A realocação de agências da ONU de Nova York para Nairóbi até 2026 significa muito para a África, os Estados Unidos e a diplomacia institucional por Giancarlo Gouveia

Oficiais das Nações Unidas comunicaram que planejam reestruturar o posicionamento global da organização, em um movimento que altera profundamente sua arquitetura, no qual três importantes agências do sistema — UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância), UNFPA (Fundo de População das Nações Unidas) e ONU Mulheres — devem transferir suas sedes globais de Nova York para Nairóbi até 2026 (XINHUA, 2025).

A medida, embora inicialmente justificada por razões econômicas e operacionais, carrega implicações estratégicas de longo prazo para a geopolítica da governança global. A capital queniana passará a integrar o seleto grupo de cidades que sediam múltiplas estruturas centrais da ONU, ao lado de Nova York, Genebra e Viena (THE CITIZEN, 2025).

Essa mudança se insere no contexto da iniciativa “UN@80”, que visa repensar o papel das Nações Unidas no século XXI. A proposta defende uma aproximação institucional com os territórios onde as agências têm atuação prioritária, sobretudo em áreas de desenvolvimento infantil, saúde reprodutiva e empoderamento feminino — dimensões centrais nos mandatos das agências envolvidas. Nairóbi, por já abrigar o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) e o ONU-Habitat, apresenta-se como um polo consolidado, com infraestrutura diplomática, tecnológica e logística apta a assumir um papel ainda mais estratégico (NORTH AFRICA POST, 2025). Além disso, a presença institucional na África também pode ser lida como uma tentativa de responder às pressões por uma descentralização simbólica do poder decisório global, tradicionalmente enraizado no eixo transatlântico, e como gesto político diante das crescentes críticas à representatividade das instituições multilaterais.

Contudo, o discurso econômico também tem peso relevante: custos operacionais mais baixos e maior proximidade às zonas de atuação efetiva são argumentos centrais nas justificativas apresentadas. A transferência poderá representar uma economia orçamentária significativa em um momento em que a ONU enfrenta cortes em financiamentos voluntários — especialmente dos próprios Estados Unidos, que, com a volta de Donald Trump, retiraram-se novamente do Conselho de Direitos Humanos, da UNESCO e da OMS, além de cortarem o financiamento para diversos setores da ONU. Esse comportamento estadunidense gera certa desconfiança, por parte da organização, quanto à estabilidade de seus escritórios e de suas agências em território americano.

No entanto, a mudança tem suscitado reações críticas dentro das próprias agências. A resistência à realocação forçada de funcionários e as preocupações sobre a capacidade normativa das agências em um ambiente político mais conservador — especialmente em temas como saúde sexual e reprodutiva, igualdade de gênero e direitos LGBTQIA+ — alertam para possíveis perdas de influência e eficácia (DEVEX, 2025). A transferência, ao distanciar-se de Nova York, também pode representar um enfraquecimento no acesso direto aos centros decisórios da Assembleia Geral e do Conselho de Segurança, o que comprometeria a sinergia institucional entre a operação de campo e a diplomacia global (KENYA TIMES, 2025).

Ainda que a ONU tenha reiterado que nenhuma decisão final foi tomada e que os conselhos executivos das agências ainda estejam em processo de deliberação (UN NEWS, 2025), a sinalização política da proposta já se mostra contundente. A valorização de Nairóbi como sede global de múltiplas agências reforça a ideia de que a África, historicamente relegada ao papel de receptora de políticas internacionais, pode atuar agora como centro produtor de normativas multilaterais.

Em síntese, a proposta de realocação das sedes do UNICEF, UNFPA e ONU Mulheres para Nairóbi representa uma inflexão significativa nos modos de organização do sistema ONU. Se bem implementada, pode inaugurar um novo ciclo — há muito aguardado — de democratização da governança global. Porém, se conduzida com atropelos e sem atenção às tensões internas e normativas, corre o risco de resultar apenas em uma descentralização administrativa equivocada, sem efeitos transformadores sobre a estrutura de poder global.

Referências

DEVEX. Opinion: Why the UN’s recent Africa relocation news matters. Devex, 12 jun. 2025. Disponível em: https://www.devex.com/news/opinion-why-the-un-s-recent-africa-relocation-news-matters-110239. Acesso em: 6 ago. 2025.

THE STAR. Why UN three agencies are moving to Nairobi. The Star, 29 jul. 2025. Disponível em: https://www.the-star.co.ke/news/infographics/2025-07-29-why-un-three-agencies-are-moving-to-nairobi. Acesso em: 6 ago. 2025.

THE KENYA TIMES. UN clarifies relocation of four agencies from New York to Nairobi by 2026. The Kenya Times, 31 jul. 2025. Disponível em: https://thekenyatimes.com/latest-kenya-times-news/world-news/un-clarifies-relocation-of-four-agencies-from-new-york-to-nairobi-by-2026. Acesso em: 6 ago. 2025.

THE NORTH AFRICA POST. Nairobi rises as UN global hub amid NY-Geneva office cost-cutting. The North Africa Post, 2 ago. 2025. Disponível em: https://northafricapost.com/87339-nairobi-rises-as-un-global-hub-amid-ny-geneva-office-cost-cutting.html. Acesso em: 6 ago. 2025.

THE CITIZEN. Nairobi joins New York, Geneva and Vienna as only cities globally hosting multiple UN headquarters. The Citizen (Tanzânia), 3 ago. 2025. Disponível em: https://www.thecitizen.co.tz/tanzania/news/national/nairobi-joins-new-york-geneva-and-vienna-as-only-cities-globally-hosting-multiple-un-headquarters–5134592. Acesso em: 6 ago. 2025.

NAÇÕES UNIDAS. Em Nairóbi, ONU quer mais voz da juventude africana nas decisões globais. ONU News, 20 fev. 2025. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2025/02/1845526. Acesso em: 6 ago. 2025.

XINHUA. UN reaffirms commitment to Africa as Nairobi grows in global influence. Xinhua, 20 fev. 2025. Disponível em: https://english.news.cn/20250220/33faaab37d5a4d00bef748551e8a7663/c.html. Acesso em: 6 ago. 2025.

* Giancarlo Gouveia é pesquisador no LabGRIMA

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