Segredos de Hollywood

Por Gilmar Hermes

Em tempo de quarentena, uma opção são os filmes e séries dos serviços de streaming, como uma infinidade de títulos. “Hollywood” é uma nova série da Netflix que teve a sua primeira temporada com sete episódios lançada em maio. Com uma excelente trilha musical de jazz, expõe alguns dos antigos segredos da meca do cinema. Recria com final feliz o passado, levando em conta tanto traumas como mudanças.

Na abertura dos episódios, aparece sempre o célebre letreiro identificando o distrito Hollywoodland, que se via nas colinas de Los Angeles entre 1920 e 1949. Depois de 1949, permaneceu somente a palavra Hollywood. E as personagens escalam as letras gigantes, o que representa os desafios que irão enfrentar ao longo dos episódios. A série acompanha a revisão crítica e também documental que outras produções vêm tratando ao longo dos anos recentes. Hollywood lança luz sobre personagens ou situações antes marginais da cultura norte-americana que, agora, podem ser vistas como o que a cidade das estrelas tem de mais provocador para mostrar.

O diretor e um dos produtores Ryan Murphy disse na divulgação para a imprensa que a ideia da série foi fazer um retrato esperançoso e otimista da Hollywood dos anos 1940. A história, porém, parte do registro de um lugar um tanto polêmico da história do distrito, o posto de gasolina onde “trabalhadores do sexo” se encontravam com celebridades através da senha “Dreamland”. No ano de 2018, foi lançado o documentário Scotty and the Secret History of Hollywood, em que o real dono do posto, Scotty Bowers, tem a sua vida retratada. Em co-autoria com Lionel Friedberg, ele escreveu a autobiografia Full Service: My Adventures in Hollywood and the Secret Live of The Stars, que serviu como base para o filme documental. Uma das características da sua personalidade recente era o vício de acumular objetos encontrados em casa.  Scotty morreu no ano passado, aos 96 anos. Na série, ele é encarnado pelo personagem Ernie West (interpretado por Dylan McDermott).

O polêmico dono do posto de gasolina é vivido por Dylan McDermott. (Foto: Divulgação)

Constantemente ameaçados pela polícia, os “trabalhadores” do posto viviam cercados pela vergonha. O protagonista é Jack Castello (no papel David Packard Corenswet) um daqueles que tendia a ser visto apenas como uma mercadoria humana. O diretor se propôs a reescrever uma história imaginativa, em que os preconceitos já tivessem sido superados já nos anos 1940, quando a história se passa. E trouxe com isso ao longo dos episódios e a vida das personagens, várias questões que marcaram os movimentos de Hollywood na época e que vêm sendo transformadas pelos movimentos sociais ao longo das décadas até hoje, a discriminação racial, a falta de liberdade quanto à orientação sexual, a submissão das mulheres a papéis subalternos, os preconceitos em relação à terceira idade, etc. 

Com bastante liberdade de criação, a série produzida em 2020 mistura personagens e situações reais e fictícias. Pouco a pouco vão sendo revelados personagens reais, que às vezes são apenas uma inspiração para a história, sem a pretensão de contar literalmente as biografias. As festas na casa do cineasta George Cukor são um dos itens excêntricos, que já apareceram no filme Deuses e Monstros, inspirado na vida de James Whale, diretor de “Frankenstein” (1931) e a “A Noiva de Frankenstein” (1935), que fez trabalhos conjuntos com Cukor. Os dois estão entre os diretores queer mais famosos de Hollywood. 

Novo final para histórias reais

A produtora Janet Mock disse que a intenção foi iluminar tragédias que de fato aconteceram, mas contando uma história de triunfo. Há várias personagens reais citadas ao longo dos capítulos. As atrizes Anna May Wong, Hattie McDaniel e o ator Rock Hudson são alguns deles. Janet diz que eles eram pessoas que poderiam ser elas mesmas e assim celebradas, mas não foram. Foram vítimas do sistema de Hollywood, depreciadas, com finais tristes. A ideia foi dar-lhes um “happy end”. 

Michelle Krusiec na pele de Anna May Wong (Foto: Divulgação)

Anna May Wong (interpretada por Michelle Krusiec) foi a primeira grande estrela asiática do cinema norte-americano. Mas um dos piores traumas da sua carreira foi ser preterida por outra atriz para uma produção da Metro-Goldwyn-Mayer. A escolhida fez o papel com maquiagem para parecer asiática.

Com dezenas de participações em filmes, Hattie McDaniel foi a primeira atriz afrodescendente a receber um Oscar por sua atuação em O Vento Levou, mas ela precisou de uma autorização especial para comparecer ao evento, pois o local da cerimônia não aceitava a presença de pessoas negras. Na série a atriz e cantora Queen Latifah faz uma participação especial interpretando a personagem da atriz, que apoia a jovem Camille Washington (interpretada por Laura Harrier) na conquista de um lugar ao sol, apesar do racismo. 

Cena com Laura Harrier e Queen Latifah (Foto: Divulgação)

Outro personagem, Rock Hudson (na pele de Jake Picking), foi um galã do cinema hollywoodiano nos anos 1950 e 1960, com inúmeras atuações no cinema e na televisão, sendo um dos atores mais populares do seu tempo. Foi perseguido com ameaças em decorrência da sua homossexualidade. E foi a primeira grande celebridade a morrer em decorrência da Aids, tendo marcado com a sua própria vida o início da luta contra essa doença.

Jake Picking no papel de Rock Hudson

O personagem que incorpora o vilão Henry Willson (interpretado pelo ator Jim Parsons) é a materialização dos abusos dos empresários no meio cinematográfico com assédios e submissão dos atores e atrizes aos seus interesses escusos. Esse personagem representa de fato o homem que foi empresário do ator Rock Hudson. O produtor Ian Brennan considera que a série está sintonizada com o movimento #Metoo, denunciando as dinâmicas dos movimentos de poder abusivos. Ryan Murphy diz que a história real é dolorosa e continua sendo, mas, justamente, sua intenção foi produzir um final feliz.

Jim Parsons interpreta vilão da história (Foto: Divulgação)

Na história, artistas jovens lutam por um lugar ao sol na indústria cinematográfica. Em meio a uma multidão, enfrentam as mais diversas adversidades, ameaças de manipulação e acordos forçados. A luta pelo reconhecimento artístico vem lado a lado com os dilemas da vida pessoal, em que raça e identidade sexual são ingredientes significativos. Experimenta-se filmes dentro do filme e a própria vida passa a funcionar como um filme. 

Deixar de vender o corpo para viver do seu processo criativo é a luta do ator que se até certo ponto se deixa humilhar para conseguir chegar às telas. O corpo aparece como uma moeda de troca em um ambiente em que a palavra “hipocrisia” funciona como uma senha para explicar tudo. 

As questões raciais têm especial relêvo. A atriz negra quer evitar o estereótipo dos papéis de empregada. O roteirista  Archie Coleman, que é um homem gay e negro (interpretado por Jeremy Pope), é barrado pela cor da pele de assinar o seu nome no roteiro de sua autoria. A atriz com traços orientais também é discriminada. E o candidato à carreira de diretor, Raymond Ansley (com Darren Criss no papel) que se diz “meio asiático”, vai cumprir com o papel de fazer mediação com os produtores “brancos”. Também o papel do dinheiro e a violência justiceira da máfia não são esquecidos.

 De episódio a episódio uma ou outra temática é mais enfatizada. E o final desta temporada é definitivamente hollywoodiano, imerso no imaginário que que o reconhecimento do Oscar representa e com muitas emoções. Um aspecto importante é a exposição ao longo dos episódios do processo de produção de um filme desde a escolha do roteiro até a finalização do projeto, descrevendo as várias armadilhas e empecilhos que possam surgir ao longo do caminho.

Jeremy Pope, Darren Criss e David Packard Corenswet encarnam a luta de jovens talentos (Foto: Divulgação)

 

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