“Em caso de ataque aéreo, permaneça calmo”, assim recomendava o convite, no ano 2000, por ocasião da posse do líder independentista Chen Shui-Bian, eleito como a “maior autoridade na ilha Taiwan”. Na condição de Diretor do Escritório Comercial, em Taipé, recebi a nota de cortesia com a advertência de que, durante a cerimônia, poderia haver ataque da RPC, em protesto contra a eleição do “novo Presidente”. Passamos algumas horas olhando para o céu, na antecipação de algum míssil punitivo chinês, a quatro minutos de distância, o que felizmente não ocorreu.
É de se esperar que, por causa de eleições a serem realizadas naquela “província rebelde”, em 13 de janeiro, novas ameaças de Pequim aconteçam. Lembra-se, a propósito, da excessiva demonstração de força militar chinesa, após a visita da Sra. Nancy Pelosi a Taipé, em 2022. Tudo pareceu, contudo, uma bem ensaiada coreografia — previamente combinada entre os Presidentes Biden e Xi — durante a qual os chineses fingiam que atacavam e os taiwaneses fingiam que se defendiam. Parece evidente que Washington teria sido informada sobre os alvos escolhidos por Pequim, de forma a que forças dos EUA não ficassem próximas das áreas a serem atingidas.
Haveria, no entanto, um “novo normal” no que diz respeito à questão taiwanesa, com a persistência de demonstrações bélicas pela RPC. Ficaria, contudo, menos clara a diferença entre estar Pequim “evitando a independência de Taiwan” ou “provocando sua integração ao continente, pela força militar”.
A renovada tensão atual através do estreito, contudo, tem criado maiores simpatias para a margem taiwanesa.
Cabe lembrar que, em 1999, houve pronunciamento da “autoridade local” Lee Teng Hui, no sentido de que haveria “um governo em cada margem do estreito”. Agregou que Taiwan não necessitava declarar independência, pois a “República da China” já era “um país independente” desde sua fundação, em 1912. Como resultado, Pequim ameaçou com o emprego da força militar, no caso de que a ilha pudesse ter aceitação internacional como “país independente”.
No final do milênio passado, quando foi efetuado tal manifestação prevaleciam ainda lembranças poéticas da fase pós-maoísta, que sucedera período caótico do governo do “grande timoneiro”. Na sequência, Deng Xiaoping assumira o leme da RPC e conduziu o país no rumo perseguido há milênios, no sentido da busca da estabilidade social.
Não teria cabimento — no contexto de apenas duas décadas de abertura da China ao exterior — que liderança taiwanesa criasse turbulência no caminho da grande nave chinesa, em direção ao progresso. A impressão que pude recolher entre observadores internacionais, naquele momento, era a de que a China estaria certa de reagir com firmeza, em virtude de razões variadas, como a do “século de humilhações” a que havia sido submetida pelo Ocidente e Japão e a vitória incontestável na Guerra Civil do Partido Comunista Chinês contra o Kuomintang, em 1949. Não parecia haver dúvidas, então, a respeito do apoio externo à reivindicação chinesa de sua autoridade política sobre Taiwan.
Segundo o jornal “South China Morning Post”, de Hong Kong, em 14 de julho de 1999, citando dirigentes em Pequim, “Lee tinha levado a população de Taiwan e seus patrocinadores estrangeiros em direção da própria destruição com sua aventura separatista e suicida”. Até então, autoridades chinesas costumavam referir-se a Lee como “o traidor do milênio”. Após sua polêmica declaração, lhe deram um “upgrading” para: “bebê defeituoso de proveta, gerado nos laboratórios anti-China”.
No momento atual, a República Popular já é considerada a segunda — ou talvez a primeira — economia mundial. Já é capaz de competir — ou liderar — em setores de tecnologia de ponta. Suas forças armadas projetam-se sobre o Mar do Sul da China. Sua forma de governança, contudo, é objeto de crítica, no controle da pandemia de COVID 19. Há desconfianças quanto ao tratamento de minorias internas naquele país.
Verifica-se, nessa perspectiva, que a RPC — ao contrário do que pude aferir em Taipé, em 1999 — não é entendida mais simplesmente como vítima de uma história que a colocara em situação de inferioridade.
A margem taiwanesa parece contar, agora, com maior solidariedade internacional. Isto é, diante de crescentes ameaças chinesas de que movimento independentista na ilha seria sufocado pela RPC, militarmente, Estados Unidos, Índia, Japão, Austrália e alguns países vizinhos, no Sudeste Asiático e na Europa indicam que se oporiam à reivindicação da China sobre Formosa, caso os chineses apelassem à utilização de meios bélicos. De certa maneira, não haveria mais um “alinhamento automático” com a reivindicação de Pequim quanto a sua soberania sobre Taiwan.
Hoje, a República Popular é cobrada por seus sucessos nas áreas econômica e tecnológica, bem como tem seu sistema de governança criticado e em matéria de direitos humanos. Daí, eventual instabilidade através do estreito de Taiwan não contará com as mesmas simpatias internacionais, demonstradas a Pequim em crises anteriores.
Assim como diferem as interpretações sobre qual é a “verdadeira China”, as razões de cada parte, sobre a possibilidade de reunificação também são divergentes. A RPC acredita ter o tempo a seu favor, no sentido de que ao se tornar cada vez mais rica e poderosa, os chineses que habitam Taiwan irão preferir a cidadania da República Popular.
As autoridades formosinas antecipam o contrário, na expectativa de que, gradativamente, a população local encontre cada vez menos em comum com os habitantes do continente chinês, em função da forma de governança autoritária adotada por Pequim.
Nunca é demais enfatizar, a propósito, que Taiwan é herdeira de vínculos com a China que criam um marco de referência, incluindo valores, ideias e crenças consolidadas através de uma história compartilhada. Laços foram estabelecidos, assim, a partir do fato de habitantes dos dois lados do Estreito falarem o mesmo dialeto, pertencerem à mesma família ou serem originários de um único povoado, província ou região
Formou-se, assim, rede regional, com bases étnicas, que atuou como intermediária, em termos de agentes financeiros, comerciantes e empresários facilitando a reintegração econômica de Taiwan à China. Esta é uma condicionante que tem contribuído para que o processo de unificação dos mercados e sistemas produtivos, de ambos os lados do estreito, seja reforçado por laços interpessoais ou fatores culturais.
Decorridos vinte e quatro anos desde aquele pronunciamento de Lee Teng-hui — a respeito de um governo em cada lado do estreito, mencionado acima — é mais uma vez tensa a situação através do Estreito.
O cenário mais favorável para a solução da questão taiwanesa seria a aplicação prática — no continente e na ilha — de valores de governança e da criação de espaços, onde diferentes ações das sociedades civis de ambas as margens possam defender e integrar pacificamente sua identidade cultural e formas de agregação historicamente compartilhadas.
Sobre o autor
Paulo Antônio Pereira Pinto: Embaixador aposentado. Foi Diretor do Escritório Econômico e Comercial do Brasil em Taipé, entre 1998 e 2006.