Le Monde Diplomatique br – Guerra da Ucrânia: um novo mundo multipolar está surgindo por Charles Pennaforte

O embate entre Otan e a Rússia trará como efeito uma reordenação permanente no jogo das correlações de forças geopolíticas no século XXI

As demandas russas sobre a sua segurança geopolítica nunca foram levadas em consideração tanto por Washington quanto por Bruxelas ao longo das últimas três décadas. Pelo contrário. Europeus e estadunidenses fizeram o possível para expandir a União Europeia e a Otan para o Leste Europeu ao mesmo tempo em que Moscou sempre demonstrava o seu descontentamento com tal avanço.

Na verdade, a Rússia sempre representou um perigo geopolítico para Washington por sua capacidade militar e tecnológica herdadas da URSS. A Rússia “ideal” para o Ocidente só ocorreu sob a liderança de Boris Yeltsin (1991-1999) quando o país fez a transição para o capitalismo de uma maneira totalmente abrupta passando por uma de suas piores crises econômicas e sociais da história. Uma Rússia dependente economicamente, fraca militarmente e com um governo pró-Ocidente sempre foi o cenário desejável para os EUA. Contudo, a situação mudou drasticamente com a ascensão ao poder de Vladmir Putin nos anos 2000.

A recuperação econômica e geopolítica ao longo do tempo, recolocou o país no jogo internacional com a recuperação dos interesses estratégicos da Rússia enquanto herdeira geopolítica da URSS. O “fim” da tolerância russa à expansão Ocidental em direção de suas fronteiras teve início com a retomada da Crimeia em 2014 sob olhares atônitos de europeus e estadunidenses.

A movimentação de Kiev na direção da União Europeia e da Otan acelerou a determinação de Moscou em encerrar definitivamente pela via bélica, o capítulo ainda aberto após fim da URSS: a sua segurança geopolítica, bem como a utilização da Ucrânia por Washington como uma futura base militar da Otan contra o país. A segunda invasão à Ucrânia em fevereiro de 2022 marcou em nossa concepção essa segunda fase.

A manutenção da Otan criada na Guerra Fria para enfrentar a ameaça que não existe mais no cenário pós-1989 não faz sentido. Contudo, há sentido quando pensamos em bilhões de dólares em vendas de material bélico produzidos em grande parte pelos EUA para os seus parceiros europeus, na corrupção e nas comissões milionárias envolvidas para os intermediários. É fundamental a manutenção da Europa sob domínio político e militar de Washington.  Pelo lado econômico, a expansão da União Europeia sobre o Leste Europeu seguiu a mesma lógica: o aumento de membros com o objetivo de incrementar uma problemática união econômica (o Brexit foi um exemplo em 2020) que vem sofrendo questionamentos internos e de quebra diminuir a influência russa sobre a área.

Os erros de avaliação e percepção de Moscou e Washington

Ao contrário da campanha da Crimeia em 2014, quando a vitória russa ocorreu de maneira relativamente tranquila e rápida, a invasão de 2022 pode ser considerada inicialmente, no mínimo, desastrada. Chamou a atenção os inúmeros erros de avaliação de Moscou nas consequências de curto e longo prazo em sua estratégia de subjugação da Ucrânia. As imagens que circularam o mundo com quilômetros e quilômetros de caminhões e equipamentos bélicos ao longo de estradas, o avanço inicial sob Kiev e inúmeras outras áreas do país, para meses depois ocorrer a retirada mostraram que os cálculos militares não foram bem-feitos e muito menos as suas consequências bem avaliadas. Isso a despeito da incontestável supremacia russa no campo militar.

Na área diplomática Ocidental a situação fugiu totalmente ao controle de Moscou quando os EUA tiveram a percepção que poderiam aproveitar o momento para enfraquecer a liderança de Vladmir Putin por um lado, promover um “upgrade” na criticada existência da Otan e facilitar um possível “regime change” por meio do estrangulamento econômico. Mas Washington e seus aliados também cometeram alguns erros de avaliação. Não contaram com a posição chinesa de “neutralidade” e muito menos com a “neutralidade” de inúmeros países como a Índia e Brasil, além de vários países do continente africano, por exemplo. E o pior: proporcionaram ainda o início da aceleração da desdolarização da economia mundial com as sanções econômicas contra os russos, aglutinando os objetivos de vários países que já questionavam a supremacia do dólar como moeda de transação comercial dominante. Supremacia que certamente poderá levar décadas, mas que já está em andamento.

Voltamos a afirmar que o atual conflito russo-ucraniano nunca poderia ganhar as proporções internacionais que foram geradas a partir da atuação do Eixo Washington-Bruxelas, tendo em vista os impactos diretos sobre a Europa, a mais prejudicada ao seguir a linha “kamikaze” dos EUA que ganham muito mais economicamente com as sanções russas, enquanto os europeus sofrem de algum modo como Moscou os seus efeitos.

No campo militar, a Ucrânia só está conseguindo suportar o peso da guerra em função do apoio total dado pelo Otan. Mesmo com relatos da proeza militar dos soldados ucranianos disseminados pela mídia ocidental. Sem esse apoio a guerra já teria acabado provavelmente. Por outro lado, apesar dos erros militares iniciais, Moscou parece ter preferido optar pelo desgaste do seu inimigo mesmo sabendo que o tempo de algum modo ajudaria Kiev a receber mais armas da aliança militar ocidental e atrasar a finalização dos seus planos.

O fato que é este embate entre Otan e a Rússia trará como efeito uma reordenação permanente no jogo das correlações de forças geopolíticas no século XXI. O chamado “American Century” está sendo finalizado pela ascensão de novas e futuras potências como a China, cujo protagonismo global vem ganhando força. A própria atuação de Beijing no conflito russo-ucraniano demonstra que é guiada por projetos de longo prazo: a colaboração no enfraquecimento do poder norte-americano de determinar a “punição” de seus inimigos pela via econômica, a consolidação no futuro próximo do Brics como um “influencer global”, a diminuição do dólar como moeda internacional e o apoio ao multipolarismo como base do sistema internacional no atual século.

O que podemos notar de maneira clara é que já estamos vivendo esse processo.

 

Charles Pennaforte é doutor em Relações Internacionais pela Universidad Nacional de La Plata (Argentina) e professor de Geopolítica do Curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Pelotas.

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