“Ariadne” por Jennifer Saint: a princesa além do mito grego

Feminista relê mito de Ariadne e vai para além do personagem como irmã do lendário Minotauro e mera companheira do herói Teseu e do deus Dioniso       

Por Maria Eduarda Lopes     

  

 

Uma releitura potente, ambiciosa e envolvente de um dos maiores mitos da Grécia Antiga. É assim que o romance “Ariadne” é vendido pelas editoras e livrarias. E realmente a obra prova ser digna dessas indicações. Escrito pela britânica Jennifer Saint, conhecida por seus trabalhos de releituras de mitos antigos protagonizados por figuras femininas, o livro se propõe a contar a história da princesa Ariadne de Creta muito além do mito do seu irmão Minotauro, do destemido herói Teseu e da paixão com o deus Dioniso. Aqui, ela é protagonista das suas próprias escolhas.

No mito original, Ariadne era uma princesa de Creta, uma ilha na Grécia Antiga governada pelo seu pai, o cruel rei Minos. Lá ela vivia com sua mãe, Pasífae. E, apesar da sua irmã mais nova, Fedra, ser uma das personagens destaques do livro, ela raramente é mencionada nos mitos.

Minos havia implorado a Poseidon, o deus dos mares, que lhe enviasse um touro magnífico, prometendo sacrificar o animal em sua honra, o que garantiria a sua autoridade em Creta. Mas, ao ser atendido, Minos traiu seu juramento a Poseidon e não sacrificou o animal. Ao invés disso, achou que seria capaz de enganar Poseidon ao sacrificar outro touro no lugar. Poseidon, sentindo-se ultrajado, planejou uma vingança: instigou em Pasífae uma paixão ensandecida pelo touro divino, o que a fez deitar-se com o animal. A rainha de Creta concebeu o fruto dessa união, um bebê meio humano e meio touro, nomeado de Minotauro.

Humilhado pelo desgosto que recaiu sob seu reino, Minos, um governante ganancioso e rancoroso, mandou o renomado artesão Dédalo construir um labirinto abaixo do palácio para prender o Minotauro, e consequentemente qualquer um que ousasse adentrá-lo. Como um tributo perverso, a cada ano, a cidade de Atenas, subjugada pela conquista de uma guerra perdida contra Creta, deveria enviar sete meninos e sete meninas atenienses para saciar o apetite da besta. Assim, ao invés da vingança de Poseidon trazer apenas vergonha e desgraça para a família do rei, a criação do Minotauro os elevou ao patamar de lendas.

Em certo momento, o herói Teseu se infiltra como um dos que seriam sacrificados, com o intuito de derrotar o Minotauro. Porém, ele não conseguiria sem ajuda. Na ilha de Creta, ele conhece Ariadne, que se apaixona pelo herói. Também sensibilizada pelos horrores que aconteciam no labirinto, a princesa ofereceu a Teseu uma espada e um fio, para guiá-lo de volta à entrada. Assim, Teseu se consolidou na mitologia grega como o herói que venceu o Minotauro.

Com a besta derrotada e o herói a salvo, Ariadne e Teseu poderiam ficar juntos. Então finalmente eles fugiram para a ilha de Naxos, e, a partir daí, o mito se desdobra em diversas versões. A principal delas é que Teseu teria abandonado Ariadne na ilha a mando da deusa Atena, e sensibilizada por sua história, Afrodite teria a oferecido Dioniso (que entre os romanos passou a ser chamado Baco) para ser seu companheiro. Há também a versão de que a deusa da caça e da lua, Ártemis, teria sido responsável por sua morte em cumplicidade com Dioniso. Seja qual for a versão, Ariadne ou é abandonada, traída ou termina seu destino ao lado de um homem.

 

Óleo sobre tela “Baco e Ariadne”, com data 1522-23, com autoria de Ticiano,  do acervo da National Gallery de Londres

 

Os mitos fazem parte de uma tradição cultural, uma narrativa popular que passa de geração a geração. Apesar de não serem histórias reais, eles surgem através de condições históricas relacionadas a dada cultura. Na Grécia Antiga, em uma sociedade liderada apenas por homens, as mulheres ocupavam o lugar de criaturas menores que não possuíam direitos ou cidadania, e muito menos uma voz para deliberar escolhas. Dessa forma, o livro “Ariadne” propõe fazer uma releitura deste mito a partir da perspectiva feminina da personagem.

O revisionismo feminista, ou a teoria revisionista, partindo do feminismo, tem como objetivo justamente representar personagens desprezadas ou subjugadas pelas autorias masculinas ao longo da história, e oferecer um papel de protagonismo para elas. Esse revisionismo visa reivindicar um espaço narrativo tendo em vista que a tradição do patriarcado excluiu as mulheres.

A obra tem a oportunidade de abordar de maneira muito mais profunda as complexidades da história de Ariadne. A personagem reconhece a realidade que vive, afirmando em um trecho: “O que eu não sabia era que havia me deparado com a realidade de ser mulher: por mais que levássemos uma vida irrepreensível, as paixões e a cobiça dos homens poderiam nos levar à ruína, e não havia nada que pudéssemos fazer”. Esse tema se mantém durante o desenvolvimento do livro, no qual as mulheres sofrem as consequências de comportamentos de homens e não possuem uma voz ativa, um reflexo do cenário da época.

No decorrer da leitura somos apresentados a outras facetas do mito. Para Ariadne, o Minotauro era muito mais do que apenas uma besta, do que um recado perverso dos deuses. Como irmã, ela havia o criado desde o seu nascimento, e o chamava de Asterion, que significa “estrela” ou “o que brilha”, contradizendo a sua monstruosidade. Mas vivenciou o seu crescimento, assim como o seu apetite insaciável, e seu banimento eterno ao labirinto.

O mito reflete o que acontece até hoje em nossa sociedade. As mulheres não são devidamente creditadas por suas conquistas e frequentemente são subjugadas pelos homens. Ao ajudar o herói Teseu, Ariadne foi a principal responsável pela morte do monstro e da libertação dos jovens atenienses do labirinto. Mas a história coloca Teseu como o herói honrado, enquanto Ariadne é posta como secundária. E após ser usada pelo herói, após ter confiado plenamente no homem, ela foi abandonada sozinha em uma ilha para morrer.

Um desenvolvimento muito interessante que o livro apresenta é a relação de Ariadne com sua irmã Fedra. Após a derrota do Minotauro e a fuga de Ariadne, o reino inteiro acredita que a princesa estava viva e longe dali, ou simplesmente morta. Fedra vive o resto da sua infância com a certeza de ter sido abandonada pela irmã, e que ela havia falecido. Mais à frente, Fedra descobre que era simplesmente uma farsa que Teseu havia contado, de que Ariadne havia sido picada por uma cobra e falecido durante o sono. Na verdade, Ariadne havia sobrevivido na ilha e conhecido o deus Dioniso, por quem se apaixonou, se casou e teve filhos. Mas, para a sua futura infelicidade, Fedra se casa com Teseu, e simbolicamente toma o lugar de sua irmã no trono. É muito bem construída pela autora a rivalidade feminina imposta para ambas as mulheres, que foram exploradas e usadas pelos mesmos homens e deuses.

A maternidade também é um assunto bastante aprofundado na trama. Para Ariadne, ser mãe foi uma jornada de autodescoberta, e ela encontrava um propósito de vida em seus filhos. Para Fedra, era um pesadelo. Esses paralelos entre as irmãs são muito bem estruturados. A realidade que antes elas conheciam na ilha de Creta, vivendo juntas e sendo o apoio uma da outra, não existia mais. Até o reencontro das irmãs, as personagens vivenciam experiências completamente diferentes. Ariadne estava na ilha de Naxos ao lado de Dioniso, vivendo quase uma utopia. Fedra estava presa em um casamento arranjado com Teseu, se vendo no papel de esposa, sendo obrigada a gerar filhos e cuidá-los, enquanto ela não queria nada daquilo. É justamente esse desenvolvimento complexo da personagem que traça seu destino no final da trama.

Para fins de contextualização, evitando revelar spoilers do final do livro, o destino de Ariadne é aquele que ela sempre soube que seria, sendo uma mulher em um mundo de homens e deuses gananciosos.

Em entrevista para o World History Encyclopedia, a autora Jennifer Saint comenta sobre o processo criativo sobre o desenvolvimento dos desfechos finais da obra: “Acho que, particularmente ao decidir sobre o final, resolvi me afastar de algumas das versões mais conhecidas. Os temas que se destacaram para mim nas histórias dessas mulheres foram as mulheres sendo esquecidas, sofrendo as consequências de comportamentos de homens, e suas vidas sendo menos significativas do que as reputações e as glórias dos homens. Então, quando eu estava escolhendo qual versão do mito eu iria seguir, ou mesmo fazer um desvio completo, era importante que se encaixasse na história que eu queria contar”.

A obra apresenta uma nova faceta da personagem mitológica e de sua história, inserindo outros personagens bem construídos em uma narrativa muito bem fechada que preenche lacunas do mito original de forma criativa e condizente com a proposta da trama.

PRIMEIRA PÁGINA

COMENTÁRIOS

Comments

comments