Música e misturas

Seu Dário, compositor quilombola realiza o sonho de tocar suas composições com orquestra da UFPEL. Imagem: Álvaro Pouey/Especial Em Pauta UFPEL

Mostra de Extensão e Cultura da UFPEL em Piratini promove combinação de atividades artísticas da universidade e da comunidade

Por Carlos Dominguez

Você pode até sentir calor. Mas não importa. Quando Seu Dário pega o violão para tocar um solo com seus dedos curtos o cansaço é mandado para cima do telhado de zinco que cobria o local de remates do parque de exposições de Piratini. As cordas soaram a valsa. A plateia ouviu quieta. Solene. Era Piratini, a primeira capital Farroupilha, mescla de humores e vozes de liberdade. As crianças e os idosos olhavam atentas aos acordes de Baile da Saudade, música de Francisco Petrônio (1923-2007). Eram 18h30min do dia 15 de novembro. Um dia quente. Termômetros, inexistentes ali, marcariam mais de 33 graus. O céu era azul celeste, desprovido de nuvens, insuflado de ventos oeste que não penetravam no galpão por conta de janelas de vidro que não abriam.

Ao longe do galpão a comunidade quilombola pegava a fresca nos cinamomos. E nas cadeiras de praia, conversavam firme.

– Lá dentro não dá – falam as mãos com leques.

No oco do Rio Grande do Sul, os sons outros circulavam em ambientes novos. Antes de Dário subir ao palco improvisado na pista de remates, já havia se apresentado a prata da casa. O entrevero musical iniciou por volta das 15 horas. Quem abriu a sessão da Mostra de Extensão e Cultura da UFPEL foi um esquete de teatro baseada nos versos de Manuel de Barros, o poeta mato-grossense. Na sequência três músicas da orquestra de cordas da UFPEL, passando pelos compositores clássicos Purcell, Bach e Tchaikovsky. A primeira surpresa – e é interessante que sempre existam surpresas, pois assim é a vida longe dos algoritmos – veio com o grupo da escola de musica do Rotary Clube de Piratini.

A voz firme e grave de uma tímida menina de 12 anos foi um espetáculo a parte. Cantora do grupo de mais de 30 crianças que tocavam violão, flauta, acordeom, Cajón, bombo e teclado, a menina tranquila passou pelo repertório gauchesco, do hino rio-grandense até Horizontes, canção símbolo da década de 80 no estado, arrancando aplausos do público. E atingiu o êxtase ao interpretar uma versão do clássico do compositor norte-americano, Leonard Cohen, Hallelujah, onde a harmonia da canção de louvação fez que sua voz preenchesse o horizonte infindo dos morros de Piratini. A parceria com a orquestra fez com que as canções estivessem emolduradas por cordas.

Neste momento, antes do encerramento do espetáculo, foi que o pequeno Seu Dário ocupou o palco com seus 87 anos de música. Após a primeira música, o compositor quilombola apresenta a segunda canção, de sua autoria, que versa sobre as crianças. Ao microfone, o músico diz que é um sonho seu poder executar uma música dele com acompanhamento de orquestra. Assim, ao começas sua valsa, Dário recebe o acompanhamento de dois violinos. Também o grupo de percussão da UFPel entra na cena. E o sonho do artista vira realidade.

A última música foi uma inédita apresentação de uma obra de Heitor Villa Lobos, o compositor brasileiro que uniu a música popular com a música clássica. A peça Xangô, cantada em Ioruba, língua africana, recebeu o acompanhamento do grupo de candomble uruguaio comandado pelo brilhante Guilhermo Ceballos. A fusão deu certo. A percussão deixou a música de Villa Lobos mais forte. A voz do tenor, cantando em Ioruba, ecoou no pavilhão acompanhada pela orquestra. Um homenagem especial à comunidade quilombola de Piratini.

A integração sonora fora combinada após o almoço pelo maestro da orquestra e Guilhermo, na sombra dos cinamomos, onde acontecia uma improvisada jam session entre os uruguaios e os percussionistas do curso de música da UFPEL, ligados ao Projeto de Extensão em Percussão (Pepeu). Um vez acertada a encomenda sonora, a troca de experiência continuou. Os brasileiros passaram seus toque para os uruguaios, em meio a risadas e muita conversa.

– Tem de quebrar, tocar forte – afirma Guilhermo enquanto mostra como se bate o candomble para os percussionistas pelotenses Matheus Valente e John Bellomo, que juntos estavam participando da primeira Semana Internacional dos Saberes Percussivos, evento que acontece esta semana em Pelotas.

E foi a roda de tambor que atraiu o Seu Dário para volta dos percussionistas, ainda pela manhã. Veio chegando de mansinho, para espiar o que acontecia. No município que possui quatro comunidades quilombolas a presença da cultura Afro é forte. Quem sabe se na próxima as oficinas aconteçam nos quilombos.

As conversas musicais encheram o dia quente em Piratini. Os eventos da Mostra de Extensão e Cultura levaram atividades da universidade para as comunidades. E o projeto busca colher frutos à longo prazo.

– As comunidades de Piratini pediram para fazermos algum projeto com o município. E estamos começando hoje uma série de projetos – afirmou o vice-reitor da UFPEL Luís Amaral.

No que depender dos doces acordes do Seu Dário a triste herança dos 300 anos de escravidão são um momento do passado, uma vez que, como dizem seus versos, as crianças de hoje querem dançar e tocar para um futuro mais feliz.

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