de festivais nativistas que, desde a década de 1970, desempenham papel fundamental na valorização e difusão da cultura gaúcha. Esse movimento, denominado nativismo, buscou fortalecer uma estética musical própria, vinculada ao ambiente rural, à figura do gaúcho e aos símbolos identitários do Estado, tais como o cavalo, o mate, a paisagem campeira e o cotidiano do homem do campo.

Nesse contexto, “Perfume de China”  representa uma continuidade desse processo cultural, mas também uma renovação estética. A obra se distingue por privilegiar uma abordagem mais introspectiva e sensível, deslocando a narrativa épica tradicional para uma dimensão de memória afetiva e subjetividade. Dessa forma, insere-se em uma fase mais recente do nativismo, na qual a tradição é reinterpretada a partir de experiências individuais e simbolismos mais sutis.

Poética e simbolismo na letra

A letra da canção utiliza imagens sensoriais que evocam principalmente o olfato, sentido frequentemente associado a recordações emocionais. O “perfume de china” funciona como metáfora central, representando não apenas a presença feminina tradicionalmente denominada “china”, mas também um conjunto de lembranças afetivas que atravessam o tempo. Assim, o perfume converte-se em símbolo de permanência, constituindo um elo entre passado e presente.

A figura da china, recorrente na literatura e na música regional gaúcha, é aqui revisitada não como personagem secundária do universo campeiro, mas como elemento afetivo essencial. Ao relacionar essa figura ao perfume, a canção atribui à memória feminina um caráter imaterial e duradouro, reforçando a importância da afetividade na construção da identidade cultural.

Os versos exploram ainda elementos da paisagem e da vida rural, porém não de forma descritiva, mas sensorial. A paisagem não é apresentada como cenário estático, e sim como extensão da subjetividade do eu lírico, conferindo à obra um caráter poético que vai além da estética meramente documental, comum em parte da canção nativista tradicional.

 

Sonoridade leva a uma escuta das emoções expressas sem excessos

 

Aspectos musicais

Musicalmente, “Perfume de China” emprega instrumentos característicos da música regional, como violão, gaita e contrabaixo acústico. A estrutura harmônica é simples e de andamento lento, o que contribui para a atmosfera contemplativa sugerida pela letra. Essa escolha favorece a recepção da canção enquanto expressão emocional e introspectiva.

As interpretações de Moreno e Chiapetta são marcadas por um registro vocal contido e intimista, sem excessos de ornamentação ou dramaticidade. Esse tipo de vocalização aproxima a obra da estética já consolidada no nativismo contemporâneo, em que a palavra poética é valorizada e a interpretação busca transmitir sinceridade e transparência emocional. Assim, a sonoridade reforça a proposta da canção e se harmoniza com seus elementos simbólicos.

 

Juliano canta a tradição gaúcha vivida no seu cotidiano

 

Dimensões culturais e identitárias

A cultura gaúcha mantém forte vínculo com a memória, o pertencimento e a territorialidade. “Perfume de China” dialoga diretamente com essa dimensão, ao ressignificar símbolos tradicionais e incorporá-los à experiência afetiva individual. A metáfora do perfume destaca a imaterialidade da memória e reforça a ideia de que a tradição não se limita às práticas concretas, mas envolve sentimentos, valores e lembranças transmitidos entre gerações.

Desse modo, a canção contribui para a compreensão da cultura regional como dinâmica e processual, afastando-se de representações fixas e estereotipadas. A tradição, portanto, é apresentada não como repetição do passado, mas como vivência cotidiana constantemente reelaborada.

A música nativista passou por transformações desde sua consolidação nos festivais da década de 1970. Se, inicialmente, prevalecia um tom épico e coletivo, associado à exaltação da figura do gaúcho e de suas práticas, a produção contemporânea tem incorporado elementos mais subjetivos. “Perfume de China” representa essa mudança ao enfatizar sentimentos individuais, vínculos afetivos e metáforas sensoriais sem abandonar os símbolos regionais.

Assim, a canção estabelece um diálogo equilibrado entre tradição e contemporaneidade. Ela reafirma elementos identitários do Rio Grande do Sul, mas por meio de uma abordagem poética que amplia o alcance da música regional, permitindo que ela se conecte também com públicos urbanos e com novas gerações que buscam outras formas de representação cultural.

“Perfume de China” se destaca como uma obra relevante no contexto da música nativista atual por reunir sensibilidade poética, interpretação musical refinada e forte carga simbólica. Ao tratar da figura da “china” como elemento afetivo e da memória como dimensão fundamental da identidade regional, a canção reforça a importância da tradição, mas sob uma perspectiva contemporânea e intimista.

A obra contribui para a compreensão de que a cultura gaúcha permanece em constante transformação, renovando-se a partir de interpretações individuais e coletivas. Sua relevância está justamente na capacidade de conciliar elementos tradicionais com uma expressão estética atualizada, fazendo com que a música regional se mantenha significativa em diferentes contextos sociais e geracionais.

PRIMEIRA PÁGINA

COMENTÁRIOS

Voltar

Sua mensagem foi enviada

Aviso
Aviso
Aviso

Atenção.

Cenário de filmes e símbolo de ciclo econômico

A Charqueada São João, aberta à visitação em Pelotas, serviu como palco para as gravações da minissérie de TV “Casa das Sete Mulheres” e o filme “O Tempo e o Vento”      

Por Vanessa Centeno Ferreira      

 

Além do seu valor histórico e museológico, a Charqueada é uma atração turística atualmente   Fotos: Vanessa Centeno Ferreira

 

A Charqueada São João é um antigo casarão rural, que se preserva atualmente em Pelotas como museu aberto à visitação e representa a arquitetura típica do Ciclo do Charque. Construído entre 1807 e 1810, às margens do Arroio Pelotas, foi um ponto estratégico para o escoamento da produção da carne salgada. Era a residência da família do charqueador Antônio José Gonçalves Chaves, figura de destaque no contexto econômico da época. A produção dependia massivamente de mão de obra escravizada, o que faz parte da sua memória histórica. A riqueza gerada por essa economia impulsionou o crescimento urbano, social e arquitetônico da cidade de Pelotas e região.

Neste local, a minissérie de televisão “Casa das Sete Mulheres” foi gravada em 2002 para ser exibida em 2003. A produção foi filmada em Pelotas e outras cidades do Rio Grande Do Sul, como Cambará do Sul, São José dos Ausentes e Uruguaiana, para retratar a Revolução Farroupilha. É baseada no livro do mesmo título da escritora Letícia Wierzchowski, adaptado por Maria Adelaide Amaral e Walther Negrão e direção geral de Jayme Monjardim.

Já o filme “O Tempo e o Vento” (2012), baseado no primeiro volume da série do escritor gaúcho Érico Verissimo, também teve suas gravações na Charqueada São João e diversas cidades do Rio Grande do Sul. A cidade cenográfica foi construída em Bagé e em Pelotas, com direção de Jaime Monjardim.

A “Casa das Sete Mulheres” foi ao ar pela TV Globo entre 7 de janeiro e 8 de abril de 2003, com 24 capítulos, retratando a Revolução Farroupilha sob o olhar feminino das mulheres da família do líder separatista Bento Gonçalves. Ambientada no século XIX, a história mistura drama, romance e guerra, destacando a força, os dilemas e os amores de sete mulheres que viveram em meio ao conflito que marcou o sul do Brasil.

A trilogia “O  Tempo e o Vento”, de Érico Veríssimo, é uma das obras mais importantes da literatura brasileira, em especial o primeiro livro, “O Continente”, que narra a formação do estado do Rio Grande do Sul, através das famílias Terra e Cambará. A obra é tão impactante que ganhou diversas adaptações audiovisuais, a mais recente delas dirigida por Jayme Monjardim e lançada no ano de 2013. Há também uma versão produzida como minissérie em 1985

 

Figueira com cerca de cinco séculos é cultuada por atender desejos

 

Charqueada São João é patrimônio cultural

A Charqueada São João é administrada hoje pela família Mazza e pelo proprietário Marcelo Mazza Terra. Eles administram a propriedade desde 1949, portanto não tiveram contato com a fazenda no período da escravidão, que foi iniciada em 1737, com as primeiras expedições dos negros escravizados na cidade de Rio Grande, até 1884.

A avó do Marcelo Mazza, dona Noris Mazza, recebeu essa propriedade extensa, de seis hectares, como um presente de casamento do seu esposo. Antes disso, a Charqueada foi propriedade de quatro famílias. O primeiro proprietário foi o português Antônio José Gonçalves Chaves, que construiu a casa entre 1807 e 1810, no período em que a escravidão já estava estabelecida no Estado. A casa pertenceu a algumas gerações da família de José Gonçalves Chaves   e depois teve outras três famílias proprietárias entre a família do fundador e a família Mazza, totalizando assim cinco famílias.

A casa, que hoje é tombada como parte do Patrimônio Histórico, tem aproximadamente 30 cômodos. É dividida em ambientes, como a sala de descanso dos tropeiros, que antigamente servia como lugar de repouso para os homens trabalhadores que traziam o gado para a Charqueada. Havia uma área de refeição exclusiva para eles, cozinha, quarto, sala de jantar do dono da casa, quartos de hóspedes, quartos de moças com uma estrutura planejada, sem janelas e sem saída direto para o pátio da fazenda.

 

A arquitetura da época do império português promove o resgate histórico

 

Reconhecimento nacional no audiovisual

A fazenda, que anteriormente deu lugar ao trabalho escravo, é marcada por um período de dor e tortura, uma época de poderes relativos aos interesses políticos e hierarquias diversas. Às margens do arroio Pelotas, era um importante polo dos negócios estabilizados com a fabricação do charque, a carne bovina salgada e seca ao sol, que servia como base da economia gaúcha entre os séculos XVIII e XIX.

Só teve seu reconhecimento como patrimônio cultural a partir do ano 2000, configurando-se também como uma atração turística da cidade. Ela não foi adquirida pelos proprietários com essa finalidade, mas a curiosidade do público, alimentada inclusive pela produção audiovisual, fez com que abrissem suas portas para o as atividades de turismo.

 

Recantos unem a beleza da natureza com memória histórica

 

Gravações da minissérie “A Casa das Sete Mulheres” e do filme “O Tempo e o Vento”

As gravações da minissérie “A Casa das Sete Mulheres” ocorreram na área externa e no pátio interno do casarão. Já o filme “O Tempo e o Vento”, em 2012, utilizou como cenário alguns cômodos dentro da casa. Os atores, nesse período, ficaram hospedados no próprio local e em hotéis das cidades próximas. Foi um período bem movimentado na região, e os fãs ficavam em alvoroço com grande expectativa para ver os atores chegarem para as gravações no portão de entrada, explica a historiadora e instrutora Luise de Oliveira Rodrigues.

Os atores gostavam do clima da Charqueada e tomavam juntos chimarrão, a típica bebida quente gaúcha, feita com erva mate. Esse momento da alegria estampada deles ficou registrado nas fotos e muitos autógrafos dos atores que fizeram parte da minissérie “A Casa das Sete Mulheres”, como pode ser visto no local e no site da instituição. Até hoje o ator Thiago Lacerda mantém contato com a organização.

Luise de Oliveira Rodrigues é historiadora pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e atua como monitora no local há mais de 18 meses. Sentindo-se acolhida, esse trabalho foi uma oportunidade de ela desenvolver um conhecimento aprofundado sobre o modo de vida da época e o ciclo econômico, embora lembre-se do período da escravidão que esteve presente na fazenda. Tem dias que essa memória lastimável chega até ela, tem dias que é mais a perspectiva da arquitetura da casa, noutros em que a beleza da natureza e dos objetos preservados ganham destaque. Assim, há que se compreender toda a amplitude da Charqueada São João.

 

As águas foram cruciais para a atividade econômica e hoje propiciam uma atração a mais para visitantes

 

A senzala e a casa do feitor

O casarão fica à frente de mais  duas construções, a senzala e a casa do feitor, que era o responsável por controlar a movimentação dos escravos ao redor e o responsável por aplicar os castigos no tronco ou pau de açoite, ou pelourinho. A casa do feitor hoje tem duas janelas, mas originalmente tinha somente uma. O prédio, atualmente, está adaptado para servir de moradia. Na porta da senzala, que tem alguns azulejos ao redor, o cadeado que trancava a porta é preservado até hoje, como parte das visitas guiadas.

 

Foi conservada somente a fachada da antiga senzala do período escravocrata

 

As duas estruturas, tanto a senzala como a casa do feitor, têm apenas a fachada original. Quando a família Mazza adquiriu a propriedade, em 1949, já estavam assim, com a parte frontal somente. O restante já não existia mais. A família Mazza teve a sensibilidade de não destruir a fachada da senzala. Pois já havia o entendimento para eles sobre o valor histórico do Casarão e os resquícios do que havia ao redor. O seu valor  para o conhecimento do passado vem sendo encontrado por todos os visitantes. Primeiro há que se passar pela parte triste da escravidão, não têm como omitir, e a família preservou essa parte que registra a história.

A figueira mágica de 500 Anos

Na Charqueada, existe mais de uma figueira, mas há uma prestigiada pelos visitantes com seus 500 anos de idade. Conforme a historiadora Luise, essa longevidade foi confirmada por um grupo de pesquisadores japoneses, que, há alguns anos, realizaram testes na árvore e chegaram a essa conclusão. Os visitantes recorrem a ela para a realização de pedidos, sendo a planta imponente carinhosamente chamada de  “vovozinha”.

O pátio da Charqueada São João é também local de cerimônias como casamentos e formaturas, entre outros eventos comemorativos. As cerimônias de casamento são feitas embaixo da figueira centenária. Depois, os convidados são recepcionados no salão de festas que fica próximo às margens do arroio Pelotas.

 

Árvore constitui grande espaço verde que se completa com o canto dos pássaros

 

A figueira mágica, como é conhecida, é realizadora de pedidos dos visitantes que tocam as suas enormes e gigantes raízes. A crença se justifica por ser uma árvore muito antiga e ter prestigiado muitos acontecimentos. Com todo o clima presente ao seu redor, o verde da natureza e o som do canto dos pássaros, é um local muito acolhedor.

Luise Rodrigues relata que muitos visitantes já voltaram para confirmar que seus pedidos foram atendidos, casamentos pedidos na raiz da figueira foram realizados no local, e ela mesma já teve seu pedido atendido.

 

Beleza da natureza acompanha a reflexão que se faz da história

 

Informações para passeios e eventos

Para passeios e visitas, o funcionamento é todos os dias (nas segundas-feiras, das 14h às 18h; de terça-feira a sábado, das 9h às 18h. Domingos e feriados, das 10h às 14h. Há disponíveis os serviços de visita guiada, almoço e passeio de barco. Casamentos também são realizados sob agendamento, assim como a utilização do espaço para fotografias, formaturas, buquê de 15 anos, etc. Para o almoço e o passeio de barco, devem ser feitas reservas com antecedência, pelos contatos do wattsapp 53- 98106-1810 e e-mail: charqueadasj@gmail.com

 

Museu remete à história, literatura e criação audiovisual

 

A Casa das Sete Mulheres chega às novas gerações

A minissérie tem conquistado fãs pelo Brasil a fora desde a sua primeira exibição. Todos que hoje prestigiam e apreciam a história gaúcha em “A Casa das Sete Mulheres” não eram nem nascidos no período em que foi exibida na rede aberta. E foi o que aconteceu com o jovem mineiro, de Uberaba, estudante de Direito, Gustavo Bruno de Oliveira, que tem 22 anos.                                                

Seu primeiro contato com a minissérie foi quando a Rede Globo reprisou em 2012 no horário político para aparelhos com antena parabólica. Ele tinha apenas 9 anos, mas se encantou com a minissérie. Anos depois, em 2019, assistiu novamente por conta própria pela internet e novamente se encantou. Ele relata que sentiu falta de um lugar em que os fãs poderiam se unir e para a divulgação dessa série, que, apesar de muito boa, tem sido esquecida.

Então ele criou uma página na internet com essa intenção. Apesar de, atualmente, não ter tanto tempo para postar, continua amando muito todo esse universo da série. “Sou mineiro e até o momento não conheço o Rio Grande do Sul, mas isso não foi impedimento para eu me envolver com a história”.

Ano passado ele leu a trilogia “O Tempo e o Vento”, também ficou influenciado pela obra, por se passar em um universo semelhante. “E os livros são maravilhosos, já havia assistido o filme de 2013, que é incrível, mas os livros são ainda mais completos, tanto ‘A Casa das Sete Mulheres’, quanto ‘O Tempo e o Vento’ vão fazer sempre parte da minha história”, conclui.

PRIMEIRA PÁGINA

COMENTÁRIOS

Lindo texto! Como é bom relembrar e conhecer mais a fundo! Parabéns pelo belo trabalho.

Caren Böhmer

Voltar

Sua mensagem foi enviada

Aviso
Aviso
Aviso

Atenção.

“Bom Menino” leva público para dentro do olhar de cachorro

Primeiro longa-metragem de Ben Leonberg explora no gênero de horror a relação entre homem e animal para emocionar e criar tensão         

Por Murilo Schurt Alves      

 

Cão foi treinado durante três anos para a realização do filme         Foto: Divulgação/Independent Film Company

 

Os cachorros sempre ocuparam um espaço significativo no cinema de horror. Mesmo quando não assumem o protagonismo, costumam carregar presságios e vínculos emocionais que servem como combustíveis para as narrativas. Em “O Bebê de Rosemary” (1968), por exemplo, a morte do animal logo no início funciona como um aviso sombrio do mal que está por vir. Já em “Cujo” (1983), adaptação da obra de Stephen King, o são-bernardo tomado pela raiva assume o papel de antagonista, aterrorizando mãe e filho que lutam pelas suas vidas. Além disso, em “O Enigma de Outro Mundo” (1982), o cão carrega dentro de si uma entidade alienígena que desencadeia o conflito que permeia todo o longa-metragem.

Diante desse panorama, é pertinente perguntar: o que torna “Bom Menino” (2025) diferente das obras supracitadas? O que, afinal, ele acrescenta de novo ao gênero? A resposta está no ponto de vista, pois o horror neste filme é construído a partir da perspectiva animal. Em vez de focar nas reações humanas, somos guiados pelos instintos do próprio cachorro durante os 73 minutos de filme. É através dessa escolha que o longa-metragem cria uma experiência que não apenas assusta, mas também emociona e desconcerta.

Dirigido pelo estadunidense Ben Leonberg, “Bom Menino” acompanha a história de Todd (protagonizado por Shane Jensen), que decide recomeçar a vida ao lado do fiel cão Indy, mudando-se para a casa de campo da família, deixada como herança após a morte de um parente. A propriedade, desabitada há muito tempo, carrega antigos rumores. Uma entidade demoníaca estaria presa no local, assombrando a linhagem por gerações. Cético, Todd ignora os avisos, mas Indy não. É ele quem primeiro percebe os sinais sobrenaturais e a presença maligna que tenta, a todo custo, corromper seu tutor.

Ao adotar a perspectiva do animal, a direção consegue aproveitar diversas técnicas de enquadramento. Frequentemente, o diretor utiliza planos subjetivos, colocando o espectador no olhar de Indy e revelando detalhes da ambientação que normalmente passam despercebidos, sejam os pés das mesas, as gavetas mais baixas, o que se esconde sob a cama. Em outras cenas, quando o cão ergue o focinho para observar algo acima de si, a câmera assume enquadramentos em contra-plongée, intensificando a imersão. Já para apresentar o ambiente de forma mais ampla, o diretor se afasta e utiliza planos gerais, contribuindo para a construção espacial da história. Essas escolhas tornam a direção criativa e dinâmica, mantendo o ritmo e prendendo a atenção do espectador.

 

Uso de planos gerais favorece a percepção do ambiente          Foto: Divulgação/Independent Film Company

 

O roteiro, por sua vez, pode dividir opiniões. Como a narrativa se desenrola quase inteiramente entre o cachorro e seu tutor, com a ausência de diálogos, parte do público pode considerá-lo insatisfatório, especialmente para quem busca explicações detalhadas ao final da trama. No entanto, essa escolha abre espaço para que outros elementos assumam protagonismo. O trabalho sonoro, por exemplo, se destaca por meio de efeitos diegéticos – o vento incessante da floresta e a chuva torrencial no clímax, entre outros – que ajudam a criar tensão, amplificar o desconforto e preparar o terreno para jumpscares (sustos), que, embora não agradem a todos, fogem dos clichês que comumente vemos em outras produções.

De qualquer forma, o grande destaque do longa-metragem está na relação que se estabelece entre Indy e o público. O diretor soube explorar a capacidade expressiva do seu próprio cão e, junto à produtora e esposa Kari Fischer, treinou o animal ao longo de três anos de gravação, garantindo que cada olhar, movimento e silêncio transmitisse significado. Indy conquista quem assiste do primeiro ao último minuto, especialmente quando salva Todd de momentos de perigo. Torna-se, assim, uma opção envolvente para quem se afeiçoa aos bichinhos de estimação e gosta de ver essa conexão ganhar vida na tela.

Em suma, “Bom Menino” prova que o horror pode assumir formas inesperadas quando visto pelos olhos de quem sente, mas não consegue compreender da mesma maneira que nós, humanos. Entre sustos calculados, enquadramentos criativos e sons que amplificam a tensão, o filme reforça a força do vínculo entre humano e animal, mostrando que ainda é possível trazer a figura do cão de maneira criativa nas produções cinematográficas. A relação entre Indy e Todd emociona, envolve e reafirma algo que é sempre bonito de ver: o cachorro é, sem dúvidas, o melhor amigo do homem.

Ficha técnica
Título:
“Bom Menino”
Direção:
Ben Leonberg

Produção: Kari Fischer e Ben Leonberg
Roteiro:
Alex Cannon e Ben Leonberg

Elenco: Shane Jensen, Arielle Friedman, Larry Fessenden, Stuart Rudin e Hunter Goetz Gênero: Terror e suspense
Ano: 2025
Duração: 73 min
País: Estados Unidos

PRIMEIRA PÁGINA

COMENTÁRIOS

Voltar

Sua mensagem foi enviada

Aviso
Aviso
Aviso

Atenção.

 

“Frankenstein” de Guillermo del Toro perde a sutileza da versão original

Nova adaptação do clássico do terror comprova as habilidades do diretor como um competente criador de histórias fantásticas, mas esquece detalhes que tornam o personagem da obra literária de 1818 tão único    

Por Vinicius Terra   

O filme “Frankenstein”, dirigido e escrito por Guillermo del Toro, foi lançado recentemente na Netflix, no dia 7 de novembro. O lançamento marca a segunda parceria cinematográfica da plataforma de streaming com o diretor, que antes havia colaborado na adaptação em stop-motion “Pinóquio por Guillermo del Toro” (2022), vencedor do Oscar de Melhor Animação, na cerimônia de 2023. De forma resumida, “Frankenstein”, baseado na obra homônima de Mary Shelley, lançada em 1818, conta a história de um cientista que dá vida a uma forma humanóide, criando uma série de acontecimentos ligados à responsabilidade bioética.

 

              A Criatura (Jacob Elordi) se vê no espelho pela primeira vez ao lado de seu criador Victor Frankenstein (Oscar Isaac) (Fotos: Divulgação/Netflix)

 

Quando uma história é tão icônica e atemporal como “Frankenstein”, que inspira obras e que ainda é referenciada na cultura pop após 200 anos da publicação da obra original, no Reino Unido, é difícil evitar comparações ao avaliar uma nova adaptação. A fim de contextualizar, além da obra ser um clássico do horror, ela é considerada o precursor da ficção científica na literatura por muitos historiadores. Portanto, é inevitável fazer um paralelo entre as duas obras, isto é, os feitos positivos e negativos do diretor quando equiparado à obra gótica do século XIX.

Uma adaptação nada mais é do que uma interpretação. E na interpretação de del Toro, o diretor explora as lacunas para tornar o visual mais apelativo, enquanto o livro é contido e tudo se passa nos pensamentos e sentimentos dos personagens. Essa diferença é crucial na adaptação dos formatos e, não necessariamente, significa algo ruim ou bom por si só. O prelúdio do filme, a título de exemplo, começa com a aparição da Criatura (Jacob Elordi) em uma cena de ação, perseguindo os marinheiros e matando-os em um banho de sangue – enquanto no livro presenciamos algo mais soturno e assombrador.

Estes tipos de mudanças são necessários para a adaptação de um material, que até funcionam bem aqui. Porém, o filme parece perder um pouco de rumo quando se apresenta como uma versão pasteurizada e processada dos eventos de origem. Del Toro parece querer explicar demais as lacunas deixadas pelo livro, e transforma todos os atos cruéis cometidos pela Criatura em atos realizados pelo Victor Frankenstein (Oscar Isaac). O que antes era uma disputa filosófica entre quem é a verdadeira Criatura e o monstro de “Frankenstein”, no filme parece ser jogado em tela exatamente quem o diretor quer mostrar como o monstro real — o cientista Victor. Os questionamentos e a sutileza do livro de Mary Shelley transformam-se em cenas com diálogos mais apressados e sem tanta profundidade.

É no personagem de Victor que, talvez, possamos observar as mudanças de maior peso da adaptação, assim como as que tornam a obra menos sutil. No filme, Victor narra que seu pai odiava sua mãe e a ele, o que parece uma tentativa de Gillermo del Toro tornar o personagem amargurado por conta de sua criação e da perda da mãe enquanto ainda era uma criança. Enquanto no livro, o pai de Victor era bastante compreensivo e amoroso com a mãe. Parece que essa mudança serve para garantir ao filme uma razão de ser que na obra original não existia – às vezes, as coisas são apenas o que são e nada além.

Quanto aos personagens periféricos, Elizabeth (Mia Goth) parece ser um dos pontos centrais da mudança nessa adaptação. Ela está mais presente, ainda que, agora, talvez resumida a um papel mais romântico ainda do que na obra original, apenas reconfigurado. Ainda assim, ela tem uma personalidade própria, curiosa e interessada pelas pequenas coisas da humanidade. Um outro personagem especialmente simbólico na vida de Victor é Henry Clerval, que some completamente dessa adaptação, ainda que alguns traços sejam transportados para o irmão do protagonista, William (Felix Kammerer). No livro, Clerval é o melhor amigo de Victor, e o oposto dele. Essa troca entre eles, que era bastante intimista na obra original, faz falta na adaptação, que agora parece não ter um contraponto à megalomania de Victor.

 

William (Felix Kammerer) e Elizabeth (Mia Goth) acompanham com medo as ações do doutor Frankenstein

William (Felix Kammerer) e Elizabeth (Mia Goth) acompanham com receio as ações do doutor Frankenstein

 

Apesar disso, o longa-metragem toma um rumo interessante quando começa a versão da Criatura sobre os fatos. A segunda parte do livro, da Criatura vivendo na floresta com a família pobre, é a mais importante para entendermos o processo de aprendizagem do monstro, principalmente, quando ele aprende que a violência é intrínseca à humanidade. Neste ponto, o diretor conseguiu transpor para o audiovisual perfeitamente como a Criatura se sente ao confrontar a humanidade pela primeira vez. Nessas partes mais isoladas da Criatura, o diretor consegue expandir e deixar o visual bem emocionante, da forma como a história merece.

E por falar em visual, provavelmente, o melhor aspecto desse “Frankenstein” é como as cores são trabalhadas e como os cenários são construídos. Não é mistério para ninguém que Guillermo del Toro sabe falar de monstros em sua obra e construir mundos mágicos como ninguém — desde o mundo de fadas distorcido de “O Labirinto do Fauno” (2009), até como ele mostra essa Europa do século XIX do jeito gótico imaginado por Mary Shelley. Além dessa parte positiva, há escolhas que funcionam bem dentro da proposta visual do diretor, entre elas a figura do anjo da escuridão nos sonhos de Victor, uma das maneiras pelas quais del Toro trabalha os aspectos mais simbólicos.

 

A criatura escapa para a floresta, em uma cena reminiscente de Hamlet

 

No fim das contas, não é um filme ruim, porém mediano, o que o torna decepcionante não só para quem já leu o livro, mas também para aqueles que conhecem a obra de Guillermo del Toro, que já produziu adaptações melhores e mais profundas. O diretor, de modo geral, domina a tradução de formatos, de um livro com uma narrativa baseada em cartas e narrações de personagens, para momentos de maior ação. Em síntese, o filme funciona bem para quem quer passar um tempo com cenas bonitas e momentos emotivos, ainda que um pouco superficiais. O longa-metragem já está disponível para streaming na Netflix.

PRIMEIRA PÁGINA

COMENTÁRIOS

Voltar

Sua mensagem foi enviada

Aviso
Aviso
Aviso

Atenção.

A obra oriental que se conectou ao ocidente

Trazendo referências ocidentais o anime Gachiakuta se destaca fora do Japão e causa controversas no Oriente       

Por Gustavo Oliveira         

A arte sempre esteve profundamente ligada à cultura. Quando pensamos em um país ou região, são justamente os costumes, as cores e os símbolos mais recorrentes que moldam o imaginário coletivo. Com o Japão não é diferente. A simples menção à “Terra do Sol Nascente” costuma evocar imagens como quimonos, sakuras em flor (flores de cerejeira) e, claro, os animes. Estes são elementos que, para muitos, definem visual e culturalmente o país.

Durante milênios, o Japão consolidou uma tradição estética própria. Mesmo com o crescimento tecnológico e modernização de sua engenharia, buscaram por minimalismo, disciplina visual e harmonia com a natureza, mesclando referências históricas e uma modernidade estilizada. Essa identidade visual forte é uma das razões pelas quais a cultura japonesa conquistou o mundo tão rapidamente nas últimas décadas.

O crescimento tardio dos animes no Ocidente

Nos últimos anos, a cultura dos animes passou por uma expansão inédita no Ocidente. O que antes era nichado e difícil de acessar, hoje está disponível a poucos cliques, impulsionado pela globalização digital e pelo avanço das plataformas de streaming.

Um fato que reforça essa visão é a presença expressiva de animes no cinema, principalmente neste ano com títulos como “Demon Slayer” e “Chainsaw Man” que, respectivamente, atingiram um faturamento de U$ 700 milhões e U$ 168 milhões. Consolidaram a indústria dos animes no cinema e abriram os olhos de grandes empresas para um investimento maior nesse meio, já que “Demon Slayer”, por exemplo, lucrou 34 vezes o valor investido.

Mas por que esse sucesso só chegou agora?

Historicamente, os animes eram produzidos para o público japonês e refletiam valores, rituais, referências sociais e códigos culturais específicos. Até os anos 2000, a indústria não tinha como prioridade a internacionalização: concentrava-se em atender nichos domésticos, desde animações infantis até séries adultas exibidas no fim da noite. As narrativas, os arquétipos e até a construção visual eram moldados para fazer sentido dentro do cotidiano japonês, não para conquistar o mercado global.

O anime/mangá: Gachiakuta

Lançado em fevereiro de 2022, “Gachiakuta” — escrito pela autora Kei Urana — foge da estética tradicional que marcou a indústria por décadas. A obra apresenta um universo marcado pelo underground, pelo grafite, pela moda de rua e por uma forte influência do hip-hop.

A história de ação e fantasia sombria acompanha Rudo, um jovem da periferia de uma cidade flutuante que é falsamente acusado de assassinato e exilado para o “Poço”, um lixão infernal habitado por monstros. Lá, ele precisa dominar um novo poder e se unir aos “Limpadores” para lutar contra os monstros e buscar vingança contra aqueles que o injustiçaram.

 

Cena de Gachiakuta com um personagem de cabelos claros mostrando duas expressões intensas: primeiro com olhos arregalados e sorriso agressivo, depois com um sorriso fechado e tenso

 

Em vez de símbolos historicamente associados ao Japão, o mangá adota uma estética mais próxima das culturas urbanas ocidentais. Kei tem uma forte inspiração na cultura negra americana, principalmente no design de seus personagens, o uso de roupas largas e até o modo de agir e a personalidade de cada personagem é muito diferente do comum visto em obras vindas do Japão. Ao passar as páginas se percebe — mesmo que não proposital — uma relação da estética de Gachiakuta com o expressionismo alemão dos anos 1910/1920, os ambientes caóticos, a estética suja, quase feita à mão e as expressões dos personagens muito exageradas e extremas.

Gachiakuta: Medíocre no Oriente, sucesso no Ocidente

Essa escolha impactou diretamente sua recepção no mercado japonês. Antes do lançamento do anime, no início de 2024, Gachiakuta registrava queda nas vendas e era visto como uma obra mediana. Críticos e parte do público japonês consideravam a estética “pouco familiar”, distante da identidade visual que tradicionalmente molda a cultura do mangá.

No entanto, quando o anime chegou ao Ocidente, ocorreu o oposto. A estética street, o ritmo energético e a atmosfera suja e industrial chamaram atenção imediata. Com o aumento da visibilidade internacional, o mangá voltou a crescer em vendas dentro do próprio Japão, um fenômeno impulsionado justamente por seu diálogo com culturas externas.

Crunchyroll é uma plataforma on-line de streaming internacional com foco em distribuição de mídias orientais, incluindo anime, mangá, doramas (séries de TV asiáticas), música e entretenimento eletrônico. Camila Moura, 22 anos, recepcionista e fã de anime desde os nove, conta que conheceu Gachiakuta por meio de campanhas de divulgação no TikTok. “Estava aparecendo muito comercial da Crunchyroll, e de cara o que mais me chamou a atenção foi o traço e o estilo do anime. Ao mesmo tempo que a estética puxa para os anos 1990/2000, ainda é muito atual”, afirma.

Ela destaca também o impacto visual do personagem Enjin, especialmente por conta das tatuagens. Esse comentário evidencia um ponto importante para entender por que a obra pode ter menor repercussão no Oriente. No Japão, tatuagens — sobretudo quando visíveis — ainda carregam uma forte associação histórica com a yakuza (organização criminosa), o que faz com que muitos espaços, como piscinas e banhos termais, proíbam a entrada de pessoas tatuadas. Enquanto parte da população mais velha mantém a visão de desconfiança, as gerações mais jovens já encaram tatuagens como moda e expressão artística. A rejeição, com certeza diminuiu, mas nada comparado ao ocidente.

 

Painel do mangá de Gachiakuta mostrando o personagem Enjin, com cabelo de cor clara e tatuagens

 

Por que o Japão resistiu ao hip-hop por tanto tempo?

Para entender essa resistência inicial, é preciso lembrar que o Japão é uma sociedade de “alto contexto”, na qual grande parte da comunicação é implícita e, ao mesmo tempo, compartilhada por aqueles que se identificam culturalmente. Como afirma o professor japonês Shoochi Takaaki ao canal do YouTube “Eu Falo Japonês”, “na língua japonesa, mesmo que ninguém diga certas coisas, elas são óbvias para todos”.

Uma cultura de alto contexto é uma cultura ou sociedade que se comunica predominantemente por meio de elementos contextuais, como formas específicas de linguagem corporal, o status de um indivíduo e o tom de voz empregado durante a fala. As regras não são escritas ou declaradas de forma direta ou explícita.

Em culturas assim, os membros compartilham repertórios, códigos e expectativas muito rígidas. “Se um estudante japonês cometer um erro no modo de vida ou escolher uma palavra inadequada, pode receber uma resposta dura da sociedade”.

A cultura hip-hop só chegou ao Japão nos anos 1980 e, no início, não foi recebida como uma forma legítima de expressão artística.

O país, sendo pautado por normas sociais rígidas, educação disciplinada e forte expectativa de conformidade, via o hip-hop como uma manifestação ligada à rebeldia e à delinquência juvenil. O grafite era rotulado como vandalismo, enquanto roupas largas, correntes e visual de rua eram percebidos como uma ruptura com os códigos tradicionais de aparência e comportamento.

 

Painel do mangá Gachiakuta onde dois artistas encapuzados pintam um grande mural urbano

 

Com o tempo, o Japão reinterpretou o hip-hop de sua própria forma, criando versões locais que combinam moda, música e estética visual. Mesmo assim, a relação com o movimento continua carregada de contrastes entre tradição, modernidade e influências externas.

Gachiakuta surge justamente nesse ponto de encontro — no qual a cultura japonesa dialoga com o mundo, mas ainda enfrenta tensões internas quando elementos “estrangeiros” desafiam o imaginário estético local.

O questionamento final que fica é: o Ocidente tem força para sustentar uma obra oriental? Em uma sociedade cada vez menos rígida e continuamente moldada por uma globalização acelerada, a resposta tende a ser positiva. Gachiakuta, porém, segue o caminho inverso. Em vez de se adaptar às expectativas do público japonês, a autora Kei Urana aposta na própria identidade e incorpora livremente as referências que constituem seu repertório.

Do ponto de vista técnico, seja no roteiro, na quadrinização do mangá ou na animação, a obra pode agradar ou não. Mas há um ponto inegociável: Gachiakuta tem personalidade. E muita.

PRIMEIRA PÁGINA

COMENTÁRIOS

Voltar

Sua mensagem foi enviada

Aviso
Aviso
Aviso

Atenção.