A arte enquanto obra e como manifestação viva dos artistas


Até onde a biografia dos  criadores determina as suas obras e quanto seu trabalho ganha um valor independente no jornalismo cultural     

Por Luís Esteves Garcez        

 

 

O debate para definir o que é arte tem seu início na Grécia antiga, junto dos grandes filósofos, especialmente Platão e Aristóteles, e permeou a história da humanidade desde então. Definir o que é e o que não é arte tomou uma grande importância no trajeto de artistas, críticos e também do público comum. É impossível não se deparar com opiniões que desconsideram o movimento Dadaísta como arte, o gênero musical funk como arte, os videogames como arte, entre tantos outros. Essa presunção parte de um sentimento de superioridade, que conecta a palavra arte a algo inerentemente belo e positivo, e não consegue distinguir suas preferências pessoais de algo com ou sem qualidade técnica, mas essa é uma discussão para outro momento.

Nesse texto eu não quero focar tanto no que é e no que não é arte, mas o debate em si é importante como base para a discussão que quero criar. Por tanto, considerando o quão abstrato é a pergunta “o que é arte?”, eu prefiro definir aqui o que eu, o indivíduo Luís Garcez, considero como arte. Para mim, arte é qualquer expressão humana movida por emoção. Tendo isso definido, passo para a essência do que quero discutir, que é o quão atrelado a arte está ao artista que deu vida a ela.

Para começar meu argumento eu gostaria de categorizar a arte em dois grupos, apenas para deixar meus pontos futuros mais claros. Chamei o primeiro grupo de arte externa, ou arte viva. A arte externa passa a existir sozinha e independente após ser criada, depois que o artista da vida a ela, ela não precisa mais desse artista para se manter viva, ela é material e muitas vezes continua no mundo muito após o seu artista desaparecer. Aqui estão as pinturas, as esculturas, os filmes, os videogames, etc.

Já o segundo grupo contém as artes internas, ou artes transientes. Elas são efêmeras, deixam de existir no momento que o artista cessa sua performance, elas são inteiramente dependentes daquele artista e das habilidades dele para existir no nosso mundo, e, se não fosse a preservação de mídia, sempre morreriam junto daquele artista. A preservação de mídia é um ponto importantíssimo a ser comentado aqui, pois ela é uma forma de eternizar a arte transiente, mas não considero que isso a torne uma arte viva, pois uma gravação de uma música não é a mesma coisa do que escutar aquela música ser tocada por seu criador. Assistir uma peça de teatro gravada não provêm a mesma experiência de assistir a trupe original encenar aquela peça ao vivo.

 

Artes transientes

Ao definir as artes transientes, sei que encontrarei inúmeras opiniões contrárias à minha e é nesse ponto que meu argumento se torna mais complexo, entretanto, ao mesmo tempo, singular. Como dito acima, teatro e música são, obviamente, artes transientes, mas vou muito mais além disso, considero artes marciais e esportes artes transientes, onde a arte só existe durante aqueles minutos em que a competição está acontecendo, morrendo quando o vencedor é definido. Um poema declarado por um homem apaixonado à sua amada é outro exemplo, entretanto, aqui temos as duas artes em simbiose. O poema em si é a arte viva, e a declaração dele, a arte transiente. Mas enfim, chega de exemplos, acho que meu ponto está suficientemente claro.

Antes de prosseguir para o próximo ponto dessa jornada, eu gostaria de fazer um adendo para me referir especificamente à música. Acredito que a música seja a arte mais presente e impactante na vida das pessoas, quase todos indivíduos não apenas apreciam música como tem ela como parte importante de sua vivência. Além do impacto massivo que a música tem na sociedade, ela também se solidificou muito bem em ambos os tipos de arte que descrevi acima, e é isso que torna ela única. Uma música é tanto arte por si só, como também vive em uma relação simbiótica com seu criador, seja um compositor, um cantor ou uma banda. Nossa sociedade idolatra criadores de música de forma que não faz com criadores de literatura ou pintura, então mesmo que através da preservação de mídia as músicas se tornem eternas, o valor da música como arte está muito atrelado ao seu criador, o que faz sentido, já que, apesar de tudo, considero-a como uma arte transiente.

Tendo em mente o que os dois tipos de arte significam, precisamos analisar as diferenças com que elas nascem, crescem e morrem. Meu objetivo é tentar explicar a diferença de como nossa sociedade reage a esses dois tipos, tanto em situações positivas quanto negativas, e como isso também reflete na indústria jornalística, muitas vezes tendo suas nuances ignoradas pelos profissionais na hora de realizarem suas críticas. Vamos começar focando na arte viva.

 

 

Criador e obra com vida própria

O conhecido discurso sobre “separar a arte do artista” prega um ideal onde devemos ignorar o criador de uma obra de arte na hora de definir o valor desta. Ele é muito utilizado para justificar o consumo de obras criadas por artistas considerados problemáticos por qualquer motivo, seja a transfobia de J.K. Rowling, o racismo de H.P. Lovecraft, entre outros diversos exemplos. Essa filosofia é aceita em massa quando nos referimos às artes vivas, é raro encontrar alguém que se recuse a ler um livro ou visitar uma exposição de quadros de algum artista considerado imoral, ou até mesmo criminoso. Essa facilidade de distanciar a criação de seu criador se dá exatamente pelo fato que aquela criação não depende do criador, socialmente falando, ela é uma entidade separada, viva.

Quando tentamos aplicar esse mesmo argumento à musica, entretanto, encontramos diversas barreiras sociais. Como dito anteriormente, o valor que atrelamos a uma obra musical depende diretamente de como enxergamos o artista que a criou. A relação parassocial que quase lembra uma seita que nossa sociedade, e especialmente nossa juventude, cria com bandas e cantores torna realisticamente impossível agir da mesma forma para com eles como agimos com escritores, pintores, etc. Para nós, a música traz com ela quem a criou, junto dos valores, ideais, qualidades e defeitos daquele artista.

É importante frisar que fui generalista no parágrafo acima, entendo que muitos não pensam assim e de fato conseguem escutar e aproveitar uma música sem se importar com qualquer polêmica ou causa social que o músico por trás dela esteja envolvido. Entretanto, vivemos em uma época extremamente polarizada, quando a posição política e social do indivíduo tem uma importância que nunca antes teve, devido a isso, acredito que essa generalização não danifique meu argumento.

Após analisar todos os fatores acima, entro agora na segunda parte do texto, mas antes, preciso deixar claro que não necessariamente acredito nas coisas que escreverei a seguir, considero-as mais como ideias a serem levantadas e discutidas com mais atenção. São assuntos delicados, mas, como aspirante jornalista, não acredito que assunto nenhum não seja merecedor de um debate justo. Tabus e dogmas atrasam nossa sociedade impedindo nosso pensamento de evoluir.

 

Arte e biografias polêmicas

Quando nos referimos às outras artes transientes que não tem a mesma dualidade da música, a filosofia de “separar a arte do artista” para de ser apenas complexa e polêmica e se torna completamente indiscutível. A ideia de “conservar” e admirar a arte de um dançarino de ballet, de um jogador de futebol ou de um ator de teatro mesmo que esse artista tenha a reputação manchada sempre será recebida com mau gosto em qualquer discussão.

Hollywood constantemente exila seus atores devido a crises de imagem, Competições nacionais e mundiais de esportes impedem ou dificultam a participação de atletas envolvidos em polêmicas, se quer damos a oportunidade de um criador de conteúdo virtual continuar com sua carreira caso ele cometa um “erro” em sua vida pessoal que é julgado irredimível pelo público. Por que é tão difícil para nós separarmos a arte do artista nesses casos, e tão fácil de fazer o mesmo nos casos citados mais acima nesse texto?

A resposta para essa pergunta já foi respondida aqui, a arte transiente depende totalmente daquele artista, não é absurdo que seja impossível para o público separar algo que é, em sua essência, inseparável. Meu texto não tem como objetivo criticar e classificar como hipócrita a dicotomia com que tratamos desses dois assuntos, mas sim levantar a questão que talvez um bom jornalista cultural precise se esforçar muito mais que o público e tentar realizar uma análise justa sem deixar que seu trabalho seja deturpado por vieses que, apesar de compreensíveis, não tem lugar em uma crítica cultural.

Já a diferença de tratamento que o jornalismo usa para os dois tipos de arte explicadas aqui serve para provar que tal tarefa é possível. Se conseguimos realizar críticas literárias objetivas sobre tantos clássicos, tanto nacionais quanto estrangeiros, ignorando descaradamente a vida pública extremamente polêmica que seus autores tiveram quando eram vivos, acho que conseguimos julgar objetivamente uma atuação ou apresentação, deixando de lado a última fofoca que aquele ator ou atriz se envolveu. Repito novamente que considerar que isso seja possível não quer dizer que eu considere que seja sempre necessário.

Nos dias de hoje, parece que se criou uma nova e poderosa instituição chamada de “Corte da Opinião Pública”, onde todos agimos como júri, juiz e carrasco, distribuindo sentenças de acordo com nossas próprias bússolas morais, que raramente são paradigmas de justiça. Não gosto desse modelo de sociedade, não acho que a massa tem a capacidade de tomar esse tipo de decisão, tampouco penso que jornalistas sejam mais capacitados. Nosso trabalho é noticiar, explicar e, para o jornalista cultural, criticar uma obra de arte. Talvez as críticas ao artista devam ser deixadas para a corte de justiça, onde profissionais poderão tomar decisões educadas sobre o assunto.

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