A estratégia multifacetada da Federação Russa na África vem tornando o país uma das principais alternativas políticas para o continente. Os russos conseguem capitalizar em cima do crescente descontentamento africano com o modelo de “dependência neocolonial” que prevalece na região há décadas, caracterizado pela imposição de condições políticas e econômicas pelas potências ocidentais.
Essa dinâmica é ilustrada na observação de Loshkaryov (2025), que diz que a Rússia apresenta-se como um aliado que respeita a soberania africana, evitando julgar valores locais. Nesse cenário marcado pelo declínio da hegemonia norte-americana, Moscou vem ganhando espaço frente à crise de legitimidade do Ocidente na região. Se a Rússia busca reforçar essa posição deve encaixar em sua estratégia formas de superar os desafios que acompanham esse empreendimento, como apresentado por um relatório do Valdai Club ainda em 2019 (Balytnikov, 2019).
A narrativa construída pela Rússia, de um parceiro que respeita a soberania africana, reativa uma memória africana sobre o papel da União Soviética na descolonização do continente. No entanto, essa retórica contrasta com uma peculiaridade estrutural na abordagem russa: a África vem sendo tratada como um bloco monolítico, ignorando suas complexidades internas (Loshkaryov, 2025). Como aponta o pesquisador, a política externa russa insiste em retratar o continente como uma “entidade geopolítica coesa”, omitindo prioridades sub-regionais específicas, sendo esse posicionamento observado em documentos oficiais, como as declarações das Cúpulas Rússia-África (2019 e 2023) e o “Conceito de Política Externa da Federação Russa” (Rússia, 2023). Essa visão, embora alinhada ao pan-africanismo, esbarra em realidades práticas. As dinâmicas do Sahel, marcadas por golpes e insurgências, pouco se assemelham aos desafios de países costeiros como Moçambique ou à estabilidade relativa de Uganda, país que recentemente entrou como parceiro do BRICS.
A insistência em uma África unificada pode ser uma faca de dois gumes para a Rússia. Por um lado, facilita a construção de uma narrativa anticolonial simplificada, útil para explorar a crise de legitimidade do Ocidente. Por outro, limita a eficácia da cooperação, já que estratégias genéricas tendem a falhar em responder a contextos locais específicos. Loshkaryov identifica duas “Áfricas” na estratégia russa:
A primeira, é a “África de Baixo Risco e Alta Competição”. Ao selecionar países no continente que atendam às métricas de análise de risco ocidentais e aos seus padrões de negócios corporativos, a Rússia encontrou este bloco no leste do continente, sobretudo em países como Tanzânia, Moçambique e Uganda. Essa abordagem prioriza países com relativa estabilidade institucional e integração às redes globais. Um exemplo ambicioso é o projeto do Corredor Norte-Sul, que liga a Rússia à costa leste da África via Irã e Índia, onde a Tanzânia terá um papel fundamental. No entanto, como observa o autor, ao utilizar a metodologia ocidental de avaliação de riscos para buscar parceiros no continente, a Rússia encontra mercados saturados com atores que utilizam as mesmas métricas, que chegaram à mesma conclusão sobre a necessidade de expandir sua presença no leste da África.
A segunda, seria a “África de Alto Risco e Baixa Competição”. No Sahel, a Rússia adota um modelo oposto: países como Mali, Níger e Burkina Faso, assolados por crises de governança culminada por golpes de estado, somados ao isolamento geográfico, não atrai a atenção dos grandes players, pois a presença nesses países é arriscada e injustificada sob as lentes da gestão de riscos corporativos tradicional. Porém, para a Rússia, a falta de competição traz oportunidades únicas. A presença do Africa Corps, sucessor do Grupo Wagner, garante influência direta sobre elites locais, enquanto contratos de mineração (ouro no Mali, urânio no Níger) financiam a presença militar. Aqui, a Rússia opera como ator indispensável, não competindo com potências tradicionais, com o principal desafio sendo o diálogo com os governos da região, que são dominados pelo “romantismo revolucionário, a retórica anticolonial e as noções vagas das “alturas de comando” da economia” (Loshkaryov, 2025).
A escolha entre essas duas Áfricas não é meramente geográfica, mas logística. Enquanto na África Oriental a Rússia depende de portos e rotas comerciais consolidadas, no Sahel, sua presença exige corredores instáveis – como os que passam pela Guiné, Togo e Líbia – para abastecer tropas e equipamentos. Loshkaryov alerta: a queda de aliados intermediários (como ocorreu na Síria) pode paralisar operações, tornando a presença russa tão vulnerável quanto à francesa. Além disso, projetos de infraestrutura no Sahel demandam investimentos colaterais (estradas, linhas de transmissão) que encarecem iniciativas já arriscadas.
Essa dinâmica expõe um paradoxo: ao tratar a África como monolítica, a Rússia subestima os custos de sua própria estratégia. Enquanto no leste a competição com o Ocidente é direta (e cara), no Sahel, Moscou enfrenta um inimigo mais insidioso: a fragilidade estrutural dos Estados, herança do colonialismo e da geografia hostil, como destaca Timofei Bordachev (2025). A falta de acesso ao mar, a desertificação e a desconexão das rotas globais tornam qualquer projeto no Sahel um “exercício de construção de Estados”, tarefa que exige mais do que mercenários e mineração.
A defesa russa de “não interferência” nos assuntos internos africanos, frequentemente invocada para justificar parcerias com governos transicionais, colide com acusações de fomentar autoritarismo. Em 2024, quando a Rússia assegurou contratos de mineração no Mali após a expulsão francesa, críticos apontaram que Moscou replicava a exploração extrativista do colonialismo. A diferença, argumentam, está na eficiência: enquanto a França vinculava ajuda a reformas democráticas (ainda que muitas vezes fictícias), a Rússia oferece resultados imediatos e práticos – segurança em troca de recursos (Denisova, 2024).
Todavia, as críticas ignoram um ponto crucial: para as elites do Sahel, a parceria com a Rússia não é meramente sobre ideologia, mas também sobre sobrevivência. Os franceses buscavam dar sermões sobre direitos humanos e democracia enquanto contratavam mercenários sob a bandeira da “Legião Estrangeira” para garantir o fluxo de recursos. Já os russos, oferecem segurança sem impor requisitos ideológicos, buscando benefícios mútuos como oportunidades de negócios e apoio político internacional. A questão, portanto, não é se a Rússia é “melhor” que o Ocidente, mas se seu pragmatismo pode gerar resultados duradouros.
A estratégia russa na África, portanto, oscila entre duas realidades: de um lado, a retórica anticolonial e a defesa de um continente unificado; de outro, a necessidade de adaptar-se a sub-regiões radicalmente diferentes. Se Moscou insiste no monolitismo, acaba se arriscando a desperdiçar recursos em iniciativas incompatíveis com as demandas locais. Se abraçar a fragmentação, poderá aprofundar sua influência, mas ao custo de expor contradições em sua narrativa. O ano de 2025, com o fórum ministerial Rússia-África e a expansão do Africa Corps, será um teste decisivo: A Rússia deve buscar superar diversos desafios, como os apontados por Balytnikov (2019) no seu relatório para o Valdai, ou sua presença no continente será apenas mais um capítulo na longa história de competição global pelo continente.
Fontes:
1ª CÚPULA RUSSO-AFRICANA. Declaração da 1ª Cúpula Russo-Africana. Sochi, 24 out. 2019. Disponível em: https://summitafrica.ru/en/about-summit/declaration-2019/. Acesso em: [dia] [mês abreviado]. [ano].
BALYTNIKOV, V. et al. Russia’s Return to Africa: Strategy and Prospects. Valdai Discussion Club, Moscou, 24 out. 2019. Disponível em: https://valdaiclub.com/files/27418/. Acesso em: 21 ago. 2023
BORDACHEV, Timofei. Breaking free: How Africa Can Escape Its Geographic and Historical Chains. RT International, [s. l.], 6 fev. 2025. Disponível em: https://www.rt.com/africa/612264-africa-escape-geographic-historical-chains/. Acesso em: 27 fev. 2025.
DENISOVA, Tatyana. Confederation of Sahel States and Disintegration of ECOWAS. Russian Council, 2024. Disponível em: <https://russiancouncil.ru/en/analytics-and-comments/analytics/confederation-of-sahel-states-and-disintegration-of-ecowas/>. Acesso em: 18 set. 2024.
LOSHKARYOV, Ivan. Russia’s Policy in Africa: A Geographic Dilemma. [S. l.], 2025. Disponível em: https://russiancouncil.ru/en/analytics-and-comments/analytics/russia-s-policy-in-africa-a-geographic-dilemma/. Acesso em: 27 fev. 2025.
RÚSSIA. Ministério das Relações Exteriores. Conceito de Política Externa da Federação da Rússia. Moscou, 2023. Disponível em: https://mid.ru/en/foreign_policy/fundamental_documents/1860586/?lang=pt. Acesso em: 10 jul. 2024
* Juan Ramirez é pesquisador do LabGRIMA.