Escrevendo com Fogo: jornalismo comunitário como ferramenta de resistência

Disponível no Amazon Prime, o documentário acompanha a trajetória de jornal comunitário que desafia estruturas de poder e mostra o impacto da imprensa contra-hegemônica

Por Murilo Schurt Alves / Em Pauta

 

Jornalistas enfrentam discriminação de gênero e casta para exercer sua profissão. Foto: Murilo Schurt Alves / Em Pauta

A 97ª cerimônia do Oscar acontece no dia 2 de março e, entre suas diversas categorias, a de Melhor Documentário se destaca por retratar a realidade sob diferentes pontos de vista, trazendo à tona discussões políticas e culturais relevantes. No entanto, a premiação ainda privilegia majoritariamente narrativas ocidentais, oferecendo pouca visibilidade às produções fora do eixo norte-americano e europeu. Eventualmente, algumas histórias rompem essa barreira e recebem reconhecimento, como aconteceu com o documentário Escrevendo com Fogo, que se tornou o primeiro — e, até o momento, único — longa-metragem indiano a ser indicado nesta categoria.

Lançado em 2021 sob a direção de Sushmith Ghosh e Rintu Thomas, o documentário acompanha a trajetória do Khabar Lahariya (traduzido como “Ondas de Notícias”), um jornal comunitário do distrito de Chitrakoot, na Índia, formado exclusivamente por mulheres. A inspiração para contar essa história surgiu a partir de uma fotorreportagem em que uma das jornalistas, vestida com trajes típicos indianos, distribuía edições impressas em uma área rural. Ao se aprofundarem no trabalho do jornal, descobriram que o Khabar Lahariya estava expandindo o seu trabalho para o meio digital, o que motivou os cineastas a acompanharem não apenas os desafios diários dessas mulheres no jornalismo, mas também o desdobramento da inserção do jornal nos meios tecnológicos.

Nesse contexto, o documentário se destaca pela abordagem sensível ao retratar suas protagonistas, expondo as múltiplas formas de opressão que enfrentam. Além da violência de gênero, sendo alvo de represálias por trabalharem fora de casa, há um fator decisivo: elas pertencem ao grupo dos dalits. No hinduísmo, essa casta está à margem da hierarquia social e, embora oficialmente abolida em 1950, a discriminação persiste, mantendo os dalits em situação de vulnerabilidade e dependência das classes superiores. Ao dar voz a essas jornalistas, o documentário não só denuncia essa realidade, mas também destaca a resistência dessas mulheres como símbolo de luta por justiça e equidade.

Ao dar voz aos marginalizados, o filme expõe desigualdades persistentes na Índia. Foto: Murilo Schurt Alves / Em Pauta

Ademais, o documentário evita recursos que poderiam tornar a narrativa sensacionalista. Em vez de explorar close-ups excessivos, que têm como objetivo capturar emoções a qualquer custo, a câmera mantém uma distância cuidadosa que não interfere no trabalho das protagonistas e preserva a dignidade dos moradores dessa comunidade. Além disso, podemos acompanhar o desfecho das histórias que são retratadas, visto que os diretores optaram por acompanhar o jornal durante cinco anos. Em uma das cenas mais marcantes, uma família, impedida de registrar uma queixa por violência sexual, recorre ao jornal para dar visibilidade ao crime. O desabafo — “não confiamos em ninguém além de você, Khabar Lahariya é a nossa única esperança” — evidencia como o jornalismo comunitário construiu laços de solidariedade, confiança e pertencimento dentro da comunidade.

Por fim, cabe destacar que a indicação de Escrevendo com Fogo foi um marco para a representatividade das narrativas orientais no cinema documental. Apesar de não ter levado a estatueta no Oscar, seu reconhecimento internacional colocou luz sobre a luta das mulheres dalits na Índia, bem como a importância de um jornalismo comprometido com a verdade e com a transformação social. Em suma, é um documentário essencial para quem busca histórias inspiradoras de resistência, e um lembrete poderoso de que a imprensa contra-hegemônica possui um papel fundamental na construção de sociedades mais justas e democráticas.

Pôster oficial do filme, disponível no Amazon Prime. Foto: Divulgação / Em Pauta

 

Ficha técnica
Diretor: Sushmit Ghosh e Rintu Thomas
Elenco: Meera Devi, Shyamkali Devi e Suneeta Prajapati
Montagem: Anne Fabini, Sushmit Ghosh e Rintu Thomas
Trilha sonora: Tajdar Junaid

 

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