Estamos diante de uma Nova Guerra Fria? Mobilizada por segmentos da imprensa, intelectuais e acadêmicos, o conceito relativo à definição de um conflito multifacetado entre dois sistemas de poder assume alguma importância na atual conjuntura, tendo como um dos principais planos de fundo a Guerra da Ucrânia e sua dimensão sistêmica a partir da elevação das tensões entre OTAN e Rússia.
Em meio a desordem internacional estimulada pelo avanço no declínio da hegemonia dos EUA, a ampliação das incertezas acerca do futuro da política internacional diante do fracasso do unilateralismo de Washington nas primeiras décadas após o fim da URSS e dos impasses frente a consolidação de um mundo eminentemente multipolar se tornam objetos de sedução para uma análise comparada atual conjuntura e os tempos do conflito protagonizado por soviéticos e estadunidenses.
Nesse exercício, proponho um caminho alternativo. Ao invés de discutirmos as semelhanças e diferenças entre a atual fase da Crise Sistêmica e as características do que ficou conhecido como Guerra Fria a partir de uma perspectiva centrada nas relações estabelecidas entre os sistemas de poder protagonistas no conflito, enfatizaremos o comportamento de atores que, situados em planos inferiores frente às disputas globais, buscaram incidir, em maior ou menor medida, nos rumos da política global. Assim, este curto artigo analisa diferentes movimentações de revisão da ordem internacional na Guerra Fria do século XX e naquilo que se convencionou chamar de uma Nova Guerra Fria no Século XXI. Para tal, busca-se avaliar o que foi a experiência do Não-Alinhamento enquanto um tipo de inserção internacional de viés autonomista no contexto de afirmação do Terceiro Mundo, apontando para uma espécie de modelo de estruturação das relações externas em contextos de maior acirramento das tensões na direção de polos de poder relativamente definidos.
Os (ditos) Não-Alinhados e a evolução da política global no Pós-Guerra
Na primeira parte da década de 1950, o francês Alfred Sauvy estabeleceu uma curiosa associação entre um conjunto de Estados independentes ou em vias de libertação nos continentes africano e asiático e a situação da França Pré-Revolucionária. Sob o signo de “Terceiro Mundo”, as semelhanças estabelecidas com o chamado Terceiro Estado francês assumiam contornos complexos envolvendo a situação de exploração e desprezo, as influências dos outros “mundos” ou atores frente a esse grupo heterogêneo e o reconhecimento de uma situação considerada potencialmente explosiva. Nesse sentido, a proposta de um Terceiro Mundo em Trois Mondes, une planète adquiria um caráter geopolítico ao estabelecer uma nova dimensão na configuração da política internacional que fugia aos limites circunscritos pela Guerra Fria e o enfrentamento dos dois blocos.
As impressões de Sauvy abriam novas perspectivas quanto ao olhar sobre o efervescente mundo colonial. Se a própria noção de Terceiro Mundo carregava consigo certa verticalização da arquitetura política e econômica do globo, sua apropriação no âmbito das transformações no sistema mundial a partir dos anos 1950 assumiu relevância entre seus atores e os muitos autores que problematizaram os desafios contemporâneos do chamado Sul Global. Carregando consigo as marcas da convergência a partir da luta contra o subdesenvolvimento e de uma série de desafios estimulados pela condição periférica no capitalismo global, o terceiro-mundismo não evoluiu na direção de um único modelo de inserção internacional. Singular em sua escrita, o termo se consolidaria como um marcador difuso de um conjunto heterogêneo de Estados que, em sua maioria, relacionavam-se de diferentes maneiras com o jogo da Guerra Fria.
Nessa perspectiva, o chamado Não-Alinhamento constituiu uma das alternativas de inserção internacional e, ao mesmo tempo, base de um movimento peculiar de Estados situados majoritariamente no Terceiro Mundo. Na produção de uma relativa convergência entre diferentes atores situados na África, Europa Oriental, América Latina e Ásia, agendas como descolonização, desarmamento, combate ao racismo, autodeterminação dos povos e ampliação nas condições de desenvolvimento se tornariam vetores de aproximação política entre um coletivo crescente de Estados. As marcas de produção de uma sintonia em nível transcontinental remontam também a outros fatores que antecederam à coexistência de princípios e linhas de ação relativamente comuns. Na trajetória do Não-Alinhamento enquanto vetor de política externa e base para a formação de um movimento, três outros aspectos necessitam de ser considerados: as experiências particulares dos Estados na luta contra o colonialismo e as mais diferentes formas de dominação externa, a produção de movimentos de solidariedade transnacional e a construção de ações coletivas na expectativa de uma evolução na atuação externa.
Sob o signo de Não-Alinhado, diferentes países encontraram certa identidade para suas políticas externas. Aspectos como a posição geoestratégica, as trajetórias particulares, a definição dos interesses em nível regional e global, além da própria compreensão do Não-Alinhamento no contexto da Guerra Fria influenciaram no estabelecimento de relações com o movimento e na própria lapidação de tal conceito. Egito e Iugoslávia podem ser tomados como referência para tal questão. Enquanto o país africano encontrou no Não-Alinhamento um tipo de inserção internacional capaz de ampliar suas condições de barganha no contexto de escalada lateral da Guerra Fria na direção do Mundo Árabe, um contraponto possível frente às características das relações exteriores de Estados conservadores na região e um estilo de Política Externa compatível com os ideais do nacionalismo árabe. Como movimento, os Não-Alinhados representaram para o país de Nasser a ampliação dos horizontes de construção de um protagonismo egípcio nas relações exteriores, indo além dos três círculos (muçulmano, árabe e africano) traçados pelo Coronel egípcio.
Em relação aos iugoslavos, Robert Niebuhr chama atenção para a natureza estratégica da Política Externa dentro dos objetivos de sobrevivência do próprio regime. Se o Não-Alinhamento surge gradativamente como uma consequência do complexo processo de ruptura das relações entre Tito e Stalin no final dos anos 1940 e da busca iugoslava por alternativas de inserção internacional, a Política Externa também se tornou um elemento de solidificação do próprio regime, diante dos desafios de manutenção de uma relativa coesão de um Estado multinacional e multiétnico. Desse ponto de vista, a dimensão da experiência assume relevância dentro da definição dos propósitos e das expectativas dos ditos Não-Alinhados em sua inserção internacional. Enquanto o Egito manteve, em linhas gerais, maiores condições de barganha frente a Moscou e Washington, a Iugoslávia conviveu com o desafio de afirmação de sua soberania em meio à sua posição geoestratégica entre a Cortina de Ferro e a Europa Ocidental, além de representar um desafio ideológico para o Kremlin ao estabelecer uma via particular de socialismo no Leste Europeu.
Além do encontro de trajetórias individuais, o Não-Alinhamento e os ditos Não-Alinhados também traduziram uma espécie de síntese complexa acerca de diferentes movimentos de solidariedade transnacional. No seio da luta contra o colonialismo e na afirmação de uma consciência supranacional acerca do desafio de enfrentamento das estruturas históricas de dominação ocidental, manifestações como o chamado afroasianismo desde a primeira metade do século XX e a coexistência de propostas como o pan-arabismo e o pan-africanismo criaram condições para o estreitamento de laços entre atores locais e regionais, aproximando-os a partir de diferentes iniciativas que variavam entre acordos bilaterais, multilaterais, conferências, encontros e manifestações em espaços como as Nações Unidas.
Nessa perspectiva, antes mesmo de produzir uma distinção conceitual em relação à noção de Terceiro Mundo, o Não-Alinhamento e uma identidade dita Não-Alinhada se manifesta gradativamente em diferentes partes do globo, mesmo sem a reivindicação direta de seus atores. De Nova Delhi à Belgrado, passando por Colombo, Bandung, Cairo, Acra e mesmo Nova York, ideais de autonomia, coexistência pacífica e favorecimento dos novos atores independentes em relação ao desafio de construção dos Estados e das Nações se tornam parte da genealogia de um movimento que se ocuparia em estabelecer uma ambígua interação com a bipolaridade sistêmica, contestando sua estrutura a partir da negação da política de blocos e, ao mesmo tempo, reforçando sua existência de tal cenário a partir dos esforços de construção de identidade e projeção em meio às bases da Guerra Fria.
Se os ditos Não-Alinhados conformaram uma nova perspectiva, ainda que difusa, de uma revisão da ordem global, a sua trajetória ao longo das décadas da Guerra Fria foi composta por desafios, ambiguidades, problemas e ilusões. Em primeiro lugar, a interação entre atores distintos envolveu um princípio de rivalidade em busca por protagonismo e primazia na direção do movimento, opondo, direta ou indiretamente, Estados e mesmo lideranças. No interior do movimento, rivalidades regionais, conflitos de agenda e de horizonte político-ideológico permeou os esforços de constituição de uma coesão não institucional. Num segundo plano, a natureza de um relacionamento multilateral entre tais Estados estimulou o desenvolvimento de uma tensão entre a negação dos sistemas de poder e a formação de um arranjo próprio. Ao negarem o interesse pela formação de um bloco específico, os ditos Não-Alinhados também fracassaram na produção de uma conformação flexível capaz de ir além de um caráter reativo diante dos acontecimentos em nível global e regional.
Uma terceira questão diz respeito aos limites estruturais a uma atuação assertiva dos Não-Alinhados. O enraizamento da condição periférica no interior do sistema capitalista, a herança colonial e os impasses registrados quanto a constituição de uma via sólida de desenvolvimento coexistiam com os esforços de melhoria na posição externa de tais atores, constituindo uma balança política nem sempre favorável para um engajamento consistente na esfera global. Nesse sentido, influenciados diretamente pelas dinâmicas doméstica, regional e mundial, os esforços autonomistas dos Não-Alinhados sofreram com os tons da descontinuidade ao longo da História, evidenciando as insuficiências envolvendo uma proposta de revisão da ordem internacional sem a alteração radical das bases de fomento à desigualdade entre os atores no sistema global.
Por fim, se Não-Alinhamento não se tornou sinônimo de Equidistância, a afirmação de um tipo de inserção internacional autônomo em meio ao jogo da Guerra Fria não se traduziu na produção de um modelo sólido e coletivo de projeção externa. Entre Estados mais próximos do chamado mundo socialista e outros com maiores laços entre os capitalistas, uma Política Externa dita Não-Alinhada adquiriu um sentido de incerteza diante das variações observadas dentro da trajetória de um mesmo Estado ou de forma comparada entre dois atores distintos. Nesse sentido, um mesmo Egito de Nasser demonstrou alguma habilidade diplomática e, ao mesmo tempo, os limites de sua própria atuação autônoma ao transitar entre URSS e EUA em diferentes conjunturas. No campo dos conflitos, disputas entre diferentes concepções de Não-Alinhamento e definição de um suposto perfil internacional evidenciavam a ausência de fronteiras rígidas neste epíteto, demonstrando a capilaridade de tal movimentação e, ao mesmo tempo, a incorporação de incertezas quanto à sua própria identidade.
Um Não-Alinhamento hoje? Movimentações autonomistas em meio às polarizações em nível global.
Em certo sentido, o Não-Alinhamento enquanto movimento não desapareceu. Apesar da sua perda de importância diante do fim da Guerra Fria, diferentes países sob tal signo continuaram a desenvolver Conferências de debate sobre o passado, o presente e o futuro da política global. Outras iniciativas como os BRICS, apesar de não constituírem efetivamente uma espécie de Não-Alinhamento, assemelhavam-se a tal movimentação no sentido de expressarem uma perspectiva alternativa para as relações mundiais, sinalizando com diferentes agendas potenciais de revisão da ordem global a partir das demandas do Sul.
O atual contexto internacional evidenciou a definição de novos comportamentos autonomistas. Diante das pressões sistêmicas impulsionadas pelo conflito entre OTAN e Rússia, um princípio de ação externa alternativo foi desenvolvido por diferentes Estados ao redor do globo, desenvolvendo um relacionamento complexo entre os principais polos do poder mundial na atualidade. A ofensiva diplomática impulsionada pelos principais expoentes da Aliança Militar do Ocidente na direção de outros continentes para a produção de um isolamento da Rússia se mostrou desastrosa. Países heterogêneos como Brasil, Índia, África do Sul, Egito, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, além de tantos outros, vem demonstrando um princípio de habilidade diplomática ao estabelecer condições para uma leitura crítica sobre o conflito e acenarem, em maior ou menor medida, com o desejo de traçar um cenário favorável ao diálogo entre os principais Estados beligerantes.
Longe de assumirem uma ação coletiva e comum, tais atores constituem hoje um desafio diante das estratégias políticas do Ocidente ao questionarem uma noção unilateral do conflito, apontarem a existência de questões que ultrapassam a condenável invasão russa e assumirem uma dimensão geopolítica do problema. Se não é possível classificar tal postura como um Não-Alinhamento stricto sensu, tais posturas evidenciam as permanências de movimentações autonomistas diante do acirramento das tensões em nível global, aumentando o papel a ser desempenhado pelos Estados emergentes na produção de algum equilíbrio que lhes favoreça em termos de capacidade de influência nas decisões globais. Nesse sentido, ao interagirem de forma complexa com o ambiente de Crise tais atores reafirmam as suas respectivas capacidades de agência, mobilizando diferentes recursos na tentativa de transformar a emergência de novos desafios em nível global em janelas de oportunidade para maior projeção externa.
Considerações finais
Mais de sessenta anos separam a atual conjuntura em relação às Primeiras Conferências Não-Alinhadas. No contexto da Guerra Fria, o Não-Alinhamento se traduziu em base de afirmação das Políticas Externas a partir de um viés autonomista no âmbito do Terceiro Mundo, além de estar relacionado a constituição de um movimento que, sem uma institucionalização específica, apresentar-se-ia como um importante espaço de debate sobre a política internacional e a perspectiva de uma revisão da Ordem a partir das agendas do Sul Global. Na atualidade, manifestações autonomistas frente ao quadro de aprofundamento da Crise Sistêmica a partir de um marco geopolítico como a Guerra da Ucrânia se tornam sedutoras para a aplicação do signo de Não-Alinhado. Contudo, se a apropriação de tal conceito não se torna ainda adequada para designar algumas das novas facetas da política internacional, uma leitura crítica sobre o papel desempenhado por atores emergentes na atual conjuntura exige o reconhecimento das suas relevâncias em meio ao contexto de transição hegemônica.
Ao estabelecerem ressalvas quanto ao tipo de movimento desempenhado pelos antigos centros de poder e não necessariamente praticarem uma espécie de alinhamento em relação aos polos emergentes na última década, diferentes atores regionais evidenciam como processos de aprofundamento das tensões globais podem acarretar condições favoráveis para a ampliação de autonomia externa, elevação das margens de negociação entre os polos de poder e um maior peso na balança da política internacional. Se Bandung, Brioni e Belgrado constituíram parte de um roteiro geopolítico de uma inserção autônoma no âmbito do Terceiro Mundo, os caminhos alternativos do sistema mundial estão sendo traçados em diferentes partes e continentes, evidenciando a complexidade da atual conjuntura e seu caráter estratégico dentro de um processo de crise que se arrasta há décadas.
Referências básicas:
CURADO, Pedro Rocha Fleury. A Guerra Fria e a ‘cooperação ao desenvolvimento com os países não-alinhados: um estudo de caso sobre o Egito Nasserista (1955-1967). Tese (Doutorado em Economia Política Internacional), Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.
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RAJAK, Svetozar. No bargaining chips, no spheres of interest: the yugoslav origins of cold war non – alignment. Journal of Cold War Studies, 16 (1), p.146-179, 2014.
SANTOS, Mateus José da Silva. ‘Das Potências Não-Alinhadas’: o Egito e a Política Externa Independente de Jânio Quadros e João Goulart (1961-1962). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2022.
SAUVY, Alfred. Trois Mondes, Une Planète. In: Vingtième Siècle: Revue d’histoire, nº12, out./dez.1986, p.81-83.
VIGEVANI, Tullo. Terceiro Mundo: conceito e História. São Paulo: Ática, 1990.
Mateus Santos
Doutorando em História pela Universidade Federal de Pelotas. Membro Pesquisador do Laboratório de Geopolítica, Relações Internacionais e Movimentos Antissistêmicos. Atualmente desenvolve estudos de Doutoramento acerca das relações entre Brasil, Egito e Iugoslávia no contexto da Política Externa Independente (1961-1964).