“A Hora da Estrela” e o silêncio cultural

Macabéa, Clarice Lispector e o jornalismo que cala    

por Bárbara Beatriz A .Carvalho    

 

Marcélia Cartaxo marcou a história do cinema brasileiro com sua  atuação como a personagem  Macabéa  Fotos: Divulgação

 

No Brasil, a arte muitas vezes tem sido convocada a cumprir o papel que o jornalismo nem sempre consegue assumir: dar visibilidade ao que está nas margens, às figuras apagadas da história, àqueles que vivem, mas não aparecem. O filme A Hora da Estrela (1985), dirigido por Suzana Amaral a partir do romance homônimo de Clarice Lispector, é um desses raros exemplos em que a ficção revela, com brutal delicadeza, uma verdade social que muitos se recusam a encarar.

A protagonista, Macabéa (Marcélia Cartaxo), não tem voz nem estética conforme o gosto dominante. Não tem discurso, nem formação, nem charme. É, em essência, aquilo que o jornalismo cultural – em sua vertente mais elitista – muitas vezes escolhe ignorar. E é nesse contraste entre o que se noticia e o que se silencia, entre o que é belo e o que é rejeitado, que a obra se coloca como uma crítica à própria forma como consumimos e legitimamos cultura.

Clarice Lispector, escritora de linguagem instintiva e existencial, construiu com Macabéa uma das personagens mais complexas e politicamente incômodas da literatura brasileira. Escreveu sobre a invisibilidade social não como denúncia panfletária, mas como tragédia íntima. Macabéa não é só pobre – ela é desprovida de ferramentas simbólicas para compreender a própria pobreza. E é esse abismo entre viver e entender que reverbera em cada cena do filme.

 

Fernanda Montenegro, no papel de cartomante, e Marcélia Cartaxo em uma das cenas do filme

Macabéa como símbolo da exclusão cultural

No filme A Hora da Estrela, conhecemos Macabéa, uma jovem de 19 anos, órfã e nordestina, que vai ao Rio de Janeiro em busca de oportunidades. Ela consegue um emprego como datilógrafa por um salário extremamente baixo. Em certo momento, ao reclamarem de sua falta de higiene e dos erros de digitação, um dos chefes a defende, dizendo que ninguém mais aceitou aquele trabalho pelo valor oferecido.

Macabéa come cachorro-quente com Coca-Cola quase todos os dias por falta de recursos. Divide um quarto coletivo em uma pensão e, ao ser questionada por uma colega sobre não possuir quase nada, responde que talvez consiga comprar algo no futuro. Um dos seus hábitos favoritos é ouvir a Rádio Relógio, acompanhando as curiosidades que o mundo oferece. O problema? Ninguém nunca explicou o que essas informações significam. Ela escuta, mas não compreende — o que revela sua completa exclusão do entendimento crítico da realidade.

O lugar favorito de Macabéa é o metrô. Ela diz gostar de admirar o vai e vem das locomotivas. É o lugar onde ela observa, mas não participa — assim como na vida cultural e social ao seu redor.

Suas referências de imagem e comportamento passam a ser as colegas de quarto e a colega de trabalho. Aos poucos, observamos pequenas transformações: começa a pintar as unhas, se olha no espelho, penteia o cabelo, cola recortes de revistas nas paredes do quarto, compra um batom. Até aprende a mentir para faltar ao trabalho — um gesto mínimo, mas simbólico, de agência sobre si mesma.

Como mulher, Macabéa vê sua curiosidade ser constantemente desvalorizada, especialmente por Olímpico de Jesus (José Dumont), seu namorado. Ele também é órfão e nordestino, mas diferente dela, tem ambições: quer ser deputado, famoso, importante. Quando ela menciona que gostaria de ser artista de cinema, Olímpico a ridiculariza, dizendo que ela não tem “nada do que é preciso” para isso — como se enxergar a si mesma já fosse demais para quem está à margem.

Olímpico ensaia discursos, impõe a voz, imagina a si mesmo poderoso. Ela, em silêncio, observa. Quando pergunta o que faz um deputado, ele não sabe responder. Diz apenas: “deputado é deputado, oras”. Quando ela questiona se a esposa de um deputado também é deputada, ele ignora. O relacionamento entre os dois é marcado por silêncios, perguntas da Macabéa e respostas vazias e desdenhosas de Olímpico.

Macabéa representa milhões de brasileiros e brasileiras que vivem às margens do acesso à cultura, à informação e à educação crítica. Sua ausência de referências, de compreensão sobre o mundo e sobre si mesma a torna quase uma “não-pessoa” aos olhos da sociedade e da mídia — alguém que vive, mas sem presença simbólica. É essa invisibilidade que A Hora da Estrela escancara, com delicadeza e brutalidade ao mesmo tempo.

 

Macabéa tem um envolvimento amoroso com Olímpico (José Dumont)

 

Estética como barreira cultural

A personagem Macabéa carrega, em sua própria construção, uma crítica direta aos padrões estéticos que atravessam diversas esferas do que hoje chamamos de “cultura”. O filme utiliza elementos que tocam deliberadamente o campo do “feio” — nas roupas, nos hábitos, nos gestos contidos que nem chegam a ser apenas tímidos, mas sim neutros, fruto da ausência de saber, de referências, de identidade construída. Macabéa representa aquilo que a sociedade costuma rotular como “comum” ou até mesmo “feio”.

Em uma das cenas, sua colega de trabalho, Glória, pergunta: “Ser feia dói?” — um questionamento cruel, mas que sintetiza bem o quanto a estética é usada como marcador de valor e pertencimento. Glória, ao contrário de Macabéa, representa o estereótipo da mulher “ideal” segundo o imaginário dominante: veste roupas que valorizam o corpo, tem cabelos loiros (tingidos), corpo magro, fala com desenvoltura, não espera o casamento para se relacionar sexualmente e até revela, com frieza, já ter feito cinco abortos.

O contraste entre as duas se acentua quando Glória, ao saber que Macabéa é virgem, ironiza sua magreza, dizendo que ela precisa “criar carninha, bundinha”, como se seu corpo fosse inadequado não apenas ao desejo masculino, mas também ao olhar social. Glória completa, com orgulho, que foi criada comendo carne, já que seu pai era açougueiro — uma informação que, embora simples, revela um acesso que Macabéa nunca teve: à proteína, ao afeto, ao cuidado básico. A alimentação torna-se aqui uma metáfora de classe: Glória tem carne; Macabéa, apenas cachorro-quente e Coca-Cola.

Em um gesto singelo, Macabéa oferece a Olímpico uma ficha telefônica, pedindo que ele ligue para ela no trabalho — já que apenas Glória recebia ligações. A cena evidencia a diferença entre quem é vista e quem é ignorada. Quando Olímpico termina o relacionamento com Macabéa para ficar com Glória, ele a descarta com brutalidade:
 “Você é um cabelo que caiu na minha sopa. Não dá vontade de comer.”

A crítica aos padrões estéticos dominantes é clara. O filme convida o espectador a refletir sobre o que é considerado belo e valioso, e como determinadas obras — ou pessoas — são validadas enquanto outras são descartadas.

Um paralelo possível é a própria Semana de Arte Moderna de 1922, que também rompeu com os ideais estéticos importados da Europa. Os modernistas buscavam valorizar o “feio”, o “desarmônico”, o “brasileiro” em sua crueza. Assim como Macabéa, que representa um Brasil profundo e negligenciado, a arte modernista também rompeu com padrões excludentes. Contudo, diferentemente da Semana, que acabou sendo absorvida e ressignificada pelas elites culturais, Macabéa permanece à margem – talvez porque sua imagem não seja rentável nem sofisticada o suficiente para ser celebrada.

Jornalismo cultural e seu papel social

Atualmente, o jornalismo cultural, apesar de ser extremamente rico, costuma estar em segundo plano nas grandes mídias. A principal característica do mesmo é a análise crítica, até mesmo a opinião, o que pode acarretar em um “embate” entre aquele que produz e seu receptor. E o que fazer em meio a uma grande massa de receptores que anseiam por ouvir e ler sobre padrões estéticos que permeiam a história, que buscam entretenimento e não necessariamente aprofundamento?

A premissa do jornalismo cultural é a democratização da cultura, do saber. O filme A Hora da Estrela, inspirado na obra de Clarice Lispector, faz justamente uma crítica a essa indústria e também aos seus receptores — ao anseio desenfreado por padrões, por narrativas de sucesso, por figuras que reafirmam o que já conhecemos como “arte”. O jornalismo cultural, ao silenciar figuras como Macabéa, perde a chance de gerar ruído, de provocar, de ser mais do que curadoria para consumo.

Falta, nesse contexto, uma revisão crítica das próprias práticas jornalísticas culturais: por que não há espaço, com frequência, para narrativas periféricas? Por que a linguagem precisa ser rebuscada para ser legitimada? Por que a crítica ainda olha de cima para baixo, em vez de propor uma escuta ativa, verdadeira?

A linguagem do filme e sua crítica implícita

A linguagem do filme é propositalmente seca, sem trilha emocional que oriente o espectador. A câmera é crua, os ambientes são opressivos e o ritmo é lento. Tudo parece estagnado — como a vida de Macabéa. Para quem vê de fora, a retratação pode parecer absurda, grotesca até. Para quem vive a história real, é apenas a vida sendo ela mesma. O filme, assim como o livro, não explica. Apenas mostra. E nesse mostrar silencioso, revela um grito social que o jornalismo cultural nem sempre está disposto a ouvir.

Macabéa não sabia que existia. E quando soube, morreu. Essa frase, implícita no desfecho de A Hora da Estrela, sintetiza o que falta quando a cultura não é acessível, quando o saber é um privilégio e a estética, uma prisão. A crítica de Clarice Lispector e de Suzana Amaral não é apenas à sociedade, mas também à forma como comunicamos, valorizamos e consumimos arte.

O jornalismo cultural precisa ser mais que uma vitrine para o que é “bonito” ou “consagrado”. Ele precisa se perguntar: quem é a estrela que ainda não apareceu? Talvez a resposta esteja nos olhos opacos de Macabéa — e no que escolhemos não ver.

Para quem vê a retratação pode parecer um absurdo. Para quem vive a história real, é apenas a vida sendo ela mesma.

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COMENTÁRIOS

Que reflexão maravilhosa, quando assistir o filme, me incomodou bastante, mas não consegui nomear esses incômodos, e com certeza assistirei novamente com um olhar mais inclusivo e crítico a exclusões a tantas estrelas ainda invisibilizadas.

María Eleni

Uma análise primorosa! Parabéns à Bárbara Beatriz! Já li o livro e assisti ao filme, ambos geniais. Mas, não tive na época toda essa percepção, toda luz que nos faz entender melhor a obra de Clarice Lispector.

Rosangela Velasquez

Esse texto foi necessário e conseguiu cumprir com sua finalidade! Me colocou de frente a um espelho. Me fez pensar criticamente sobre o modo como tenho consumido “arte” e quais são essas que tenho buscado.

Ana Clara Viana

Parabéns a autora do texto Barbara Beatriz! Muito assídua e cirúrgica na sua crítica.

Layssa

Um dos meus livros e filmes favorito. Ótimo texto.

Elise

Perfeita visão solidárias aos “sem brilho”… Grato .vou enviar aos amigos como ‘estudo’!

Paulo Brito

Parabéns, felicitaciones ao cinema brasileiro, grande obra clássica da literatura brasileira, escrita por Clarice Lispector, escritora brasileira. Parabéns aos artistas brasileiros.

Liana Valuzia Pereira da Silva

Havia lido o livro, há muito tempo atrás, e até assistido algumas cenas do filme, sem maior interesse, mas ignorado toda essa crítica social silenciosa. Obrigada por me abrir os olhos! Certamente, irei rever e rever, além de trabalhar com os meus alunos.

Patricia Trindade De Angelis

Estou interessado em arte

LUIZ Eurico Fontes de A. Soares

 

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