O processo desordenado e irresponsável como foi dissolvida a União Soviética, em 1991, provocou turbulências além das ora sofridas na Ucrânia, bem como temidas em outras ex- Repúblicas que pertenceram à URSS, na Europa, como a Moldova, Lituânia, Estônia e Letônia. Em todos estes Estados que se emanciparam de Moscou, em 1991, permaneceram cidadãos que utilizam o idioma russo e são chamados, pelo Presidente Putin, como “exterior próximo”.
Na Ásia Central e no Cáucaso, países, que também foram formados após a implosão da União Soviética, sofrem ainda seus efeitos. Repito, portanto, reflexões já registradas em artigos escritos durante o período em que fui Embaixador em Baku, no Azerbaijão, entre 2010 e 2012, a respeito de fatos e da história ao Sul da Rússia, bem como a influência, em diferentes momentos históricos, exercida por Moscou.
Uma das obras mais significativas do final do período soviético é o filme “Repentance”, dirigido por Tengiz Abuladze, nacional da Geórgia, em 1986. Aborda a política de violência e disputas territoriais resultantes de ambições pessoais que levaram populações do Cáucaso a conflitos e sofrimentos, que poderiam ter sido evitados, caso — como na questão da Ucrânia — Moscou tivesse agido de forma mais responsável no processo de formação e dissolução da União Soviética.
O enredo trata da morte de um Sr. Varlam, prefeito autoritário de município não identificado, naquele país, ao sul do Cáucaso. Após o enterro, a população local verifica que o corpo continua ressurgindo, em diferentes lugares, como se tivesse “vida própria”. Descobre-se, finalmente, que uma mulher, cuja família havia sido vítima de crueldades do falecido dirigente, era a responsável, após cada renovado enterro, pelo reaparecimento do cadáver. Levada a julgamento, a cidadã é considerada insana. Mas, perante o tribunal, a acusada consegue fazer denúncias que desmoralizam o ex-Prefeito Varlam.
O filme transmitia a mensagem inconfundível de que, então, a União Soviética tinha que assumir o seu passado autoritário, para que “os fantasmas de seus tiranos” deixassem de assombrar o processo de reformas político-econômicas exigidas no país. Segundo avaliado, a obra cinematográfica teria sido associada com os esforços liberalizantes de Mikhail Gorbachev. O cineasta Abuladze foi protegido por Eduard Shevardnadze, também natural da Geórgia, então Ministro dos Negócios Estrangeiros da URSS e futuro Presidente de seu próprio país.
A partir de 1985, como se sabe, iniciaram-se os sete anos de governo de Gorbachev, que culminaram na desintegração da União Soviética. A Lituânia declarou-se independente, em março de 1990, e a Geórgia a seguiu, em abril de 1991. Armênia e Azerbaijão e outras Repúblicas continuaram, no mesmo ano, o processo de emancipação. Logo, a URSS deixou de existir, de forma pacífica, a propósito, quando comparado com o acontecido — segundo especialistas no assunto — com outros impérios, que, no mesmo século XX foram terminados, a exemplo do Austro-Húngaro, do Russo, do Otomano e, em certa medida, do próprio Britânico.
A exceção aconteceu no Cáucaso, onde ocorreram os conflitos armados associados com o término do poderio soviético. Estes incluíram as disputas por Nagorno-Karabakh, no Azerbaijão, pela Ossetia do Sul e Abkhazia, na Geórgia, e pela Chechenya, na Rússia. Caberia, então, exercício de reflexão, sobre as razões que levaram a tais disputas, sempre em torno de reivindicações territoriais que ficaram congeladas, durante os 70 anos de dominação soviética.
Registra-se, a propósito, que, com o término da Segunda Guerra Mundial, o Cáucaso tornara-se tema de numerosos autores estrangeiros, inclusive o novelista norte-americano John Steinbeck, que, no final da década de 1940, descreveu a Geórgia como um lugar mágico (John Steinbeck, A Russian Journal, New York, Viking, 1948).
Da mesma forma que durante o Império Russo, a região permanecia, então, como um cenário de fantasias, um lugar de liberdade e liberação, que, para o trabalhador soviético, podia ser visitado durante férias e feriados. Para os residentes fora da URSS, os spas de água mineral eram locais de turismo. Casas de banho, jardins e sanatórios foram criadas. Os visitantes recebiam promessas de curas imediatas para problemas digestivos e cardiovasculares, entre outros.
Intensos esforços e investimentos governamentais reformulavam a imagem do Cáucaso, até o início do século passado, associada a violências, de tribos primitivas, enquanto o Império Russo, tentava “civilizá-las”. Tratava-se, então, de criar condições regionais que refletissem a forma como russos e outros cidadãos soviéticos concebiam seu próprio país. Grupos de danças da parte norte da região, com suas vestimentas típicas, o vinho da Geórgia, o brandy da Armênia e os tapetes do Azerbaijão, tornaram-se símbolos daquela parte do país, bem como da “maneira soviética de ser e sentir”.
Daí esse exotismo todo ser, naquele período, celebrado e satirizado, ao invés de temido. Filmes populares consolidavam a boa índole e naturalidade das pessoas do Sul da URSS, bem como as boas maneiras e a ânsia de vida de suas populações. Tais manifestações artísticas, no entanto, gradativamente passaram a ter conteúdo de protesto quanto à ausência de liberdades do período soviético, como aconteceu com o filme Repentance, citado acima. No decorrer da década de 1980, as três Repúblicas Soviéticas do Cáucaso do Sul — Armênia, Geórgia e Azerbaijão — evoluíam em direção a reivindicações de livre manifestação de suas identidades nacionais.
O conceito de nação, naquela parte do mundo, contudo, estava — e está — permeado pelo pensamento estalinista. Este leva em conta a língua, a cultura e os interesses em comum, mas repousa, principalmente, sobre o território de residência, que servia de base ao sistema vigente no período soviético. O Partido Comunista, durante a existência da União Soviética, é sabido, dirigia todos os detalhes de sua organização político-social-econômica, tendo sempre como base o território.
Tal convicção não favorecia, contudo, o florescimento de ideologias em competição entre si, no âmbito de fronteiras definidas no período pós-independência, em 1991. Havia que prevalecer, segundo essa maneira de pensar, apenas o conjunto de ideias-forças definidas pelas autoridades centrais. Esse processo facilitaria o congelamento de lideranças que, “à maneira antiga de pensar”, não admitia contestação.
Assim agia o Prefeito Varlam, do filme georgiano Repentance. Cabe registrar que tais pendências não seriam inevitáveis, por ser essa região do mundo “condenada a instabilidade permanente”. Resultaram, sim, de estruturas básicas do Estado Soviético, que tinha o território como sustentação de tudo, o que veio a facilitar, em certa medida, que projetos de poder pessoais viessem a mobilizar populações que foram levadas a genocídios e a enorme sofrimento.
Isto é, no final da década de 1990, e início dos anos 2000 — da mesma forma que o enredo do filme Repentance, citado acima — reivindicações herdadas do período de hegemonia da URSS, sobre o Cáucaso, continuavam a ressurgir, sem que mitos daquelas sete décadas de escuridão tivessem sido enterrados — como o corpo daquele falecido Prefeito Verlam.
Enquanto isso, velhos hábitos ligados à doutrina estalinista de governança perduravam, mesmo diante do colapso da estrutura do Estado Soviético. Ao mesmo tempo, partes do Cáucaso, vinculadas a essas práticas antigas, que nada têm a ver com estruturas de confrontação herdadas da Guerra Fria, mantinham mitos consagrados nos lugares de sempre, enquanto apenas os corpos dos déspotas eram enterrados.
No Cáucaso, a história real do final do século XX e do início do atual não é a respeito de animosidades étnicas irreconciliáveis ou antigas disputas, mas sobre como ambições pessoais têm prevalecido sobre o interesse de coletividades.
Isso tem sido possível, em virtude do legado do pensamento estalinista de vincular nações a territórios, bem como à disponibilidade de armamento soviético, abandonado quando do recuo de seus exércitos, com a extinção da URSS, alimentando, assim, a capacidade de destruição mútua das partes, que retomaram disputas históricas.
Como no enredo da película Repentance, parece que, apenas quando houver o compromisso de desenterrar o passado e os responsáveis pelos erros cometidos tenham seus erros devidamente avaliados, poderia haver mudanças significativas nas formas de governança — ou “desgovernança” do Cáucaso, sul e norte.
Uma visão do Cáucaso
Imagine-se uma região apertada pelo Irã — ao sul — Rússia — ao norte — e Turquia — a oeste — banhada tanto pelo Mar Negro, quanto pelo Mar Cáspio. Se o Cáucaso já não fosse a mais alta cadeia de montanhas da Europa, tais pressões políticas, certamente, teriam forçado a terra a levantar-se e criar tal cordilheira.
Escolha, agora, um grande conquistador: Genghis Khan, Alexandre o Grande, Imperadores Persas, Pedro o Grande, Hitler e Stalin, todos reivindicaram ter conquistado a região caucasiana. Pense numa religião: Muçulmanos Xiitas, ao sul, Sunitas, ao norte, e três expressões do Cristianismo em diferentes localidades. Todas convivem naquela parte do mundo.
O escritor Essad Bey, a propósito de outras diversidades regionais, escreve amplamente sobre príncipes e ladrões no Cáucaso. Revela, então, as diferentes formas que legitimavam as duas “categorias sociais”. Ademais, com frequência, segundo o autor, um membro de um grupo transitava para o outro, passando de príncipe a assaltante de caravana ou de saqueador a nobre, com perfeita naturalidade. Um príncipe caucasiano distingue-se de um europeu, por diferentes razões, além da ausência de brasão de realeza.
Assim, no Azerbaijão, até o início do século XX, antes da invasão soviética, havia: príncipes com terras próprias e súditos; com terras, mas sem súditos; com súditos e sem terras; ou sem terras nem súditos. O ladrão poderia herdar sua profissão ou conquistá-la, por mérito pessoal. Cabia-lhe cobrar tributos dos mais favorecidos, em troca de proteção, ou simplesmente proceder ao saque, no caso de resistência do contribuinte. O Cáucaso, a propósito, tem sido objeto de noticiário, não pelos roubos de seus príncipes ou méritos de seus ladrões, mas por atos terroristas em Moscou e no Daguestão. (Essad Bay, Blood and Oil in the Orient. Bridges Pulblishing.Germany, 2008).
Procuro expor, a seguir, que tais atos de violência foram resultado, ainda, da forma desordenada como ocorreu o processo de desintegração da União Soviética. Isso porque, na medida em que o mecanismo ideológico que a sustentava desapareceu, sobreviveram rivalidades criadas e consolidadas pelo modelo de governança estalinista. Este privilegiava lideranças das chamadas repúblicas soviéticas, que, após o desaparecimento da URSS, insistem em defender prerrogativas próprias que lhes foram outorgadas pelo velho regime.
Tais privilégios diziam respeito, principalmente, ao conceito de autodeterminação, que veio a consolidar-se após o surgimento de repúblicas soviéticas — etapa intermediária para a consolidação do socialismo — com capacidade de decisões próprias, com o emprego, até mesmo, de forças armadas a sua disposição.
O objetivo final, após aquele período, seria a inserção de todos esses minis governos na moldura de governança maior da então poderosa União Soviética. A etapa posterior, sabe-se, ocorreria com a universalização do poder do proletariado. A dialética marxista garantiria que, com o desaparecimento da luta de classes, as referidas repúblicas se dissolveriam, em favor do interesse maior compartilhado por todos, ansiosos por serem conduzidos ao comunismo.
Nessa perspectiva, a origem dos problemas que ainda permanecem no Cáucaso, norte e sul — segundo literatura disponível sobre o assunto — encontra-se na complexa interpretação stalinista sobre o significado de nação. Em termos reconhecidamente simplificados, é possível entender que, para aquele líder soviético — natural, como se sabe, da Geórgia caucasiana — caberia distinguir nação, de raças, tribos, grupos linguísticos ou pessoas que simplesmente habitassem o mesmo território.
A nação, segundo ele, seria uma comunidade que teria “evoluído historicamente e se tornado estável”. Tal conceito poderia ser definido em termos de uma cultura comum, a incluir “idioma, território, vida econômica e características psicológicas semelhantes”. Coerente com o raciocínio do materialismo histórico, Stalin identificaria, como contradição principal, o surgimento do nacionalismo, principalmente como resposta à opressão por algum outro grupo social.
Isto é, a consciência nacional — da mesma forma que a de classe — surgiria em função da circunstância de que uma comunidade nacional se encontrasse subordinada a outra. A diferença entre o conceito estalinista de nação e o pensamento burguês sobre o tema pode ser entendido, de forma que, para este “o nacionalismo seria o caminho para a guerra e o imperialismo”.
Para os seguidores do líder soviético, no entanto, apenas um sistema político, que permitisse a nações exprimirem seu desejo de autodeterminação, evitaria conflitos e eliminaria a burguesia do poder. Tal autodeterminação, contudo, deveria ser claramente percebida como sendo “em benefício dos interesses do proletariado”.
Dessa forma, por exemplo, não seria permitido a líderes religiosos reivindicarem autodeterminação de uma área apenas para satisfazer anseios de muçulmanos ou cristãos. Os interesses dos trabalhadores, como um todo, deveriam ser levados em conta para obter o benefício em questão.
A integração do Cáucaso à União Soviética era descrita como “a determinação voluntária de seus povos de se unirem à classe proletária ao norte”. Na prática, tratava-se de reviver o antigo Império Russo. Nesse processo, houve tentativas de tratar a região como um agrupamento regional próprio, inclusive com a criação de uma Federação de Repúblicas Soviéticas do Transcáucaso, sobre a qual não haveria espaço para tratar neste texto, que pretende ser sucinto.
O importante para este exercício de reflexão, no entanto, é o fato de que, em meados da década de 1930, foram reconhecidas, em Moscou, três Repúblicas Autônomas, ao sul do Cáucaso, a saber: Armênia, Geórgia e Azerbaijão. Ao norte das referidas montanhas, outras regiões foram criadas, com o mesmo nível de autonomia das vizinhas austrais e configuração territorial semelhante à existente atualmente: a noroeste, o Daguestão tornou-se unidade administrativa; e a Chechênia adquiriu status semelhante.
Essas regiões administrativas ao norte e ao sul do Cáucaso podiam reivindicar algum nível de legitimidade, em termos de contornos étnicos, e certo grau de vínculos culturais e econômicos entre seus habitantes. Fica claro, hoje, que a liderança da URSS não poderia antecipar, então, que as fronteiras que estavam traçando, viriam, a partir da década de 1980, tornarem-se pretexto para explosões de violência, em defesa justamente das prerrogativas que tais delimitações geográficas poderiam beneficiar pessoas ou grupos de indivíduos.
Na medida em que novas classes dirigentes foram se consolidando nessas Repúblicas — conforme já mencionado acima — métodos de governança soviéticos vieram a ser adotados, tais como julgamentos e execuções sumários, e desaparecimentos. Enquanto estas modalidades de controle social iam se incorporando aos hábitos locais, vínculos de cumplicidades fortaleciam as elites que se mantinham no poder, à custa do emprego da violência contra seus próprios nacionais.
A fase pós-Stalin testemunhou a subida ao poder de nova geração, adepta de métodos menos truculentos para se preservar no governo, na medida em que as repúblicas soviéticas foram se tornando estados-nações. Ao sul do Cáucaso, déspotas esclarecidos assumiam a direção na Armênia — Karen Demirchian (1974–88), no Azerbaijão — Heydar Aliyev (1969–82) e na Geórgia — Eduard Shervadnadze (1972–85).
Os três se beneficiaram da ânsia por estabilidade decorrente da turbulência e terror vigentes na fase estalinista. Todos consolidaram feudos virtuais em seus domínios. O problema é que, cada vez mais, grupos fortaleciam seus interesses recíprocos, em detrimento do benefício maior dos habitantes dos territórios sobre sua autoridade.
Ao norte da região, não se desfrutava de processo idêntico. Ao contrário da busca da estabilidade, mesmo que fosse com a consagração de ambições pessoais, Chechênia e Daguestão — entre as áreas objeto deste estudo, que, cabe reiterar, busca identificar explicações gerais para problemas atuais, sem reivindicar exatidão científica — foram marcadas por período de turbulência política, com o início da fase pós-soviética da década de 1990 e início do milênio.
A Rússia, como é sabido, envolveu-se em duas guerras na Chechênia, no período de 1994–96, durante o Governo de Yeltsin, e 1999, no de Putin. Desnecessário lembrar os massacres na escola de Beslan, Ossétia de Norte, e em teatro em Moscou, por combatentes pela independência daquela região ao sul da Rússia.
De acordo com documentação disponível, haveria três principais explicações para tais conflitos e atos de violência. A primeira diria respeito ao fato de que, no norte do Cáucaso, como ao sul, reivindicações étnicas por antigas classes dominantes foram incorporadas por novas lideranças políticas — já referidas repetidas vezes acima — como argumentos legítimos, de forma a se perpetuarem no poder.
A segunda envolve disputas fundiárias históricas, que passaram a alimentar ímpetos genocidas, no interesse de grupos sociais, sempre dispostos a consolidar suas prerrogativas. A terceira pode ser encontrada no repetido emprego da força, por governos de Moscou, tanto para eliminar opositores, quanto para manter governantes que lhe fossem simpáticos. Este último fator contribuiu, sem dúvida, para polarizar as tensões regionais.
Mais importante, com a fase pós-soviética, chegou ao norte do Cáucaso outra forma de mobilização, expressa no fundamentalismo islâmico. Rapidamente, o discurso radical foi assimilado pelos militantes chechenos, com pesada herança de combate contra os russos, seja contra o Império, na década de 1840–50, seja contra a dominação soviética. Em momento algum — sempre de acordo com a literatura disponível — tais lutas tiveram conotação religiosa, na forma adotada após a implosão da URSS.
Cabe notar, a propósito, que os guerrilheiros passaram a adotar vocabulário de combatentes islâmicos em outros cenários de guerra. Assim, os russos passaram a ser chamados de infiéis, seus mortos passaram a ser mártires e os simpatizantes de Moscou denominados hipócritas. Houve, no entanto, inovações nos procedimentos de relações públicas.
Ademais, enquanto o rebelde checheno Imam Shamil, no século XIX, escrevia cartas ao Sultão Otomano, mais recentemente, os líderes daquela região criaram sites, como o “Book of a Mujahideen” e cobravam acesso por múltiplos cartões de crédito.
Este texto tem procurado argumentar, portanto, que a violência ocorrida, no Cáucaso, após a desintegração da URSS, decorre, por um lado, da forma desordenada de extinção do Estado Soviético e, por outro, da determinação dos governos nacionais que lhe sucederam — tanto os que obtiveram reconhecimento internacional, quanto os que não o conseguiram, no sentido do emprego da força para preservarem seus egoísmos pessoais ou regionais.
Não representam, nessa perspectiva, exatamente a defesa histórica de identidade ou destino nacionais. Assim, reitera-se, cada parte que se envolveu em conflito havia sido privilegiada, durante o período soviético, com uma chamada administração autônoma. Daí, a classe dirigente desses enclaves, sem querer renunciar a prerrogativas consagradas, decidiu recorrer ao emprego da força — com o benefício do abundante material militar deixado pelos exércitos soviéticos, em retirada — para transformar antigas instituições soviéticas em novos Estados.
Não fossem as estruturas administrativas herdadas e certas ambições pessoais que motivavam a preservação de privilégios adquiridos, as guerras pós-soviéticas talvez não tivessem ocorrido. Na medida em que tais conflitos foram adquirindo vida própria, disputas que, conforme já reiterado, tinham origem pessoal ou regional, passaram a adquirir conotação étnica.
Hoje, os conflitos são lembrados como lutas de libertação nacional ou disputas trágicas em defesa da integridade territorial da mãe pátria. Uma geração completa de crianças cresceu sustentada por tais afirmações patrióticas. Segundo consta, em algumas regiões que hoje reivindicam autonomia, currículos escolares foram reescritos, para convencimento de gerações futuras de que haveria conexão entre supostos Estados antigos e atuais.
Em resumo, a desordem pós-soviética no Cáucaso não foi resultado de rivalidades naturais, entre nações em busca de independência, mas, sim, o reflexo da capacidade da comunidade internacional de tolerar algumas formas de secessão e não outras. Assim, secessões bem-sucedidas, como as de Armênia, Azerbaijão e Geórgia, foram legitimadas com o reconhecimento internacional e admissão em organizações internacionais.
Aqueles regimes não reconhecidos — Nagorno-Karabakh, Abcássia e Ossétia do Sul — foram vistos, no exterior, como tentativas desesperadas de racionalizar a secessão. Uma diferença óbvia, entre os reconhecidos e não reconhecidos foi, simplesmente, o tamanho. Os não reconhecidos eram insignificantes, em termos populacionais: menos de 200 mil na Abcássia e Nagorno-Karabakh, e talvez ao redor de 70 mil na Ossétia do Sul. (Nicholas Griffin. Caucasus — A Journey to the Land between Christianity and Islam. The Chicago University Press. 2004.)
Representavam, no entanto, parte expressiva do território dos países reconhecidos, dos quais queriam se separar: cerca de 15% da Geórgia e do Azerbaijão. No início do milênio — segundo dados disponíveis — era difícil para visitantes identificar diferenças de estilo de vida, a ponto de estabelecer identidades nacionais distintas, entre as terras ocupadas pelos habitantes de Estados reconhecidos ou não. A falta de eletricidade e outras deficiências de infraestrutura, a corrupção, a ausência de governança e de governabilidade eram as mesmas.
As diferenças se encontravam, apenas, entre os projetos dos personagens que não queriam renunciar aos privilégios e prerrogativas obtidos durante o período soviético. Suas ambições, no entanto, eram idênticas, através do Cáucaso, fossem seus países reais ou imaginários: manter-se no poder.
Conclui-se afirmando que, no final da década de 1990, e início dos anos 2000, reivindicações herdadas do período de hegemonia da URSS, sobre o Cáucaso, continuavam a ressurgir, sem que modalidades de governança adotadas durante aquelas sete décadas de escuridão tivessem sido desmanteladas.
Assim, velhos hábitos ligados à doutrina stalinista perduravam, mesmo diante do colapso da estrutura do Estado Soviético. Ao mesmo tempo, partes do Cáucaso, vinculadas a essas práticas antigas mantinham mitos consagrados nos lugares de sempre.
Nessa região, o presente parece repetir o passado recente, enquanto príncipes e saqueadores continuariam a conviver e confundir-se, sempre em proveito de projetos pessoais.
Uma visão do Cáucaso (II)
O Cáucaso já foi chamado, na antiguidade, de “o anel de montanhas que circula a terra, como um anel ao redor de um dedo”. Hoje, persiste o rico imaginário para descrever a região, reforçado pela variedade de idiomas ouvidos, que traduzem diferentes interpretações que cada língua atribui aos fatos.
De acordo com Essad Bey, um dos autores mais dedicados à região, aquela montanha gigante, dividindo a Ásia da Europa, tem dado abrigo às “raças mais interessantes, aos hábitos mais aventureiros e experiências mais estranhas”. “Suas histórias incríveis vão de Prometeu a Stalin, e a área é, por si só, uma espécie de loja de curiosidades da história mundial, com a preservação leal do que já foi e daquilo que sobreviveu e foi esquecido”.
Em certa medida, parece ser essa a percepção ainda vigente, entre os países que se consideram europeus, a respeito dos povos caucasianos. Isto é, os Estados independentes ao sul daquelas montanhas — Armênia, Azerbaijão e Geórgia — e as nações, ao norte, que procuram ser assim reconhecidas — Chechênia e Daguestão, entre outras — não são tidas como entidades assemelhadas às europeias.
Para tchecos e poloneses, a reintegração à Europa, em 1989, significava o redescobrimento de herança cultural que havia sido enterrada durante o período de ocupação soviética. Para romenos e búlgaros, a Europa representa a promessa de sucesso econômico e a consolidação de regimes democráticos. Para ucranianos, a Europa “deveria” ser a porta de saída da Ásia. Para os turcos, houve encorajamento a programas de reforma de governo que podem um dia estender o continente europeu até o Estreito de Bóforos.
No Cáucaso, a utilidade do magnetismo europeu fica menos clara. De sua parte, os Estados independentes na região exaltam suas credenciais europeias. No caso da Armênia, como a Primeira Nação Cristã; no do Azerbaijão, como a Primeira República Muçulmana; e no da Geórgia, como a herdeira de antiga cultura bizantina. Os três países são membros do Conselho da Europa, organização considerada como a sala de visitas para postulantes a integrar a União Europeia.
O Velho Continente, contudo, visto da vizinhança do Cáucaso, parece bem distante. Isso porque as disputas territoriais, conflitos armados, autoritarismos consolidados e eleições duvidosas existentes nessa área estariam em contradição com parâmetros de governança almejados pelos europeus. Politicamente, as capitais do sul do Cáucaso têm estado mais próximas de Washington do que de Bruxelas.
Essa parte do mundo, contudo, permanece na periferia dos campos de interesses europeus. Talvez, a instabilidade atual e as turbulências recentes caucasianas se choquem com projeto regional, que vise a gradativa integração atlântica da Europa, enquanto busca apagar um passado cujas características, em parte, ainda se encontram nítidas — reitera-se — no cenário político presente ao sul dessas montanhas. (Essad Bey. 12 Secrets of the Caucasus. Bridges Publishuing. Berlim, 2008).
Isto é, a Europa pós-Segunda Guerra definir-se-ia com o propósito de “nunca mais promover a autodestruição”. Daí muito dependerá de como os países do Cáucaso conseguirão “administrar seus próprios fantasmas”, para que sejam aceitos pelas nações situadas a oeste.
Assim, com o acesso de Romênia e Bulgária, em 2007, a União Europeia tornou-se ribeirinha do Mar Negro. Caso a Turquia venha a tornar-se membro, aquele agrupamento regional chegará próximo do Cáucaso. Mas, segundo observadores locais, a área nas vizinhanças dessa cordilheira permanece sendo incógnita no projeto de integração europeu.
Em contrapartida, durante sua fase pós-soviética, a Rússia, tanto sob a administração de Boris Yeltsin, quanto de Vladimir Putin tem tratado o Cáucaso de acordo com perspectiva imperial. Segundo esse ponto de vista, militares russos têm a missão de, ao norte daquelas montanhas, sustentar conflito de pouca intensidade na Chechênia, enquanto, ao sul, agem como força policial contra a Geórgia e dissuasão a esforços por demais independentistas do Azerbaijão — no que diz respeito ao fornecimento de energia diretamente à Europa Ocidental.
De certa forma, a área caucasiana — para Moscou — deveria ser mantida integrada à Rússia, como um tipo de federação. Esta seguiria o modelo clássico do antigo Império Romano. Isto é, tratar-se-ia de acomodar povos hostis, no âmbito do próprio território, enquanto estes serviriam como defensores dos limites que realmente interessam aos dirigentes imperiais. No caso atual da Rússia, os limites verdadeiramente importantes seriam os fronteiriços com a Turquia e o Irã, devido, como se sabe, à inimizade histórica contra os Impérios Otomano e Persa.
Segundo ainda relatado pelo mesmo autor Essad Bey, no alto das montanhas do Cáucaso, na região de Ossétia, existem ruínas de castelos que muito lembram os que beiram o Rio Reno, na Alemanha. A área é habitada por pessoas de pele clara e olhos azuis que se autodenominam Allemans.
Haveria pouca explicação sobre a razão que levaria a uma população estabelecer-se em local tão acima do mar, rodeados por neve. De acordo com o texto, seriam descendentes de Cavaleiros Alemães, que, tendo participado das Cruzadas, foram ficando nessa parte do mundo, enquanto preservam hábitos, arquitetura e organização social de suas origens.
Em capítulo seguinte, do mesmo livro, o autor refere-se ao fato de que soldados russos chegaram ao mais alto pico do Cáucaso, na área do Daguestão, no final do século XIX, convencidos de que eram os primeiros a galgar tais alturas. Seria, então, nova conquista em favor do Tsar. Logo após, contudo, encontraram inscrição no local, em latim, Pompeius Imperator, que atestava terem estado, naquelas alturas, legionários romanos, havia 2.000 anos.
Verifica-se, portanto, que o Império Romano, seguido por gregos e genoveses, já haviam visitado a área. De qualquer forma, parece pouco provável que fatos como esses sejam suficientes para convencer os países hoje representados em Bruxelas, de que o Cáucaso mereça ser considerado parte do projeto atual de integração europeia. Caberia, então, aos dirigentes dos povos que habitam agora a Babel caucasiana — a original teria, também, existido nessa parte do mundo, após Noé, no final do Dilúvio, ter dado com sua arca na cordilheira em questão — recorrerem a argumentos mais convincentes, em termos de formas de governança modernas, respeito a direitos humanos e a eleições legítimas, para se tornarem membros da União Europeia.
Cáucaso, libertadores e prisioneiros
Existe uma curiosa relação de ódio e amor na literatura disponível sobre a história da presença russa no Cáucaso. Pode-se dizer que, ao derrotarem sucessivos libertadores daquela região, o Império Russo, a União Soviética e, hoje, a Rússia tornaram-se prisioneiros do ideal de liberdade, há tanto tempo associado àquela região.
Assim, tanto as violências, em todas as suas formas que ocorreram no Cáucaso, como o romantismo excessivo da área e de seus habitantes contribuíram para a interação entre sentimentos de aversão e apego da parte dos russos. Em seu livro “O Fantasma da Liberdade”, Charles King descreve o Cáucaso como um espaço de beleza selvagem, povoado por pessoas de espírito nobre, amantes da liberdade e guerreiros ferozes. Liberdade, no contexto da obra, deve ser entendida não apenas como a emancipação política de alguns grupos, também como imagem de soltura que é projetada, de fora da região, sobre aquela área montanhosa.
É feito esforço para definir, no nível psicológico e cultural, como o Cáucaso e seus habitantes são vistos do exterior e como as percepções externas afetam a autopercepção de seus habitantes. A visão do Cáucaso, segundo vários exemplos de Charles King, é influenciada pelo forte mito de um lugar de escape da rotina, limitação e estreiteza de visão do dia a dia das grandes metrópoles.
Em sua expressão cartográfica, o Cáucaso tem sido defendido, há duzentos anos, por determinação de São Petersburgo ou Moscou, como fronteira intransponível, ao sul da Rússia. Ao Norte dessas montanhas, de leste a oeste, encontra- -se a vasta região agrícola do país, plana, sem barreiras naturais. Daí, desde o início do século XIX, sucessivos governantes terem se apegado com garra a sua porção das referidas cordilheiras, com o intuito de bloquear frequentes tentativas de conquista dessas terras férteis, pelos Impérios Otomano e Persa.
O Cáucaso nunca foi inteiramente dominado por uma única potência hegemônica. Pelo menos alguns dos incontáveis grupos étnicos da região mantiveram-se, sempre, rebelados diante da dominação do Império Russo, da União Soviética e, agora, da Rússia pós-soviética. Mesmo a brutalidade empregada, durante séculos, e a engenharia demográfica, com o deslocamento forçado de nações inteiras, na época estalinista, não alterou tal cenário.
Não se deve pensar, no entanto, o Cáucaso Norte como uma barreira islâmica, bloqueando a expansão russa em direção às populações cristãs ao sul, na Geórgia e Armênia, ou rumo às águas mornas do Mediterrâneo e do Golfo Pérsico. Tampouco cabe, especialmente diante da natureza da violência política no norte do Cáucaso, desde o início da década de 1990, ver naquelas montanhas um ninho de dedicados radicais islâmicos, cujo único objetivo, nos últimos duzentos anos, seria o de atacar os russos.
O Islamismo, no Cáucaso, nunca foi unificado. Há, como se sabe, divisões importantes, de caráter teológico e social, entre xiitas e sunitas, as duas maiores tradições da fé islâmica. No sudeste da cordilheira, no Azerbaijão, a influência espiritual e cultural persa resultou na adesão de um povo de idioma turco aos xiitas. No nordeste e ocidente daquelas montanhas, onde a vida religiosa foi formada em contato com tártaros e otomanos, fortaleceram-se os sunitas.
Sabe-se, também, que, mesmo entre os sunitas, há diferenças de interpretação de textos religiosos. O norte do Cáucaso tornou-se adepto do Sufismo, que, como se sabe, conta com forte influência de misticismo islâmico. Foi essa corrente de pensamento que inspirou, no Daguestão, os movimentos dos guerrilheiros das montanhas caucasianas.
Cada uma dessas crenças tinha posições distintas e, com frequência, conflitantes quanto à maneira certa de agir, à interpretação das escrituras sagradas, à relação entre a autoridade religiosa e secular e, também, sobre a aplicação da lei sharia e sua interação com o a lei comum. Envolvendo todas essas diferenças, encontrava-se o sistema imperial russo que, por vezes, se opunha às práticas tradicionais islâmicas e, em outras, procurava engajá-las e reformulá-las, em proveito de seus desígnios imperiais.
Cabe ressaltar, também, que nem todos os muçulmanos se opunham ao imperialismo russo e que nem todos que a ele se opunham eram muçulmanos. Entre estes, cabe ressaltar, se encontram cristãos ortodoxos da Geórgia, interessados em defender suas próprias prerrogativas feudais. Assim como não houve um único Islã no Cáucaso, também não houve uma resistência islâmica unificada contra o poder russo. A explicação mais correta, talvez, das origens do prolongado conflito entre russos e os diferentes povos caucasianos possa ser encontrada no fato de que estes representavam um desafio ao controle que o Tsar, no século XIX, queria impor sobre a área.
Em contrapartida, acontecia um movimento de renovação da fé islâmica, que levava os habitantes das montanhas a resistir fortemente à imposição de controles sociais e normas administrativas que os invasores lhes desejavam impor. Verifica-se, a propósito, que não existiu um único teatro de guerra, no Cáucaso, entre russos e povos das montanhas. A vitória do Tsar envolveu diferentes cenários, atores, táticas e desafios.
Havia, nessa perspectiva, duas frentes de combate. Na ocidental — colocando-se na situação russa — encontra-se a área do Mar Negro. Na oriental, a do Mar Cáspio. Nessa região, entre os seguidores do Islã, havia a tradição de venerar determinado líder religioso. Entre esses, o mais conhecido foi Shamil, líder espiritual e militar — Imã — do Muridismo, uma seita islâmica radical, no século XIX. Entre 1834 e 1859, chefiou a resistência de sua terra natal — onde é hoje o Daguestão — contra a ocupação russa.
Resumidamente, em 1834, Shamil foi eleito por assembleia de líderes religiosos para a posição de Imã, com a missão de mobilizar os seguidores do Sufismo, no Daguestão e na Chechênia, contra os invasores russos. Após período de consolidação de seu poder, as tropas do Tsar passaram a combatê-lo e, em 1837, lhe foi transmitida proposta de rendição oferecida por Nicolau I.
Diante da oposição de seus seguidores, Shamil persistiu na luta, enquanto continuava a defender negociações pacíficas para a retirada das tropas de ocupação. Colocou em prática, também, elaborado programa de relações públicas, junto aos Impérios Persa, Otomano e Britânico, que na época tinham disputas geopolíticas com os russos. Em 1859, foi derrotado militarmente e, após sua rendição, levado para o exílio em São Petersburgo, onde, para sua surpresa, foi recebido pelo Tsar com homenagens e tratado com honrarias.
Seus familiares, gradativamente, se incorporaram à cultura do novo país de residência e dois de seus filhos chegaram a servir no exército imperial. Shamil faleceu em 1870, após peregrinação a Meca. Cabe assinalar que tanto Shamil, quanto os russos procuraram impor formas de governança autoritárias sobre populações no Cáucaso acostumadas a se autogovernarem a partir de estruturas familiares. A maior ironia é a de que no esforço de defender a liberdade dos habitantes da região, Shamil acabou lhes impondo esquemas de organização político-sociais que se adaptaram facilmente à maneira centralizada russa de governar.
No final do século XIX, o Cáucaso fora absorvido não apenas nas estruturas administrativas de uma Rússia multinacional e multirreligiosa, mas também no imaginário do russo médio. Na arte, música, literatura, cozinha e festivais populares os russos começavam a se verem, gradativamente, presos, cultural e emocionalmente, ao Cáucaso. Liam histórias de aventuras sobre as lutas contra os povos das montanhas e assistiam a espetáculos encenando a captura de Shamil. Passavam férias em balneários da região, onde o ar puro é considerado possuir efeitos medicinais. Festejavam com vinho georgiano.
Em suma, o Cáucaso passava a ser, cada vez mais, um lugar ao mesmo tempo distante geograficamente, mas próximo dos sonhos, não apenas dos russos mas, gradativamente, dos europeus ocidentais e, mais além, dos norte-americanos. Circos e museus em capitais daqueles continentes passaram a exaltar talentos e tesouros caucasianos, verdadeiros ou imaginados.
Até 1950, a maioria dos historiadores soviéticos consideravam Shamil o maior líder de movimentos de libertação nacional contra o colonialismo tzarista. Até mesmo as mais breves histórias populares contavam com fotografias suas, junto com narrativas sobre a liderança corajosa, contra inimigo imensamente superior, em favor da luta dos povos da montanha pela independência.
Depois da II Guerra Mundial, esse conceito sobre Shamil começou a entrar em conflito com nova orientação do Partido Comunista da URSS, no sentido de buscar o patriotismo no âmbito da grande liderança russa. Como resultado, visão oposta do significado dos movimentos de libertação nacional antirrussos foi introduzida na historiografia soviética. Shamil, que havia sido o líder mais celebrado, seria, doravante, o mais condenado.
Registra-se, finalmente, que, tanto as diferentes formas de violência que foram impostas ao Cáucaso, como o excessivo romantismo associado a essa região contribuíram, nos últimos dois séculos, para a construção ou permanência de identidades culturais que se dizem distintas ao redor da cordilheira.
Tais diferenças e a resistência em aturá-las determinam, hoje, a instabilidade regional. Ao Norte, nas repúblicas caucasianas que integram a Federação Russa, e ao sul, nos Estados independentes de Armênia, Azerbaijão e Geórgia. Cabe esperar, nessa perspectiva, que se chegue a moldura contratual que permita a esse coletivo de culturas conviver como entidades autônomas e consolidadas.
A alternativa parece ser a permanência de mecanismos de secessão. Esses criariam oportunidades para a busca de autodeterminação de outros pequenos territórios — sob o patrocínio de libertadores de plantão –, o que manteria a região prisioneira de fragmentação continuada, provocando novas tensões e conflitos.
Aguardam-se, na perspectiva do ocorrido na Ucrânia, novas “operações militares especiais”, caso novos esforços de distanciamento da Rússia aconteçam no Cáucaso — Norte ou Sul.
Notas
[1] Fui o primeiro Embaixador do Brasil residente em Baku, Azerbaijão, entre 2010 e 2012. Os textos repetidos acima constam de meu livro “Casos de Política Internacional”, editado pela AGE, em 2019, e na versão para o idioma russo, sob o título “Da rota das sedas aos tapetes do Azerbaijão”, por editora da Belarus, em 2016. Em 28 de fevereiro de 2017, pronunciei conferência sobre o livro, com tradução por intérprete na Universidade Pedagógica de A.I Herzen, em São Petersburgo, Rússia de acordo com os links:
Sobre o autor
Paulo Antônio Pereira Pinto é Embaixador aposentado.
Disponível: