A proteção das infraestruturas digitais críticas localizadas em ambiente submarino constitui atualmente um elemento essencial da soberania cibernética dos Estados. A recente interrupção e danos verificados em três cabos submarinos de telecomunicações — AAE-1, Seacom e Europe India Gateway (EIG) — na região do Mar Vermelho, entre Djibouti e Jeddah, conforme informações provenientes de entidades internacionais e comunicados oficiais da Seacom e HGC Global Communications, reabre o debate acerca da tutela jurídica e da responsabilidade internacional relativa à segurança das rotas digitais globais.
Em abril de 2025, havia atualmente 597 cabos submarinos em operação ou em construção, em comparação com 559 cabos submarinos em 2024. Estima-se que os cabos submarinos são responsáveis por aproximadamente de 95% à 99% do tráfego intercontinental de dados, sustentando comunicações essenciais de natureza financeira, militar e civil em âmbito global (RECORDED FUTURE, 2025). Com base em dados recentes do setor, foram ativados 24 novos sistemas de cabos submarinos de telecomunicações distribuídos geograficamente da seguinte forma: 8 na região EMEA (Europa, Oriente Médio e África), 6 na Oceania, 4 no Oceano Índico, 4 nas Américas e 2 em rotas transpacíficas. (TELEGEOGRAPHY, 2025)
No período compreendido entre 2024 e 2025, foram registrados 44 incidentes distribuídos em 32 agrupamentos distintos, destacando-se nove ocorrências na região do Mar Báltico (quatro incidentes com oito cabos danificados) e nas proximidades de Taiwan (cinco incidentes com cinco cabos afetados) (CSIS, 2023). De acordo com relatórios de investigações e inteligência, pelo menos cinco desses eventos envolveram navios que arrastaram âncoras, sendo quatro deles atribuídos a embarcações vinculadas a Estados como China e Rússia (GUARDIAN, 2025).
A Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM), nos artigos 112 a 115, assegura a liberdade para instalação e manutenção de cabos submarinos em alto-mar, impondo aos Estados a obrigação de cooperar para a proteção dessas infraestruturas e de abster-se de atos de interferência (CNUDM, 1982). Entretanto, quando tais infraestruturas são alvo de danos causados por ações humanas ou militares deliberadas — como as investigadas no contexto do conflito iemenita envolvendo o grupo Houthi — aplica-se a responsabilização internacional nos termos da Convenção sobre a Responsabilidade do Estado por Atos Internacionalmente Ilícitos (CDI, 2001).
No âmbito do direito internacional humanitário, a destruição intencional de infraestruturas civis de comunicação pode configurar crime de guerra, conforme disposto no Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (art. 8, §2, b, ii), especialmente quando os atos atingem bens essenciais à sobrevivência das populações civis e ao funcionamento de serviços públicos vitais.
Frente à ascensão das potências revisionistas no ciberespaço, a República Popular da China, por meio do projeto Digital Silk Road e com respaldo da empresa China Telecom Global, manifestou, por canais oficiais (cf. China Daily, 2025), apreensão quanto à vulnerabilidade de suas rotas de cabos ópticos intercontinentais, que articulam os continentes asiático, africano e europeu. Em paralelo, a Federação Russa tem fortalecido sua doutrina de soberania informacional (информационный суверенитет), conforme pronunciamentos do Ministério do Desenvolvimento Digital, Comunicações e Mídia de Massa da Rússia (Министерство цифрового развития Российской Федерации), defendendo a criação de corredores soberanos de dados, conhecidos como “segmentos nacionais da internet” (национальные сегменты интернета).
Na mesma direção, a doutrina russa consagra o conceito jurídico de segurança informacional soberana, positivado no Decreto Presidencial nº 400/2016 e reforçado pela Estratégia Nacional de Segurança da Federação Russa (2021), que reconhece os cabos submarinos como componentes estratégicos da infraestrutura crítica nacional. Outrossim, a implementação de rotas digitais descentralizadas visa reduzir vulnerabilidades associadas à interceptação de dados, sabotagem e coerção econômica, especialmente frente ao uso expansivo de sanções unilaterais contra atores do bloco eurasiático.
Nesse sentido, o empreendimento geoestratégico conduzido em coparticipação pela República Popular da China e pela Federação Russa, voltado à implementação de uma malha alternativa de cabos ópticos submarinos sob jurisdição soberana, notadamente mediante o Projeto “Polar Express” ao longo da Rota do Norte (Мининформсвязи РФ, 2025), representa uma manifestação de desacoplamento digital estruturado. Trata-se de um processo fundado em uma racionalidade normativa que articula os vetores da segurança nacional, da autonomia tecnológica e da desvinculação progressiva frente aos padrões regulatórios transatlânticos, como se depreende da Lei de Segurança Cibernética da China (2017) e de sua revisão promovida em 2024, a qual reforça prerrogativas estatais sobre fluxos de dados transfronteiriços, vigilância de infraestruturas críticas e localização soberana de servidores.
A lógica de diversificação das rotas digitais, historicamente concentradas em hubs euro-americanos como Marselha, Londres e Nova York, responde a uma preocupação geopolítica com a mitigação de externalidades hostis — como a interceptação extraterritorial de dados, a sabotagem em tempos de crise interestatal e o controle político de infraestruturas transnacionais por regimes sancionatórios unilaterais. À luz da Convenção sobre a Diversidade das Formas de Comunicação (UNESCO, 2005) e dos princípios consagrados na CNUDM (1982) sobre liberdade de instalação e manutenção de cabos submarinos em alto-mar, os Estados passam a reivindicar, sob o manto do jus cogens da soberania e da não-interferência, a constituição de corredores digitais autônomos, reforçando a emergência de uma ordem informacional multipolar e jurisdicionalmente fragmentada no seio da sociedade internacional contemporânea.
Infere-se, portanto, a luz dos artigos 112 a 115 da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM) e considerando a intensificação da demanda por rotas resilientes de tráfego de dados em ambiente subaquático, a projeção de que o substrato digital oceânico se converta, a curto e médio prazo, em eixo das disputas no sistema internacional, sua valorização enquanto ativo econômico e Geopolítico, ensejando a consolidação de corredores informacionais dotados de densidade soberana e conflito entre regimes cibernéticos concorrentes.
Referências
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- Victoria de Aquino é pesquisadora no LabGRIMA.
